O QUE É POESIA? - VISÕES DE DIEGO MENDES SOUSA
Por Diego Mendes Sousa Em: 14/01/2025, às 22H05
DIEGO MENDES SOUSA
1 - O que é poesia para você?
DMS - A Poesia é o rastilho da luz sobre o humano. O sopro, o estro, o tom, a voz, a essência e a música dos tempos. Algo superior, que escapa das mãos e atinge o coração, sendo ascendente na inteligência e nos sentidos, com espanto, mistério, intuição, estranheza e magia. No poema Certeza, extraído do meu livro de poemas Agulha de coser o espanto (2023), revelo: Poesia / é o pássaro / afogado / no mar // o peixe alado / sobre a terra / firme // a luz fugidia / na manhã // o diáfano / no deserto // o rosto / sem tempo // a matéria /sangrenta // o vento / estático / da vida // e o segredo // Poesia / é a fé / e a febre // a dor e o amor // o olhar / no silêncio / e o degredo // a mudez do grito / a vela do incêndio / a ausência / do destino // Poesia / é o pensamento / é o sentimento / é o deslumbramento / desse canto / amargo // Antes de tudo / e depois do nada // o fim do começo // e o início do fim // Poesia / é a mãe / do mistério / e a solidão / da sombra // (a casa / íntima / da alma) // Poesia / é a agulha / de coser / o espanto // a vaga lírica / a tristeza da alegria / magra // o encanto.
2 - O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
DMS - Fiz o meu caminho com integridade e sabedor de que a Poesia é a habilidade da palavra, da metáfora e do enigma. Na remota mocidade, li gramáticas da língua portuguesa, dicionários, teoria da literatura, livros de história e de geografia, além dos livros de filosofia e da alta narrativa, sem esquecer as línguas estrangeiras, por acreditar que o poeta deve ser o senhor dos seus instrumentos: a linguagem, a imaginação e a invenção. É o meu arquétipo de escritor, a consciência de que a beleza é o permanente norte da autêntica Poesia, pois o adágio anônimo confere a assertiva: todos os caminhos levam a Roma.
3 - Cite-nos 3 poetas e 3 textos (poemas ou livros) referenciais para o seu trabalho poético. Justifique suas escolhas.
DMS - Os três poetas que guardo na predileção são Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke e Astrid Cabral. Hölderlin reverberou a inocência, essa ânfora recolhida no poético; Rilke, a precariedade arrebatadora do ser; Astrid Cabral, o concerto verbal, aparentemente comezinho, porém extraordinário e sublime.
Os três poemas que me arrancam do real são Pietà, de Rainer Maria Rilke; Adoração, de Dora Ferreira da Silva, e Um poeta, de Gerardo Mello Mourão.
O magistral poema Pietà é o compêndio da infinita dor universal; Adoração, a transcendência em imagens e a fuga do sentir; Um poeta, a grandeza do testemunho, sendo uma peça ímpar em metalinguagem existencial e profética.
RAINER MARIA RILKE
PIETÀ (Rainer Maria Rilke)
Fills now my cup, and past thought is
my fulness thereof. I harden as a stone
sets hard at its heart.
Hard that I am, I know this alone:
that thou didst grow –
- - - - - and grow,
to outgrow,
as too great pain,
my heart’s reach utterly.
Now liest thou my womb athwart,
now can I not to thee again
give birth.
***
DORA FERREIRA DA SILVA
ADORAÇÃO (Dora Ferreira da Silva)
Difícil chamar-te pelo nome, agora
que és tudo em meu chamado.
Ecoas. Água da sede,
bebo-te em silêncio.
E despojo-te da imagem no transparente ser e estar
sem perceber que sou e estou que és e estás
entregues ao não-saber
do quando e onde
sempre e agora
e te sou
e me és
estando no infinito estar
sendo no infinito ser
que nos envolve e abarca silenciosa viagem
adeus.
***
GERARDO MELLO MOURÃO
UM POETA (Gerardo Mello Mourão)
Hás de testemunhar ruínas
antes de existirem ruínas:
engenheiro de troços e destroços
empreitaras demolições —
desmoronaste muros.
Profeta — risca riscaste riscarás
roteiros de pássaros no ar — e riscas
calendários passados e futuros — riscas
a arquitetura dos escombros
antes durante e depois deles
os tempos ouvem ouviram e ouvirão
esses passos de pedra
que pisam pisaram pisarão
rosa, lírio, jasmim e às vezes
ovelhas imoladas.
Maios, janeiros, setembros e os outros meses
meses azuis e meses pluviais
te saúdam à beira das falésias à beira-mar à beira-rio
à beira-abismos à beira séculos:
piloto do naufrágio
governador dos tempos tetrarca dos milênios
arquivista — tabelião das eras
só os dias, poeta, e as noites, te conhecem
sabem teu nome
e nenhum outro nome.
***
ASTRID CABRAL
ÁUREOS TEMPOS (Astrid Cabral)
Áureos tempos aqueles
quando na manhãzinha goiaba
colhíamos no cerrado gabirobas
ainda vestidas de orvalho.
Pés e patas competiam no capim
pródigo de carrapichos.
Gestos elásticos ultra-rápidos
assustávamos insetos e aves.
Um séquito de suaves súditos
nos seguia em semi-adoração
nós, os príncipes daquele feudo.
Depois, o asfalto rasgou o campo.
Cogumelos de concreto brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade.
Anãs ficaram as árvores aos pés
de edifícios colossais. Sumiram
pássaros gabirobas araçás.
Fim de passeios e piqueniques.
Só ficou a fome funda das frutas
no vão sem remissão das bocas.
TRÊS POEMAS DE DIEGO MENDES SOUSA
ORIGEM
Mergulho a cabeça,
os sentidos
[as orelhas, os olhos,
a boca, o nariz, as mãos,
ah, as memórias...]
e os pés d'água
na infância
feito raiz
a perfurar
o solo genesíaco
do meu berço
de sentimentos.
terra-e-mar
terra-e-ondas
terra-e-dunas
terra-e-rio
terra-e-terra
terra-e-destino
terra-e-tempo
onde plantei
o coração
e essa imaginação
fecunda
de voar enterrado
no chão.
CEGA-REGA
Procuro-te, cigarra,
entre as árvores
do meu visível
encanto.
Procuro-te no celestial
que há entre o humano
e a cantoria do tempo.
Procurar-te é canseiroso,
pouco revelado.
Lancinante é encontrar
o sublime.
EX NIHILO
Do nada, tudo vem...
Vem a metafísica
da angústia criadora,
vem a estranheza
do ser extinto,
vem a existência
da fuga originária,
vem a rebelião
da vida dorida,
vem a música
do desencanto
envelhecedor.
Do nada, vem tudo...
Vem a consumação
do sono agônico,
vem a sombra
da tristeza
anterior à vaga
do instinto,
vem o olhar
da natureza-morta
e precária,
vem o limite
do mundo amargo,
vem o achamento
da luz escassa,
vem o estro sideral
nas águas temporãs.
Do nada, tudo vem...
Vem o assalto ao pensar,
vem o próprio pensamento
e o pássaro do absurdo,
vem o abismo do destino,
vem a ascensão do sonho,
vem a claridade e a queda
em suspense.
Do nada, vem tudo...
E passa o relâmpago
da imagem estilhaçada
no sopro do tempo
que vem do nada
que é tudo
e é nada.
Diego Mendes Sousa (1989-) é poeta, cronista, crítico, memorialista, filho da Parnaíba (costa do Piauí - Brasil) e autor dos livros de poemas Divagações (2006), Metafísica do encanto (2008), 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2010), Fogo de alabastro (2011), Candelabro de álamo (2012), Gravidade das xananas (2019), Tinteiros da casa e do coração desertos (2019), O viajor de Altaíba (2019), Velas náufragas (2019), Fanais dos verdes luzeiros (2019), Rosa numinosa (2022), Agulha de coser o espanto (2023) e O escrevente do chão (2024). E-mail: [email protected]