O sertão e a cidade

 Álvaro Andrade Garcia

escritor e diretor de projetos audiovisuais e multimídia
roteirista e diretor do webdoc www.sertoes.art.br

Passei algum tempo cavalgando um demônio. Era um vaqueiro montado na besta que zunia pelo mundo. Ora montado no cavalo, carro, barco ou avião, vez ou outra estava diante da minha própria sombra. Uma das mãos firmava as rédeas para eu não cair. A outra, solta no espaço, segurava meu tacape. Um dispositivo digital de memorizar imagens. Estendia, quase exausto, meus olhos pelo planalto central. Procurava o Sertão, num Brasil que poucos viam e não se dizia.

Nas minhas andanças, encontrei vários tempos de um mesmo sertão em filmes arquivados e até então esquecidos. Encontrei várias vozes de um mesmo sertão em conversas com sua gente, buscando conhecer a civilização do couro e sua herança cultural. Essa antiga civilização rural do planalto central, imortalizada por Guimarães Rosa. E vi lá o que deveria ser seu contraponto: a cidade, o lugar da civilização em seu estado atual, em tempos de globalização. A mesma paisagem e estilo de vida que se espalham do Ocidente ao Oriente, dos Estados Unidos à China. Da cidade ao sertão.

Há 50 anos, Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas (1), narrou aos brasileiros suas aventuras pelo vasto sertão. Sua vida transcorreu no interior do Brasil, em infindas guerras entre bandos de jagunços e seus coronéis, enquanto ele, atormentado pela existência ou não do Diabo, fazia sua travessia. A narrativa de Riobaldo descortinou novos brasis até então desconhecidos pela ampla maioria da população que vivia nas grandes cidades. O ecossistema do cerrado, as veredas, a bacia do rio São Francisco, suas plantas, seus animais, aves, a vida dos vaqueiros, coronéis, jagunços guerreiros... Um vasto interior, desconhecido e pitoresco do noroeste de Minas, Goiás, Tocantins e Bahia era então revelado às cidades brasileiras.

Se para Riobaldo, durante suas andanças e guerras, importava saber se o demônio existe ou não, para mim, que também percorri esta extensa região dos anos 1980 até hoje, o que importava era contar o que acontecia diante dos meus olhos. Fiel às palavras de Walter Benjamin em O Narrador (2), quis narrar a história do que aconteceu comigo e com as pessoas ao meu redor, não interessado em “transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada”, mas interessado na experiência, que anda em baixa na sociedade da informação. Bebendo nas profundezas da vida, como o próprio Benjamin propõe ser a missão do narrador sincero.

Nasci junto com Brasília e minha experiência é contemporânea das profundas transformações que o Brasil passaria na segunda metade do século 20. Meu olhar parte de Belo Horizonte, cidade capital no processo de entendimento da penetração da ‘civilização urbana’ no sertão.

Era ainda criança, quando comecei a minha carreira de deslocamentos e repetidas entradas no sertão. O maio de 68 acontecia, enquanto deslizava as águas do Paracatu, entre olhares atentos de miríades de jacarés. Me deslocava numa Rural em caminhos de terra, conhecendo pela primeira vez um mundo muito distante do meu.

Depois, na minha juventude, segui o curso do São Francisco, enquanto construía um diário de vida (3), e cruzei a região inúmeras vezes nas décadas de 1980 e 1990. Estive lá também com Guimarães Rosa, Afonso Arinos, Richard Burton, Saint Hilaire, Euclides da Cunha, Mario Vargas Llosa, Capistrano de Abreu, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Villa-Lobos, Gláuber Rocha, Graciliano Ramos e tantos outros. Enquanto os lia e via, aos meus olhos iam se somando outros, construindo e desconstruindo imagens. A comparação permanente entre o que percebia e lia, muitas vezes realizada in loco, me inquietava. O sertão estava se transformando imensamente, e bem diante de mim. “Eu era o cara, eu estava lá” (4). Minha experiência era simultânea às transformações.

Então, em 2003 me propus a iniciar a construção de um documentário, produzido em meios digitais, onde busquei ler o sertão hoje e compará-lo ao descrito por Guimarães Rosa e outros autores. Afinal de contas, o que é o sertão? Ele ainda existe? Qual é seu papel na formação do Brasil? Quais foram e são suas relações com as cidades? Foram estas inquietações de espírito que me motivaram a viajar mais de 10.000 km em 2003 e 2004, a conversar com dezenas de sertanejos, pesquisadores e historiadores e produzir este documentário com mais de 600 nós, enovelando 12 horas de audiovisual e centenas de páginas de texto, resultado também de três anos de pesquisas iconográficas e bibliográficas (5).

Eu quis buscar imagens que falassem das mudanças na paisagem natural e mental sertanejas e de como isso se associava à história do Brasil, especialmente durante a segunda metade do século 20.

Como nos mostrou claramente Willi Bolle, em Grandesertão.br (6), Grande Sertão: Veredas foi escrito na época da construção de Brasília, e sua narrativa é um réquiem, um discurso fúnebre para o tribunal da história. Segundo ele, Guimarães Rosa já pressentia que seu sertão estava com os dias contados.

Que sertão era esse? “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.” João Guimarães Rosa.

Sérgio da Mata (7), em seu capítulo “Sertão”, do livro Chão de Deus, mostra o quanto o termo é móvel e muda de sentido de acordo com a época e as concepções de quem o usa. Segundo ele: “O sertão compreende uma síntese tipicamente brasileira de motivos que, pelo menos na tradição européia, cristalizam-se em torno do complexo de imagens deserto-floresta: refúgio, ameaça, espaço de transgressão (ou de expiação) no qual a justiça humana e mesmo a divina não vigoram. Num sentido mais amplo, para os antigos mineiros, o sertão se caracteriza sobretudo por ser um espaço incivilizado. Não basta que aquelas regiões sejam habitadas se seus moradores não se mostram capazes de domesticar o próprio espaço em que vivem. O sertão é, em outras palavras, a antítese de tudo aquilo que uma parcela significativa da população brasileira dos séculos 18-19 julgava ser a ‘civilização’ pelo menos nessa acepção eurocêntrica, ocidentalizada.”

O sertão era considerado um espaço bárbaro. Mas o que é a barbárie? O que é a civilização? Segundo Michael Lowy (8), no seu Barbárie e Modernidade no Século 20, os gregos consideravam bárbaras as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. Assim pensaram também os chineses sobre os povos além-fronteiras, os romanos sobre os povos da Europa do norte, hoje ‘centro’ de civilização. Segundo o dicionário, bárbaro significa não só essa ‘falta de civilização’ mas também crueldade e irracionalidade.

Lowy demonstra que estes conceitos hoje não se sustentam mais. Depois do século 20 ninguém pode desconsiderar a ‘barbárie civilizada’. Basta pensar no “massacre de indígenas das Américas, no tráfico negreiro e nas guerras coloniais”, e veremos que a crueldade da ‘civilização’ existe há muito tempo. E que muitos povos ‘bárbaros’ eram dotados de culturas riquíssimas, apenas incompreendidas pelos que se autodenominavam ‘civilizados’.

Será que mudamos nossa percepção do sertão no século 20? Creio que não. O sertão antítese da civilização foi o sertão que se perpetuou na literatura e no cinema, funcionando como um ponto de fuga da cultura urbana, emergente na costa brasileira. O sertão tem sido utilizado dessa maneira, ora como oposição à cidade, espaço de valores atrasados e conflitos ancestrais, de luta ímpia contra as forças brutas da natureza, ora como espaço da afirmação da brasilidade, da cultura autêntica da terra, em oposição ao importado que chegava à capital-porto Rio de Janeiro e às cidades da costa.

Através de filmes e livros, fomos construindo a imagem de um sertão que hoje está defasada, pois o sertão real foi devastado pela passagem da nossa própria civilização urbana, que continua nos consumindo, e também às cidades e campos.

O desejo de perpetuar esse sertão e explorar seus contrastes com a cidade de alguma maneira obnubilou nosso conhecimento do que ocorreu no interior do Brasil, contribuindo muitas vezes para uma visão estereotipada da região, que ainda predomina no senso comum. Quantos não têm uma imagem do sertão construída sobre as regiões secas e pobres do interior nordestino? Não tem sido este o sertão mais difundido culturalmente? Talvez justamente por guardar em si os contrastes tão intensos com o mundo urbano industrializado do litoral que acabei de citar?

O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga.” João Guimarães Rosa.

Sertão. Mas onde fica este espaço simbólico no outro espaço também simbólico chamado Brasil, ou pelo menos onde ficava? Podemos sobrepor ao sertão camadas de referências naturais, que também por questões históricas irão influenciar na sua constituição. Grosso modo, o que chamamos hoje de sertão sobrepõe-se ao planalto central brasileiro, uma vasta e plana região, salpicada de serras e chapadas, ainda de esparsa população, no interior do Brasil. Ele se limita com o Espinhaço e a mata atlântica, ou o que sobrou dela, a leste, e a oeste com a mata amazônica, no Mato Grosso, Pará e Tocantins. Seu bioma predominante é o cerrado, o segundo do Brasil, atrás apenas da mata amazônica. É a savana com a maior biodiversidade do mundo. Na parte norte do sertão, a partir da fronteira de Minas Gerais e Bahia e no Nordeste brasileiro, o cerrado é substituído pela caatinga, que é uma vegetação adaptada ao clima mais árido e aos solos pobres que predominam ali.

O sertão geográfico rosiano já é mais delimitado. Em Minas Gerais ele se situa no noroeste do Estado. Esta região corresponde também ao Gerais presente no nome. Os Gerais rosianos se emendam com partes da Bahia, Tocantins e Goiás. Quase toda a região está na bacia hidrográfica do rio São Francisco, o segundo maior do Brasil. Seu clima tem um regime de chuvas diferenciado, quase não chove em parte do ano. Entretanto, não pode ser considerado um ‘deserto’, como muitos ainda pensam. Como ser um deserto o lugar das nascentes do segundo maior rio do país?

A cidade acaba com o sertão.” Disse-nos João Guimarães Rosa.

Mas como? E por onde começar, pelo começo ou pelo fim? O sertão ainda existe? Se ele é essencialmente não-urbano, como ele se relacionou com as cidades ao longo do tempo?

O mundo rural e a civilização do couro, descritos no sertão rosiano, começam sua vida de trocas com as cidades abastecendo de carne e farinha as vilas mineradoras, durante o ciclo do ouro. Esse foi tênue ponto de contato entre um vasto Brasil que se construiu distante do rei, em latifúndios e arraiais (9), e o rosário de cidades mineradoras fortemente controladas pelo poder colonial.

Durante os anos da colonização portuguesa, a ausência de atrativos econômicos que justificassem uma maior penetração deste poder, associada às grandes distâncias que acarretaram o isolamento da região, fizeram do sertão um espaço de contraponto ao espaço costeiro, ocupado pela metrópole para produzir riquezas para si. As cidades mineradoras eram, até então, o ponto mais interior de penetração estruturada desta ‘civilização’. Durante o império essa configuração pouco muda. O vasto interior sertanejo continua rural, enquanto a urbanização ocorre com intensidade no litoral.

Na segunda metade do século 19, início do século 20, já com as cidades mineradoras esgotadas de riquezas, o sertão virá estabelecer um novo contato com a cidade. Justamente com a chegada da República. Inspirada em idéias positivistas e racionalistas, ela planeja a ‘ocupação’ do Brasil e projeta seu sonho político em direção ao seu centro. Sonho este que se materializa através do projeto de construção de cidades racionais.

Nesse momento é concebida e construída Belo Horizonte, planejada para ser capital, e construída em estilo eclético, com traços afrancesados, estruturada sobre uma planta geométrica e uma ocupação planificada das regiões urbanas. O antigo arraial de Curral del Rei, que existia no lugar, é completamente destruído para dar vez ao novo projeto de cidade. Nas palavras de Sérgio da Mata, “um momento simbólico muito forte é o da criação de Belo Horizonte, que demarca com muita clareza a afirmação de uma elite racionalista que pretende impor a modernidade, inclusive impô-la espacialmente. A grande ironia da história é que Canudos é destruída no ano da fundação da capital mineira: 1897”. Curiosamente, Belo Horizonte é planejada para se encerrar numa avenida que contorna a cidade, que deixa de fora justamente aqueles que foram construí-la, os operários, migrantes e outros, que constituem então os primeiros bairros populares, extracontorno.

