ELMAR CARVALHO

 

Dias atrás, fui fazer o interrogatório de um interditando em sua própria residência, a pedido da interditante, que disse ele estaria com a sua suposta doença mental em crise, e que se recusava a deixar sua residência. Juntamente com a representante do Ministério Público e um servidor, fui fazer essa diligência, logo que tive uma folga nos serviços mais urgentes.

 

Quando chegamos à humilde habitação, o rapaz estava numa palhoça, no fundo do quintal, de onde se recusava a sair. Quando cheguei a esse local, já o Luiz Moreira, que o conhecia, assim como aos seus parentes, conversava com ele, e lhe recomendava responder as perguntas que o juiz lhe formulasse. Ele respondeu que não sairia do seu compartimento, e que não desejava conversar com ninguém. Ao chegar o cumprimentei, de forma descontraída, tentando lhe angariar a simpatia.

 

Perguntei-lhe o nome, tendo ele dito chamar-se Raimundo. Perguntado sobre a data de nascimento, disse haver nascido em 3 de agosto de 1958, mas que tinha menos de 7 anos de idade. Ante tão evidente erro aritmético, explicou, em sua lógica ilógica, que até os sete anos a pessoa era um “defensor”, e que após essa idade era um pecador. Por conseguinte não era ele contaminado pelo pecado, conforme acabou de explicar a seguir, quando disse ser filho direto de Deus e irmão legítimo de Jesus Cristo. Aduziu que não era filho de um homem e de uma mulher; que fora criado diretamente pelo Senhor, e que por isso mesmo não tinha pecado original.

 

Disse escutar vozes, especialmente as de Deus e de Jesus, com os quais disse conversar. Perguntei-lhe se os via. Respondeu positivamente, acrescentando que Deus tinha um grande dente na parte frontal da boca, e fez um gesto com um dedos, simulando ser um dentuço. Disse-lhe que o que ele via mais se assemelhava ao vampiro Conde Drácula. Não deu mostra de haver compreendido a minha observação. Perguntado a respeito, disse não precisar rezar, pois conversava e se entendia diretamente com Deus. Por mero formalismo, intimei-o a impugnar a causa, no prazo de cinco dias.

 

No retorno, o Luiz Moreira contou-me o caso de um demente conhecido como Sabiá. Explanou que quando ele pede determinada coisa, só aceita o que pediu, e não outra, ainda que mais valiosa. Certo dia, ao encontrar-se com Sabiá, este lhe pediu um pedaço de fumo. Como Luiz respondesse que não o tinha, o louco saiu-se com essa tirada, depois de olhar fixamente para o pneu de uma bicicleta:

- Tem gente que diz que é uma “cama”, outro diz diz que basta revisar.

Piqui com farinha tem um feitiço danado...

 

Seja lá o que tenha sido esse rompante verbal, um tanto incongruente e despropositado, é algo semelhante a certas passagens poéticas de Zé Limeira, dito o Poeta do Absurdo, sobre o qual Orlando Tejo escreveu um excelente livro, crítico e biográfico, que li com muito gosto e atenção. Zé Limeira, como se sabe, era um repentista de versos desconcertantes, e por vezes totalmente imprevistos e imprevisíveis, sobretudo pelo seu adversário, nas pelejas do improviso de cantadores/violeiros. Algumas vezes, chegavam a ser estapafúrdios, embora metrificados e rimados; por isso era considerado um surrealista da lírica popular.

 

Muitas vezes, ele mudava as datas e o contexto histórico para inserir o personagem, com o qual desejava ilustrar o conteúdo de sua versificação, no cenário que lhe convinha na contenda do desafio. Outras vezes, modificava a prosódia, transformando proparoxítonas em oxítonas (e vice-versa), mas não perdia a rima nem o ritmo, como certos zagueiros, que, ao não conseguirem alcançar a bola, derrubam o atacante, para não perderem a viagem. Da mesma forma Sabiá, embora não tenha plumagem nem voo, como a ave canora que lhe cedeu o apelido, tem canto, e no seu lirismo, singular e bizarro, se me afigurou um verdadeiro Zé Limeira, em seus melhores momentos.