RAINER MARIA RILKE
RAINER MARIA RILKE

 

 

DIEGO MENDES SOUSA

 

 

1 - O que é poesia para você?

 

DMS - A Poesia é o rastilho da luz sobre o humano. O sopro, o estro, o tom, a voz, a essência e a música dos tempos. Algo superior, que escapa das mãos e atinge o coração, sendo ascendente na inteligência e nos sentidos, com espanto, mistério, intuição, estranheza e magia. No poema Certeza, extraído do meu livro de poemas Agulha de coser o espanto (2023), revelo: Poesia / é o pássaro / afogado / no mar // o peixe alado / sobre a terra / firme // a luz fugidia / na manhã // o diáfano / no deserto // o rosto / sem tempo // a matéria /sangrenta // o vento / estático / da vida // e o segredo // Poesia / é a fé / e a febre // a dor e o amor // o olhar / no silêncio / e o degredo // a mudez do grito / a vela do incêndio / a ausência / do destino // Poesia / é o pensamento / é o sentimento / é o deslumbramento / desse canto / amargo // Antes de tudo / e depois do nada // o fim do começo // e o início do fim // Poesia / é a mãe / do mistério / e a solidão / da sombra // (a casa / íntima / da alma) // Poesia / é a agulha / de coser / o espanto // a vaga lírica / a tristeza da alegria / magra // o encanto.

 

 

2 - O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

DMS - Fiz o meu caminho com integridade e sabedor de que a Poesia é a habilidade da palavra, da metáfora e do enigma. Na remota mocidade, li gramáticas da língua portuguesa, dicionários, teoria da literatura, livros de história e de geografia, além dos livros de filosofia e da alta narrativa, sem esquecer as línguas estrangeiras, por acreditar que o poeta deve ser o senhor dos seus instrumentos: a linguagem, a imaginação e a invenção. É o meu arquétipo de escritor, a consciência de que a beleza é o permanente norte da autêntica Poesia, pois o adágio anônimo confere a assertiva: todos os caminhos levam a Roma.

 

3 - Cite-nos 3 poetas e 3 textos (poemas ou livros) referenciais para o seu trabalho poético. Justifique suas escolhas.

 

DMS - Os três poetas que guardo na predileção são Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke e Astrid Cabral. Hölderlin reverberou a inocência, essa ânfora recolhida no poético; Rilke, a precariedade arrebatadora do ser; Astrid Cabral, o concerto verbal, aparentemente comezinho, porém extraordinário e sublime.

Os três poemas que me arrancam do real são Pietà, de Rainer Maria Rilke; Adoração, de Dora Ferreira da Silva, e Um poeta, de Gerardo Mello Mourão.

O magistral poema Pietà é o compêndio da infinita dor universal; Adoração, a transcendência em imagens e a fuga do sentir; Um poeta, a grandeza do testemunho, sendo uma peça ímpar em metalinguagem existencial e profética.

 

 

 

RAINER MARIA RILKE

PIETÀ (Rainer Maria Rilke)

 

Fills now my cup, and past thought is

my fulness thereof. I harden as a stone

sets hard at its heart.

Hard that I am, I know this alone:

that thou didst grow –

- - - - - and grow,

to outgrow,

as too great pain,

my heart’s reach utterly.

Now liest thou my womb athwart,

now can I not to thee again

give birth.

 

***

 

 

DORA FERREIRA DA SILVA

 

 

          ADORAÇÃO (Dora Ferreira da Silva)

 

          Difícil chamar-te pelo nome, agora
          que és tudo em meu chamado.
          Ecoas. Água da sede,
          bebo-te em silêncio.
          E despojo-te da imagem no transparente ser e estar
          sem perceber que sou e estou que és e estás
          entregues ao não-saber
          do quando e onde
          sempre e agora
          e te sou
          e me és
          estando no infinito estar
          sendo no infinito ser
          que nos envolve e abarca silenciosa viagem
          adeus.

 

***

 

GERARDO MELLO MOURÃO

 

 

         UM POETA (Gerardo Mello Mourão)

 

         Hás de testemunhar ruínas

         antes de existirem ruínas:

         engenheiro de troços e destroços

         empreitaras demolições —

         desmoronaste muros.