É dessa época a decisão de se construir Brasília. Em 1892 parte a expedição Cruls, instituída pelo presidente militar Floriano Peixoto, para explorar o planalto central e demarcar o lugar da futura capital do país. O pensamento militar pressupõe que um lugar precisa ser ocupado antes que outros o façam.

Enquanto a República erguia Belo Horizonte e sonhava com Brasília, Euclides da Cunha, em Os Sertões (10) descrevia a guerra de Canudos. É nela que se revela nossa República, uma que não compreende seu próprio povo, constituída de cima para baixo, de fora para dentro, e que elege a aniquilação da diferença como caminho para a implantação de seu poder no vasto território ‘incivilizado’ do país. Euclides da Cunha, em sua nota preliminar, nos mostra o que encontraremos em Os Sertões:

A civilisação avançará nos sertões impellida por essa implacavel ‘força motriz da Historia’ que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitavel das raças fracas pelas raças fortes. A campanha de Canudos tem por isto a significação innegavel de um primeiro assalto, em lucta talvez longa.”

Fato digno de nota, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa registra no verbete favela, é que a acepção da palavra enquanto ‘habitação popular’ surge após a campanha de Canudos, quando os soldados e seus agregados, que retornam da ‘vitória’, pedem licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do morro da Providência e passam a chamá-lo morro da Favela, transferindo o nome do morro de Canudos, por lembrança ou por alguma semelhança que encontraram.

Nem enfraquece o asserto o termol-a realisado [a campanha de Canudos] nós filhos do mesmo solo, porque, ethnologicamente indefinidos, sem tradições nacionaes uniformes, vivendo parasytariamente à beira do Atlantico dos principios civilisadores elaborados na Europa... tivemos na acção um papel singular de mercenarios inconscientes. Além disto, mal unidos áquelles extraordinarios patricios pelo solo em parte desconhecido, delles de todo separa uma coordenada historica — o tempo.”

Ainda no início do século 20, surge um importante vetor de troca e penetração da sociedade urbana no sertão: a Central do Brasil. Nos primeiros anos do século, a estrada de ferro rasga o interior de Minas Gerais, conectando Belo Horizonte à então capital, Rio de Janeiro, e depois atravessa o sertão até Pirapora, interligando-se à navegação no rio São Francisco, conectando-se a Juazeiro, na Bahia. Pouco depois, a estrada se bifurca em Corinto, também no sertão, e segue para o norte, passando por Montes Claros na direção da Bahia.

São os tempos em que o sertão abastece de carne o Rio de Janeiro e São Paulo, através do embarque nos trens das tropas que chegam tocadas a cavalo, vindas dos grotões do interior. São estas boiadas que vão abastecer frigoríficos na Baixada Fluminense. É através da estrada que penetram o interior famílias de imigrantes europeus, em busca de oportunidades no fim dos trilhos. Cidades à beira da ferrovia, como Montes Claros, antigo Arraial das Formigas, crescem com o comércio. A produção que vinha de vastas áreas do interior mineiro, nordestino e do Centro-Oeste precisava chegar até a ferrovia para ganhar os mercados do eixo Rio-São Paulo. Além do gado, circulam pelo sertão o algodão para as tecelagens e outras commodities agrícolas.

É nesse período que a estrada começa a ser usada pelos sertanejos para deixar de vez seu mundo rural e partir rumo às cidades grandes, com mais ‘recursos’ e oportunidades de trabalho que o sertão latifundiário e pecuário que se estabelece. Enquanto as tropas dos jagunços de Rosa e os revoltosos de Prestes cruzavam os vãos do sertão, em torno da sua espinha dorsal, o rio são Francisco, um segundo eixo se construía, conectando-se à mancha urbana do litoral, num vetor de penetração rumo ao centro do território brasileiro. É importante ressaltar que pouco material encontramos sobre a Central do Brasil em nossa pesquisa nos acervos e bibliografias. O que me leva a crer que sua rica história ainda está por ser contada de forma mais abrangente.

Apesar da relevância de todos estes acontecimentos da primeira metade do século 20, é na era JK, na metade do século, que o sertão rosiano sofre sua mais profunda e radical mudança. Juscelino, que começou em Belo Horizonte, com a construção do conjunto ultramoderno da Pampulha, iniciou o segundo momento de penetração. Construiu a barragem de Três Marias no São Francisco e a seguir fez Brasília se tornar realidade. Agora, o sertão de Rosa não ficaria na ponta de um caminho de trilhos até a capital, mas se situaria entre a antiga e a nova capital, cortado pelo asfalto da 040 e recebendo novas influências.

Juscelino Kubitschek explicitamente planeja e executa a segunda onda de ocupação do sertão, com um projeto de urbanização, industrialização, transportes e energia sintetizado em Brasília. Nas suas palavras, em discurso a trabalhadores de Brasília, no Primeiro de Maio (11): “A presença do presidente da República no planalto central do Brasil, no Primeiro de Maio, marca um pensamento novo, um sentido novo na vida nacional. Já estamos sentindo que soa nossa hora. Não é mais possível limitar a existência deste país à faixa litorânea. O necessário é levantar todas as forças vivas do Brasil e encará-las num esforço constante e tenaz e conquistar, para a produção e a riqueza futura desta nação, este imenso império até então abandonado e deserto.”

Lúcio Costa (12) nos conta que o projeto de Brasília “começou com o gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal-da-cruz”. Com sua construção, as forças ‘civilizadoras’ e ‘modernizantes’ deixariam o litoral para se apoderar do nosso vasto território.

Mas de que forma? Brasília, assim como já foi dito sobre Belo Horizonte, também é construída a partir de um plano, que uma vez realizado acaba por também não incluir o povo na planta da cidade. As cidades-satélites é que vão crescer e circundar a polis racional e modernista, criada para dinamizar a ocupação do interior e abrigar os ‘representantes do povo’. Novamente, a cidade racional republicana menospreza sua própria gente, no caso de Brasília, os candangos, curiosa palavra que designa os brasileiros que de fato construíram a cidade. Segundo o dicionário, candango é uma palavra de origem africana que significa ruim, ordinário, vilão, e que foi usada pelos africanos para designar os portugueses invasores na África.

Os breves anos de JK foram sucedidos pela longa duração da ditadura militar, que continua seu projeto modernizante no sertão: asfaltando estradas, criando uma rede de telecomunicações com a televisão e a telefonia, construindo grandes obras e interiorizando a indústria brasileira. Não podemos nos esquecer que a expansão definitiva desse segundo ímpeto ‘modernizante’ se dá sob um regime ditatorial, onde a nova ordem foi imposta sem uma discussão aberta e democrática sobre qual modelo de desenvolvimento seria melhor para o país. Vive-se então o ‘milagre econômico’. O governo fornece incentivos para a devastação (13), para a transformação do cerrado em carvão, que iria alimentar a pujante indústria siderúrgica mineira, enquanto seriam formados pastos homogêneos para criação extensiva de bovinos. Na seqüência, anos mais tarde, promove a chegada da indústria florestal ao sertão, com os incentivos ao plantio de eucalipto nas áreas degradadas.

E assim se passaram anos, com a região sendo livremente devastada, sem que o país soubesse ou se preocupasse. Um processo rápido e impiedoso, que segundo o Ibama já consumiu 80% da cobertura original de cerrado, apenas nas últimas décadas.

Somente no período da redemocratização é que surgem novas leis de proteção ambiental e começam ações que tentam organizar essa ocupação, que ainda hoje continua fortemente predatória.

Não só a legislação avançou nas últimas duas décadas. Surge pela primeira vez um vigoroso pensamento preocupado com a iminente extinção do cerrado e com a ocupação irracional da região. Governo, ONGs e empresas buscam hoje compatibilizar as necessidades do mundo urbano com a preservação do meio ambiente e da cultura do sertão. Pela primeira vez se pensa que cidade e sertão não têm que predominar um sobre o outro, mas estabelecer trocas vantajosas para ambos. Um longo caminho, entretanto, é necessário para pavimentar essas idéias em ações efetivas que modifiquem o curso atual dos acontecimentos.

Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.” João Guimarães Rosa.

Se por um lado chegou ao sertão um agronegócio avesso à mão-de-obra, interessado na exploração de suas grandes extensões facilmente mecanizáveis, dali saíram os sertanejos, no maciço êxodo rural do período militar e anos posteriores. São essas famílias que irão formar os grandes aglomerados urbanos nas cidades industrializadas. Ali encontravam o trabalho que perdiam no campo, e ali mudavam subitamente de habitat. É a geração da roça na cidade, que se adapta e gera seus primeiros filhos, que mais tarde sofreriam o impacto da recessão profunda e duradoura dos últimos governos militares e dos próximos civis, se constituindo num vasto contingente de desempregados e ‘informais’, marginalizado e paradoxalmente integrado ao ideário urbano consumista, construído pela mídia e pela propaganda.

Se adensam as ‘periferias’, nos subúrbios e morros das cidades, enquanto se intensificam as transformações no sertão, agora visto como espaço utilizável para produzir riqueza para o mundo urbano. E para produzir em novo molde, industrial e exportador. Já ocupado pela criação extensiva de gado, agora em pastagens homogêneas, e pelas florestas de eucalipto, o sertão recebe uma nova indústria, já no final do século 20, já no período democrático. Chega ali a agricultura extensiva mecanizada. As grandes plantações irrigadas de soja e outros grãos que fazem a potência exportadora do Brasil. E trazem os dólares que trocamos pela amortização da nossa dívida e pelas importações necessárias ao funcionamento da sociedade urbana.

Vemos que, nesses últimos 50 anos, o mundo urbano e industrial chegou ao sertão de Rosa para torná-lo uma extensão da cidade. Como diria o historiador José Carlos Reis (14), atualmente “o sertão se torna um subúrbio especializado numa nova indústria, o agronegócio”.

A ocupação contemporânea do sertão expressa a voracidade da civilização capitalista e globalizada do início do século 21 por insumos e matérias-primas. Tudo aquilo que é ‘vazio e externo’ a ela, potencialmente pode ser explorado.

Aqui e acolá, já seguimos uma lógica de mercado, acompanha-se o câmbio, estão todos atrelados ao sistema financeiro internacional. Boa parte da cadeia produtiva do sertão está em mãos de algumas companhias, muitas multinacionais, especializadas na comercialização de alimentos e insumos industriais em escala planetária. A cidade e o sertão começam a operar em função das mesmas demandas.

Por isso a demanda de ferro da China acende os altos-fornos mineiros e incendeia o sertão. Por isso os superávits de soja são trocados por juros e bens importados, que são usados pela sociedade urbana e consumista de hoje. Por isso nos olham com muita atenção países que têm muita população e poucos recursos naturais. Somos alvo da sua cobiça.

E vivemos o conflito de sermos eficientes dentro do padrão ocidentalizado, com a produção em larga escala, do álcool, da madeira reflorestada, do boi verde, do biodiesel, enquanto devastamos o que nos resta, como se a natureza não fosse se manifestar depois dessa enorme modificação. Não estamos pensando de forma responsável no assunto. O Brasil se propõe a produzir alimentos e energia para o mundo e não se organiza para fazê-lo de forma sustentável, pensando no meio ambiente e na sua população. Por isso, ainda vivemos o paradoxo dos sem-terra na imensidão do sertão. Mais paradoxal, mas totalmente explicável, é a origem de muitos ali, sertanejos urbanos, sem trabalho, na cidade ou na terra.

E a cidade nos dias de hoje? Onde está o projeto utópico de Brasília? Infelizmente, podemos ver concretizada a profecia de Darcy Ribeiro, do seu livro Aos Trancos e Barrancos, escrito na década de 1980:

O Brasil cresceu visivelmente nesses oitenta anos. Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido, desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro. Nossa jaula são as estruturas sociais medíocres, inscritas na Constituição e nas leis, para compor um país da pobreza na província mais bela da terra. Se continuarmos sob a vigência destas leis, no Brasil do futuro a maioria da gente nascerá e viverá nas ruas em fome canina e ignorância figadal, enquanto a minoria rica, com medo dos pobres, se recolherá em confortáveis campos de concentração, cercados de arame farpado e eletrificado” (15).

Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.” João Guimarães Rosa.

Por ora podemos deixar de lado os engarrafamentos, a poluição e tantos outros problemas que afligem nossas cidades. Podemos começar pelos bairros fora do contorno, nas cidades-satélites, nos morros, nesse estacionamento da ‘máquina de moer gente’, descrita por Darcy, na ociosidade onde se moldam os novos jagunços e cangaços de hoje, num ambiente propício à eclosão de experiências bárbaras. Onde se instituiu um novo mundo, uma espécie de laboratório de criação de Estados em seu momento mais inicial, poderes emergentes através da violência de bandos armados, que se organizam em ‘firmas’ que estabelecem contato com a ‘pista’, que as combate e ao mesmo tempo se interessa por seus produtos.

Vemos pasmos a eclosão de proto-Estados guerreiros, que se alastram, conectando essas periferias, utilizando-se de armamento cada vez mais pesado e das novas tecnologias. Se aproveitando do completo desmanche do Estado e da deplorável situação do poder judiciário e prisional. Se ramificando cada vez mais nos setores médios da população, estagnados pelo desemprego, produzindo também ‘soldados’ e ‘consumidores’ para a ‘firma’, que negocia e estabelece acordos e estratégias de ação frente ao Estado instituído.

Pouco a pouco caem favelas inteiras. Pouco a pouco se descartografam também áreas territoriais mais amplas, como o sertão de Pernambuco, onde, como numa favela dominada, está vedado ao ‘brasileiro’ entrar. Por isso, emblemática e paradoxal a imagem de um soldado do Exército desfraldando a bandeira brasileira no alto do morro ocupado no Rio de Janeiro por ocasião dos confrontos pelo roubo de armas dos militares. Por isso, o documentário Falcões do Tráfico é exibido com legendas em português...

Vivemos numa guerra intersticial, que resulta em índices de mortalidade superiores a guerras instituídas, contando aí também as fatalidades dos ‘civis’ e ‘inocentes’. Por isso caberia admitir que já estamos em guerra. O que se gasta com segurança no Brasil já atinge cifras assustadoras. Criamos nas últimas décadas um exército de seguranças, porteiros, vigias, cartões, cercas e câmeras que não resolveram o problema e que nos encaminham para a sociedade de vigilância total. Vários autores, entre eles Wim Wenders, no seu filme O Fim da Violência, nos mostram como este sistema de controle total é ineficiente e totalitário. Sobre o cidadão comum, além dos impostos e da violência crescente, chega o fardo do big brother de Orwell, não numa sociedade stalinista como ele imaginava, mas numa capitalista.

A população, especialmente os mais pobres, se encontra em pleno campo de batalha. Sofrendo as arbitrariedades das forças de segurança do Estado e das forças de segurança das ‘firmas’.

Citando as palavras do ‘general’ do exército do crime, que enfrentou recentemente o Estado brasileiro:

Estão declarando uma guerra, esquecendo que estão deixando a sociedade à mercê (dessa guerra). Porque dentro de uma guerra onde as duas partes estão com poderio de fogo (polícia e bandidos), acho que quem tem a perder são apenas as pessoas que não têm nada a ver com ambas as partes.”

Hoje nas cidades estamos cercados pela violência, pelo apelo do controle total e pela sociedade do consumo e da mídia. Longe de civilizadas, no sentido de racionais e evoluídas, são cada vez mais perigosas e caóticas. Por isso, nossas concepções sobre a cidade, modernidade e civilização não podem mais ser entendidas em suas acepções clássicas. Precisamos todos enxergar mais. Refazer conceitos. Pois uma nova paisagem se formou diante de nós em tão pouco tempo.

