O regional universal

 [Perce Polegatto]

Mestres do conto, como Maupassant e Anton Tchekhov, expressaram-se por meio de uma linguagem simples, clara e direta. Seus temas eram regionais – as cidades onde viviam, os tipos humanos cujas atitudes observaram, assimilaram e traduziram (ou tentaram, ao menos, traduzir), culminando toda essa atividade em uma obra universal. Até porque, como nos lembrou Leon Tolstói, se quisermos ser universais, devemos começar por nossa aldeia. 

Os contos de Geovane Fernandes seguem esta linha estrutural e estilística: são as pessoas simples compartilhando a vida comum a cidades interioranas, sem grandes feitos heroicos ou situações externas complexas. Fica claro, desde o início, que o autor não se contentará com apenas descrever personalidades e narrar suas vidas (ou partes de suas vidas). Entre as palavras que abrem Paradeiro (o conto e a coletânea), encontram-se, reveladores e surpreendentes, os sinais de inquietudes e maravilhas ante a ausência de respostas ao lermos que a personagem surpreendia-se com sua existência numa cama. Dormia tarde, expandia a insônia, e eis que a entrega preguiçosa da alma intensificava o silêncio.

 

Neste livro, o leitor consciente contará com a comunicabilidade das ideias, por meio da excelência na linguagem, do simbólico lacaniano, à maneira dos melhores mestres contistas. No fundo, todos queremos saber – queremos saber algo mais, queremos perguntar, embora não nos iluminem as respostas. Não raras vezes, queremos, ambiciosamente e em momentos de ousadia metafísica, saber tudo! O leitor, o humano, em seu espaço e em seu tempo, busca, consciente ou inconscientemente, um apoio às suas perguntas veladas, às suas agitações. É essa busca que os contos de Geovane Fernandes nos desperta, sob o disfarce dos dias comuns, das pessoas em suas vidas sem heroísmo, melhor dizendo, heroicas justamente pela complexidade de seu silêncio, por seu anonimato enquanto intimamente propõem questões indissolúveis.

 

A homogeneidade estilística parece não desacostumar o leitor ao mudar de um conto para outro, ao atravessar as janelas expostas de cada narrativa transpondo o tempo e o espaço entre um cenário e outro, entre um grupo de personagens e outro. No fundo, são os indivíduos em suas vidas fragmentadas e plurais, tornadas profundas, reveladoras, inquiridoras de si mesmas, a partir de uma rotina aparentemente inofensiva. Nesse sentido, o narrador se torna uma espécie de amigo, ao qual só nos falta dizer algo em troca, pois ele confere a suas personagens voz de pensar. E também, partindo do princípio de que quanto mais vivência regional, mais universal, temos em Paradeiro a transcendência filosófica moldada à simplicidade dos tipos humanos, apropriada entre o dia e a noite, quando não durante as noites de intenso silêncio, que, em vez de diluírem-se ao romper do dia, parecem continuar sob outro disfarce.

As falas das personagens entram em dosagens calculadas pontuando a prosa, sem declinar a uma sequência de diálogos a lembrar uma peça teatral ou a permitir o adensamento da prosa sem a participação deles. Sem as falas diretas, as personagens prosseguem, em sua introspecção, e a narrativa nos brinda com achados poéticos quando, numa aventura da alma, corria no peito uma inspiração, um desejo inquietava o silêncio. O vapor das estradas o conservava, o vento emudecia o fenômeno de viver no que há de modesto e penetrante. E como a personagem Ada, de O segredo da vida, parece resumir a atividade mental característica de nossa espécie – as palavras – pois ela nem sempre sabia o que dizia, mas se sentia salva em dizer [...] Ainda assim, no caso de Ada, palavras como mero estado de graça. Não é uma história o predominante na obra, mas o não dito em ação. Para o filósofo argentino Santiago Kovadloff, o silêncio é, não raro, um veículo de ideias ou proposições reveladoras ao leitor que se permite conduzir pela interpretação da não palavra.  Com efeito, o autor, ao evitar o gratuito e o decorativo, dispensa a hemorragia verbal e planeia a exploração do calar e o condicionamento de uma leitura que busca a insinuação, os rastros emblemáticos de uma literatura sem falsos adornos. O estado de tensão está na procura pelo sentido no não verbal nas palavras do narrador-observador:  

Acompanhava com olhos livres a vibração dos pequenos. Quase nunca havia entre ele e os filhos trocas de beijos e de abraços. O amor não costumava alterar o dia a dia. Antes, estava provado na boa convivência, na confiança de encontrarem a porta sempre aberta. Precisava ser forte quando estava bem. Incapaz de deixar escapar o próprio contentamento, esgueirava-se na atmosfera do dia comum. Sua felicidade se alargava em alívio de liberdade solitária; não menos liberdade na forma de permitir mistério, entrega e risco. Faltava nele o rosto, mas havia-lhe a alma.  A manifestação do beijo e do abraço ocorria em honesto sentimento unindo-os caladamente. Filhos, não se afastem muito, pensava confiante, num arremesso de alegria sem clara expressão.

Sobre o universal a partir de vivências locais, aludimos a García Márquez ao ambientar suas narrativas na cidade fictícia que ele chamou Macondo, assim como fez Faulkner, com o condado imaginário de Yoknapatawpha. Mas não se faz imperativo inventar nomes de cidades ou mesmo mencionar localidades existentes, como o fizeram, por exemplo, Osman Lins e Graciliano Ramos em seus contos. Quanto à obra de Geovane Fernandes, os indivíduos transitam, podem estar neste ou naquele lugar, porque, essencialmente, os dramas metafísicos universalizam tal ou qual espaço na narrativa. E é exatamente pelo cuidado em evitar bairrismos, que são intensificadas as crises internas. Por essa razão, a abundância de informações cede lugar à ampla problematização de eventos banais. Eis o que define o projeto literário do Paradeiro: a pouca ação, o desinteresse por expressivo detalhamento dos fatos, os recortes da vida das personagens, o empenho em descrever, prioritariamente, impactos existenciais. Assim, é permitido um efeito máximo no leitor disposto a percorrer a complexidade psicológica do indivíduo no mundo.

Perce Polegatto é professor na área de Letras, com especialização em literatura. Trabalha, atualmente, como editor de livros didáticos. É autor dos romances, Os últimos dias de agosto, A seta de Verena, Marcas de gentis predadores e dos livros de contos, A conspiração dos felizes, Lisette Maris em seu endereço de inverno e Inconsistência dos retratos. A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos.