[Paulo Ghiraldelli Júnior]

Caso a URSS tivesse durado mais dez anos e, então, desmoronado como ocorreu, como uma queda de um grande castelo de cartas, uma boa parte dos jornalistas teria responsabilizado a Internet por tal ocorrência. Diriam que o comunismo ia mal, mas que jamais teria realmente chegado ao fim sem a decisiva “massa de informações absorvida pelo público do Leste”. Felizmente, a URSS acabou antes. O povo de lá terminou um sofrimento descomunal e nós, aqui, vendo-a acabar do modo que acabou, fomos poupados de ter de agüentar a baboseira jornalística que apareceria, em homenagem à informação.

A informação muda menos as coisas do que nós, escolarizados de classe média e com forte influência ocidental iluminista, imaginamos que muda. Nós vamos para a escola e aprendemos idéias e, então, começamos a dar muito valor a elas. Além disso, o tipo de escolarização que temos nós coloca hegelianos mesmo que Hegel não seja mais ensinado. É que muito da nossa formação em Humanidades se faz a partir de uma história de manual em que a força das idéias substitui o jogo de sorte e azar. Julian Assange, o responsável pelo Wikileaks, é um gênio matemático e, sem dúvida, um moço bastante inteligente em geral. Mas, ele não escapa desse senso comum de classe média altamente ligada às universidades. Ele acredita que pode fazer uma revolução a partir da divulgação de informações que, em princípio, ninguém saberia. Para infelicidade dele e, talvez, nossa, ele está errado.

Isso não quer dizer que ele não possa realmente fazer uma revolução. Todavia, não por meio da informação e, sim, pelo jogo de sorte e azar. E o comportamento suicida dele pode aumentar bem a probabilidade dele fazer um bom estrago no que o Coronel Nascimento, essa fonte inesgotável da sociologia do momento, diria que é “o sistema”. “O sistema é foda”. Mas o desejo de morte de Julian Assange é mais foda ainda. E ele está preso exatamente por causa disso.

Não! Não digo que ele está preso porque, tendo instinto suicida, se jogou contra o mundo. Falar isso seria uma bobagem. O que digo é que ele está preso porque foi acusado de estupro de duas suecas – mas é um estupro especial. Na Suécia o estupro é algo bastante sofisticado. Não é estupro de Terceiro Mundo, que se faz com arma e com o membro sexual. Na Suécia o estupro dispensa a arma e o membro sexual deve estar sem camisinha, diante de uma parceira que quer fazer sexo, mas com camisinha. O sexo sem camisinha quando a parceira quer com camisinha é o sexo não consensual e, portanto, lá na Europa, terra de leis a la Jean-Jacques Rousseau, é o estupro – um crime. Numa terra do primeiro romântico, nada pode ser mais romântico que as leis do Primeiro Mundo,  principalmente a lei sueca. Ora, Julian Assange não forçou nenhuma moça a fazer sexo com ele, apenas se recusou em encapar o membro sexual. Não importa quem são as moças e se elas querem dinheiro ou já pegaram dinheiro; o que é verdadeiro nisso tudo é que quem anda de hotel em hotel fazendo sexo sem camisinha é, sem dúvida, um suicida.

Julian Assange tinha de ter sua excentricidade. Nietzsche dizia que seria ridículo um filósofo casado. Um gênio que fosse não só um pequeno burguês de nascimento, mas um pequeno burguês nas suas idiossincrasias, sem excentricidades válidas, não poderia ser um revolucionário. Assim, Assange parece caprichar não só no seu visual, mas no seu modo de desafiar a morte – principalmente na hora do prazer. Na cama e no computador ele age como quem está guerreando como um super herói, mas sem escudo. Todavia, sua fama é maior que o seu perigo.

Num mundo como o nosso, em que o volume de informações sobre barbárie se torna a única barbárie reconhecida, ninguém mais se escandaliza com escândalos bárbaros. Estamos adormecidos.

Mas, se é assim, de onde vem a fama? Só do erro jornalístico e, enfim, nosso, de achar que a informação arrebenta quarteirões? Não! Sua fama vem, sim, das informações que passa, mas não das que ele próprio e nós qualificamos como importantes ou como “verdadeiras informações”. Num mundo onde nossos assuntos banais já não são nossa própria banalidade, mas grandes questões, a banalidade do cotidiano – seja lá de qual cotidiano – cresce em importância. Então, a fofoca que, pensávamos, não iria sobreviver ao fim da sociedade de corte típica do século XVIII, ampliou sua popularidade. No entanto, como fofocar se nossa vida é vazia e só preenchida pelo cosmopolitismo? Hora, podemos fofocar a partir de uma inflação do que era a sociedade de corte. Podemos gerar uma grande e imensa corte e então fofocar como quem fala de grandes questões.

Na mesa do almoço ou de jantar de cada um de nós, em família, passamos a conversar de temas gerais do mundo. Não falamos mais de coisa pequenas, ridículas. Falamos do Protocolo de Kioto ou do Tea Party ou da escolhas da Dilma ou, ainda, do poderio bélico do Iran. Deixamos para alguns falar de fofocas. Mas nem mais esses a quem deixamos agir assim fazem o que devem fazer. Os que servem a classe média não fofocam mais de seus patrões. Possuem a fofoca própria, também dada de maneira quase cosmopolita ou, no mínimo, referente a um mundo maior que o nosso particular. Ou seja, falam da novela. Sentimos que para recuperarmos as nossas vidas comezinhas precisamos da fofoca. Mas como não temos mais vida nenhuma que valha uma fofoca, usamos agora a denúncia do Wikileaks para a fofoca cosmopolita. Assim, a importância do filme do helicóptero de guerra atacando civis, mostrado no Wikileaks, não tem qualquer repercussão mundial. Passa uma vez na TV e pronto. Mas a conversa do governo americano falando que Sarkozi usa de Carla Bruni para se aproximar de Lula é mais que importante. Isso aguça tudo que temos não na cabeça, mas no baixo ventre. É a volta da fofoca com o que temos para fofocar. Não podemos deixar passar essa oportunidade de voltarmos a nos parecer com seres humanos vivos.

A fofoca é o que conta para nós, ainda que Julian Assange imagine que são as informações sobre mártires políticos aqui e ali. Caso exista uma revolução provocada por Assange, ela virá de um caso desses, de um ataque pessoal, de um disque-disque barato entre reis e ministros, incendiado por uma determinada configuração esquisita das estrelas no céu.  Caso isso não ocorra, Assange terá de fazer alguma arte menor ainda, pois as maiores ele já fez e não resultaram em nada.

 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