Sertão e cidade não são mais mundos distintos e distantes, mas a mesma extensão que agora abraça a Amazônia, sua última fronteira geográfica em território brasileiro. Uma mesma extensão de uma civilização que ocupou para si o sertão, e que agora ganha descontinuidades instabilizantes, como os bolsões urbanos e rurais ocupados pelo crime organizado e pela ‘informalidade’. Extensão essa complexa e mutante, fruto de um processo de desenvolvimento predador, invasivo e excludente, que precisa urgentemente ser equacionado. Sem o desenvolvimento sustentável e inclusivo não estaremos melhorando, mas piorando cada vez mais.

“Ah Diadorim, e tantos anos se passaram...” João Guimarães Rosa.

Eu era um representante daquela cidade que se recusava ao diálogo e desejava se sobrepor ao sertão. Eu estava cercado de geringonças mecânicas, queimava gasolina num Ford azul, enquanto produzia e editava imagens. Eu, cercado de eletroeletrônicos e dispositivos digitais, fazendo meu faroeste com grua. Eu também diante da história.

História que é mudança, mudaram as pessoas, mudei eu, mudou a paisagem, mudou o Brasil. E não podia deixar de chorar os sofrimentos de uma imaginação que pensou caminho melhor para ele. Logo eu, representante de um mal-estar, e talvez o mais rural dos urbanos, vivendo a incompreensão de algum tipo de consciência desgarrada, produzida na mesma civilização ocidental urbana. Eu não desejava um retorno à civilização do couro, nem à civilização urbana, imposta aos largos e planos horizontes do nosso país. Eu estava ainda sem lugar. Eu era um displaced. Um refugiado de guerra, ainda vivendo na utopia, buscando encontrar meu lugar, como tantos brasileiros.

Um bárbaro no sentido contemporâneo, inassimilável pelo império que hoje arquiteta a dominação global. Consciente da nossa posição marginal diante dos centros desse poder. Consciente de que as ‘civilizações’ se renovam, quando subitamente caem esses impérios. Jamais cruel ou inculto. Jamais um mercenário inconsciente. Disposto a pensar na possibilidade civilizatória para o Brasil. Não essa imposta de fora pra dentro, mas uma dialógica, construída a partir do entendimento do outro e da diversidade.

Curral del Rei
maio de 2006

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(1) João Guimarães Rosa — Grande Sertão: Veredas — Terceira edição, Livraria José Olympio Editora, 1963.

(2) Walter Benjamin — Obras Escolhidas — Magia e Técnica, Arte e Política — Primeira edição, Editora Brasiliense, 1985.

(3) Álvaro Andrade Garcia — Viagem com o Rio São Francisco — Mazza Edições, 1987.

(4) Lawrence Ferlinghetti — Vida sem Fim — Editora Brasiliense, 1981.

(5) Web documentário www.sertoes.art.br, Ciclope, 2005.

(6) Willi Bolle — Grandesertão.br — O Romance de Formação do Brasil — Editora Duas Cidades/ Editora 34, 2004.

(7) Sérgio da Mata — Chão de Deus — Catolicismo Popular, Espaço e Proto-Urbanização em Minas Gerais, Brasil, Séculos XVIII-XIX — Wiss Verl./ Köln,Univ., Diss., 2002.

(8) Michael Lowy — Barbárie e Modernidade no Século 20 — in Em Tempo, 1. Documento eletrônico.

(9) Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial — IX — O Sertão — Fundação Biblioteca Nacional, Dept.º Nacional do Livro — documento eletrônico.

(10) Euclides da Cunha — Os Sertões — 15.ª edição corrigida, Livraria Francisco Alves, 1940.

(11) Juscelino Kubitschek — www.sertoes.art.br — Grandes Histórias — Represa — Imagens do Arquivo Público do Distrito Federal.

(12) Lúcio Costa, em Brasília, Memória da Construção — Tamanini, Brasília, 1994.

(13) Web documentário www.sertoes.art.br — Grandes Histórias — Represa — Propaganda da Embrater — Imagens do Arquivo Público Nacional.

(14) José Carlos Reis — Identidades do Brasil: de Varhagen a FHC — Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1999.

(15) Darcy Ribeiro — Aos Trancos e Barrancos — Como o Brasil Deu no que Deu — Editora Guanabara, 1985.