O processo criativo de Pedro Nava

 "Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura - na minha vidraça iluminada de repente! - e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído - doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo de laranja no frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol desolado das ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões, revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer." Baú de ossos, p. 291/292

Desenho do vagão de trem em que Nava e a família foram de mudança para Belo Horizonte Clique para ampliá-la.

Pedro Nava parece ter se preparado toda a vida para pôr no papel as memórias de sua família e de sua geração. Arquivista de sua família, antiga e repleta de raízes imbricadas entre parentes, contraparentes e agregados, guardava em cadernos fragmentos e histórias de seus antepassados. O livro Genealogia da família mineira (PN 1410 Dv 053) escrito pelo Visconde de Barbacena serviu de inspiração para seu começo como memorialista. Para complementar suas lembranças, enviava questionários aos parentes e amigos pedindo que preenchessem os formulários e os enviassem de volta. Considerava seus livros como filhos e, entrevista ao jornal O Povo, em 1975, (PN 1150 Pi 027) definiu de forma mórbida sua relação com a obra: "Quem pode adivinhar, no infante, o parricida?". Distribuía as lembranças, fatos e questionários como num jogo de cartas: "Assim os fatos da memória. Para apresentá-los, cumpre dar sua raiz no passado, sua projeção no futuro. Seu desenrolar não é o de estória única mas o de várias e é por isto que vim separando os paus dos meus estudos, as espadas de minha formação médica, os ouros de minhas convivências literárias e os corações do Movimento Modernista em Minas. É assim que posso ser rigidamente seriado". Beira-Mar, p. 354.

 
De posse das muitas histórias e documentos que guardou na vida, o autor desenvolveu um método de criação dividido em três etapas. Primeiro as fichas de registro numeradas contendo temas, curiosidades, observações e informações misturadas. "Se alguém vir essas fichas compreenderá minha minúcia, e o trabalho que eu tenho de transformar esse minério no metal que é o boneco de cada capítulo e que serve para chegar ao módulo para mim nunca perfeito dos meus originais", escreveu numa ficha de composição de Chão de Ferro. Depois das informações das fichas organizadas em estrutura dos capítulos, os "bonecos", a terceira etapa era transpor esses textos, batidos a máquina, para papel de folha dupla, sem linhas, dobrado em dois. Nava se debruçava sobre as páginas virgens do lado direito do texto. Nelas desenhava os retratos das lembranças que guardava em sua mente ou fazia colagens de fatos e acontecimentos que, de alguma forma, remetiam às histórias contadas na página da esquerda. Mapas, caricaturas, comentários, eram acrescentados ao original. Esses originais fazem parte do acervo do autor e muitos são verdadeiros painéis dignos de galerias de arte.

 
Em Baú de ossos o autor adiciona mapas, recortes, orações e comentários. Em Balão cativo, destaque para as caricaturas, fotos de artistas de cinema e, até uma partitura de música. Em Chão de ferro o autor volta às origens pictóricas. Os desenhos correm soltos pelas páginas relembrando amigos passados, ilustrações com tema livre, mais recortes de jornais e, desta vez, nenhum mapa. Em Beira-mar, Nava cola textos de Oswald de Andrade e a notícia da morte de Mário de Andrade. Em Galo-das-trevas vão se tornando mais raros e em Círio perfeito o papel do lado absorve pingos de sangue do autor e apresenta apenas alguns retratos.

Sistemático, Nava anotava em fichas suas reminiscências e ainda inseria comentários, como esse, para um futuro estudo de sua obra Clique para ampliá-la.
O texto claro não nasce em jorro. Nava estudava as palavras procurando sinônimos. Na página 191 do original de Círio perfeito ele escreve palavras do mesmo campo semântico de doente, paciente, cliente e caso. Fazia também jogos para analisar combinações de palavras. O memorialista, na ficha 811 de Beira-mar, faz um estudo do vermelho. Primeiro lembra os sinônimos: "vermelho, rubro, carmim, escarlate, carmezim, fulvo, ruivo, aleonado (fauve), magenta, nacarado, púrpura, vinhoso, garance, nácar, zarcão, rubicundo, goles, solferino, encarnado". Depois, busca na ciência elementos vermelhos: "alizarina (lyrio vermelho), rosanilina, eosina, tornassol vermelho, laca, anêmona carmezim, pássaro de fogo, fogo, lagosta, crista de galo, a luz de Marte - milmartes, papoulas polipapoulas, rosa peônia, ocre vermelho, hematita (minério), colcotar (peróxido de ferro), ferrugem, rosalgar (sulfureto de arsênico)". Daí, parte para associações: "sangue, vinho, guelras, fauces, inferno, lava, vulcão, carne, sangue, canto de galo, clarim, toque de clarim, grito de raiva, cólera, colérico, bancos de coral". Essa viagem pela cor serve para descrever o crepúsculo em Belo Horizonte.

A corrupção da memória era um de seus temas mais recorrentes e achava que fazia parte do livro de memórias o esquecer. "Porque esquecer é fenômeno ativo e intencional - esquecer é capítulo da memória (assim como que seu tombo) e não sua função antagônica.", Baú de ossos, p. 292. 

 

 

Fonte: Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa