O vermelho e o negro, de Sthendal
Em: 16/11/2018, às 08H33
[João Wanderley Geraldi]
Este romance é considerado um “romance de formação”, publicado em 1830 (ou 1831), tem por personagem central Julien Sorel, filho de um carpinteiro de uma pequena cidade do Franco-Condado (Varrières, uma cidade inventada pelo autor mas que corresponde a pequenas cidades desta região).
Como era franzino, fraco, o pai e os irmãos o tratavam com desprezo e violência. No entanto, um cura, Pe. Chelan, ensina ao jovem Julien a bíblia e alguma coisa de teologia. Dono de uma prodigiosa memória, o aplicado aluno aprende tudo e decora a própria bíblia em latim, que acaba dominando e graças a isso se torna leitor de autores clássicos. O ídolo de Julien é Napoleão e a sua época, em que havia, através do exército, a possibilidade de ascensão social [alguma influência da própria admiração de Stendhal por Napoleão, sobre quem escreveu um livro que não publicou em vida?]. No entanto, todo o romance tem por seu tempo a Restauração.
Sua fama de latinista o torna preceptor dos dois filhos do prefeito de Varrières. Para isso, veste o hábito de futuro padre, pois este seria o seu futuro. Ambicioso, passa a vida a calcular onde poderá fazer fortuna e celebridade.
Morando no ‘palácio’ do Sr. de Rênal, acaba por acontecer o inevitável: uma paixão entre Julien e a Sra. de Rênal. E cartas anônimas os denunciam… toda a primeira parte do romance se situa neste espaço de Varrières e ao triângulo amoroso. Incialmente, ele entre no processo de sedução como um calculista: que vantagens poderia extrair? Mas depois acaba se apaixonando pela bela esposa do prefeito.
A solução foi enfiar-se no seminário. As páginas que narram este período mostram a perfídia e a infâmia do clero, o jogo de interesses, as rendas, os curatos, os bispados…
Como ele foi protegido pelo diretor do Seminário, o Abade Picard, este o indica para secretário na casa do Marquês de la Mole, em Paris. E aí começa o que poderia ser chamado de “formação” do gentil-homem dos salões da nobreza. Encanta ou espanta, conforme a ocasião. Incialmente um parvenue provinciano, ele vai aprendendo como se joga nos salões, como de mantém uma palestra que nada diz, mas que mantém estes laços ilusórios que não vão além dos interesses de classe.
Obviamente, o Marquês não podia deixar de ter uma filha: Mathilde, a Srta. de la Mole, uma coquete do salão do marquês, que dava atenção a todos os pretendentes sem se decidir por nenhum deles… Mas que passa a observar Julien Sorel, o secretário de seu pai. Um servidor… e também agora, outra paixão emerge. Mathilde é uma mulher que não se submete e todo o projeto de Sorel será submetê-la a sua vontade, tornando-se amante sem qualquer paixão no início, mas depois aparentemente apaixonado. Mathilde fica grávida. Então se inicia o confronto entre o pai e a filha. Como estava a filha desonrada, a única possibilidade era elevar socialmente Sorel, que se torna capitão de hussardos em Strassburgo, mas já com um nome nobre (inventando-se a história de que seria um filho de fidalgo exilado nos tempos de Napoleão).
Tudo parecia ir para um fim tipicamente romântico, o casal realizando um casamento oficial e público, depois de já terem se casado às escondidas e tratando-se por marido e mulher. No entanto, a Sra. de Rênal, que depois do abandono de Sorel se tornara carola, é obrigado pelo seu “orientador de consciência” a escrever uma carta extremamente longa e em parte caluniosa contra Julien. O Marquês volta atrás, proíbe o enlace. Mas Mathilde consegue fazer chegar a Julien a informação. Ele volta a Paris, é informado da carta.
Volta no mesmo instante para Varrières, onde compra duas pistolas. Estuda os hábitos da Sra. de Rênal, e entra na igreja com a intenção premeditada de matá-la. Efetivamente faz dois disparos, erra o primeiro e o segundo atinge o ombro da vítima.
Segue-se a prisão, a transferência para Besançon onde ocorrerá o julgamento. Mathilde se faz passar por Sra. Michelet, visita-o na prisão e articula com os poderosos do lugar, usando de sua influência em Paris, que os jurados o absolvam. Gasta muito dinheiro na compra destes favores. Ao mesmo tempo, também a Sra. de Rênal, restabelecida do ferimento, vai para Besançon: a antiga paixão se reacende e os tempos de cárcere serão os tempos em que Julien Sorel conviverá com duas amantes, uma pela qual sente algo, outra que tem que aturar porque carrega seu filho.
Acontece o julgamento. Quando tudo indicava que haveria absolvição, no último mento perguntado pelo juiz se teria alguma declaração, Julien se declara culpado e pede a condenação justa à morte. E é condenado: os jurados traem os poderosos da região.