 

         Profeta — risca riscaste riscarás

         roteiros de pássaros no ar — e riscas

         calendários passados e futuros — riscas

         a arquitetura dos escombros

         antes durante e depois deles

         os tempos ouvem ouviram e ouvirão

         esses passos de pedra

         que pisam pisaram pisarão

         rosa, lírio, jasmim e às vezes

         ovelhas imoladas.

 

         Maios, janeiros, setembros e os outros meses

         meses azuis e meses pluviais

         te saúdam à beira das falésias à beira-mar à beira-rio

         à beira-abismos à beira séculos:

         piloto do naufrágio

         governador dos tempos tetrarca dos milênios

         arquivista — tabelião das eras

         só os dias, poeta, e as noites, te conhecem

         sabem teu nome

         e nenhum outro nome.

 

 

 

***

 

ASTRID CABRAL

 

 

ÁUREOS TEMPOS (Astrid Cabral)

 

Áureos tempos aqueles

quando na manhãzinha goiaba

colhíamos no cerrado gabirobas

ainda vestidas de orvalho.

Pés e patas competiam no capim

pródigo de carrapichos.

Gestos elásticos ultra-rápidos

assustávamos insetos e aves.

Um séquito de suaves súditos

nos seguia em semi-adoração

nós, os príncipes daquele feudo.

Depois, o asfalto rasgou o campo.

Cogumelos de concreto brotaram.

Cresceram as crianças e a cidade.

Anãs ficaram as árvores aos pés

de edifícios colossais. Sumiram

pássaros gabirobas araçás.

Fim de passeios e piqueniques.

Só ficou a fome funda das frutas

no vão sem remissão das bocas.

 

 

 

TRÊS POEMAS DE DIEGO MENDES SOUSA

 

 

 

ORIGEM

 

 

Mergulho a cabeça,

os sentidos

[as orelhas, os olhos,

a boca, o nariz, as mãos,

ah, as memórias...]

e os pés d'água

na infância

feito raiz

a perfurar

o solo genesíaco

do meu berço

de sentimentos.

 

terra-e-mar

terra-e-ondas

terra-e-dunas

terra-e-rio

terra-e-terra

terra-e-destino

terra-e-tempo

onde plantei

o coração

e essa imaginação

fecunda

de voar enterrado

no chão.

 

 

CEGA-REGA

 

 

Procuro-te, cigarra,

entre as árvores

do meu visível

encanto.

 

Procuro-te no celestial

que há entre o humano

e a cantoria do tempo.

 

Procurar-te é canseiroso,

pouco revelado.

 

Lancinante é encontrar  

o sublime.

 

 

 

EX NIHILO

 

 

Do nada, tudo vem...

 

Vem a metafísica

da angústia criadora,

vem a estranheza

do ser extinto,

vem a existência

da fuga originária,

vem a rebelião

da vida dorida,

vem a música

do desencanto

envelhecedor.

 

Do nada, vem tudo...

 

Vem a consumação

do sono agônico,

vem a sombra

da tristeza

anterior à vaga

do instinto,

vem o olhar

da natureza-morta

e precária,

vem o limite

do mundo amargo,

vem o achamento

da luz escassa,

vem o estro sideral  

nas águas temporãs.

 

Do nada, tudo vem...

 

Vem o assalto ao pensar,

vem o próprio pensamento

e o pássaro do absurdo,

vem o abismo do destino,

vem a ascensão do sonho,

vem a claridade e a queda

em suspense.

 

Do nada, vem tudo...

 

E passa o relâmpago

da imagem estilhaçada

no sopro do tempo

que vem do nada

que é tudo

e é nada.

 

 

Diego Mendes Sousa (1989-) é poeta, cronista, crítico, memorialista, filho da Parnaíba (costa do Piauí - Brasil) e autor dos livros de poemas Divagações (2006), Metafísica do encanto (2008), 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2010), Fogo de alabastro (2011), Candelabro de álamo (2012), Gravidade das xananas (2019), Tinteiros da casa e do coração desertos (2019), O viajor de Altaíba (2019), Velas náufragas (2019), Fanais dos verdes luzeiros (2019), Rosa numinosa (2022), Agulha de coser o espanto (2023) e O escrevente do chão (2024). E-mail: [email protected]