Enfim, depois do tempo da apelação sem resultados, Julien é guilhotinado e um seu amigo, Fouqué, consegue com muita propina que seu corpo lhe fosse entregue para sepultá-lo. Está o amigo na prisão, com o corpo enrolado numa manta, e chega Mathilde, apaixonada, que pega a cabeça do guilhotinado e a leva consigo. Houve o sepultamento do corpo, sem a cabeça, porque esta a própria Mathilde quis sepultar por sua própria mão depois de encerradas as cerimônias fúnebres.
A Sra. de Rênal tinha voltado para casa e três dias depois do sepultamento de Julien, morre entre seus filhos… E da Srta. de la Mole, Mathilde, a viúva, nada se diz além do fato de que mandara enfeitar a gruta em que Julien foi enterrado e que no encerramento das cerimônias distribuiu aos camponeses presentes milhares de moedas de cinco francos…
Este o resumo da história. É um enredo extremamente complexo, com muitos personagens. Nesta narrativa do “processo de formação” de Julien, dado como extremamente ambicioso, procedente do mundo plebeu e conseguindo sucesso nos salões de Paris e até fortuna, não fosse a carta denunciadora de Sta. de Rênal, sua primeira amante, nota-se que o narrador não tem qualquer simpatia por sua personagem! Pelo contrário, sempre que possível ressalta sua volubilidade, suas incertezas, suas dúvidas, sua ridícula ambição.
Lembremos: o tempo do romance é aquele da Restauração francesa (1814-1830), claramente conservador. Parte maior do tempo do romance se desenrola no ano de 1830. Neste ano, enquanto a nobreza conspira (um episódio em que Julien se viu envolvido em função de sua prodigiosa memória), arma-se a revolta popular a que muitas vezes aparecem referências: Mathilde insiste com o pai: havendo uma revolução, Julien Sorel se tornaria um grande nome…
Há algo inquietante: a formação do “homem de salão” que entra para a nobreza pelas portas dos fundos termina com a morte! A formação como uma caminhada para morte? Ou a morte como castigo à ambição e ao sucesso num mundo a que não tinha direito por nascimento?
Do ponto de vista formal, a narrativa se desenvolve cronologicamente, sempre acompanhando a vida de Julien Sorel, seu tempo de vida e seus deslocamentos pelos espaços: Varrières (cidade fictícia), Besançon (no seminário), Paris (secretário do Marquês de la Mole), retorno breve a Varrières para o assassinato da primeira amante e depos prisão, julgamento e morte em Besançon.
Há esporadicamente suspensões da narrativa, momentos em que o narrador se dirige ao leitor, como na passagem abaixo, entre parêntesis, portanto formalmente destacada, em que introduz um comentário à noite de amor proibido e que depois a Srta. de la Mole quer esquecer:
O resultado dessa noite de loucura foi que ela julgou ter conseguido triunfar de seu amor. (Esta página prejudicará por demais o infeliz autor. As almas geladas o acusarão de indecência. Contudo, ele não faz a todas as criaturas jovens que brilham nos salões de Paris a injúria de supor que uma única dentre elas seja suscetível das loucas agitações que degradam o caráter de Mathilde. Esta personagem é inteiramente imaginária, e até mesmo imaginada fora dos hábitos sociais que entre todos os séculos assegurarão um lugar de destaque à civilização do século XIX. […]
Não é também o amor que se encarrega da fortuna dos jovens dotados de algum talento, como Julien; eles se ligam com um laçõ invisível a um grupo, e, quando o grupo faz fortuna, todas as coisas boas da sociedade chovem sobre eles. Infeliz do homem de estudos que não pertence a nenhum grupo; censurar-lhe-ão até os mais insignificantes sucessos, e a alta virtude triunfará roubando-o. Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes ele reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao home que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral. O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar o charco. […] )
O livro contém inúmeras remessas a outros autores, e cada capítulo, exceto os últimos quatro, onde se chega ao trágico, vem encimados por uma epígrafe.
Na prisão, esperando pela morte, Julien Sorel reflete sobre sua vida. Uma destas passagens me chama atenção:
À medida que menos me deixasse enganar pelas aparências, eu teria visto que os salões de Paris estão povoados de pessoas honestas como meu pai, ou de patifes hábeis como esses forçados. Eles têm razão, os homens de salão nunca se levantam de manhã com este pensamento aflitivo: “Como almoçar?” E eles se gabam de sua probidade! e, comparecendo ao júri, condenam sobranceiramente o homem que roubou um talher de prata porque se sentia desfalecer de fome!
Mais de trinta anos depois é publicado o famoso romance de Vitor Hugo, Os Miseráveis. E nele Jean Valjean rouba um talher de prata do bispo que o acolhera e a perseguição que lhe fará Javert pelo resto da vida…
Referência. Stendhal. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril, 1971