O processo criativo de Pedro Nava
Em: 20/08/2012, às 11H12
                             "Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa  releitura - na minha vidraça iluminada de repente! - e cada um foi um pouco  furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e  lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção  desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela  Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade  de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por  precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído - doravante  irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito  de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo de laranja no  frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol desolado das  ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim  devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões,  revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer." Baú de  ossos, p. 291/292 
 
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             Desenho do vagão de trem em que Nava e a família foram de  mudança para Belo Horizonte  Clique para  ampliá-la. 
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Pedro Nava  parece ter se preparado toda a vida para pôr no papel as memórias de sua família  e de sua geração. Arquivista de sua família, antiga e repleta de raízes  imbricadas entre parentes, contraparentes e agregados, guardava em cadernos  fragmentos e histórias de seus antepassados. O livro Genealogia da família  mineira (PN 1410 Dv 053) escrito pelo Visconde de Barbacena serviu de  inspiração para seu começo como memorialista. Para complementar suas lembranças,  enviava questionários aos parentes e amigos pedindo que preenchessem os  formulários e os enviassem de volta. Considerava seus livros como filhos e,  entrevista ao jornal O Povo, em 1975, (PN 1150 Pi 027) definiu de forma  mórbida sua relação com a obra: "Quem pode adivinhar, no infante, o parricida?".  Distribuía as lembranças, fatos e questionários como num jogo de cartas:  "Assim os fatos da memória. Para apresentá-los, cumpre dar sua raiz no  passado, sua projeção no futuro. Seu desenrolar não é o de estória única mas o  de várias e é por isto que vim separando os paus dos meus estudos, as espadas de  minha formação médica, os ouros de minhas convivências literárias e os corações  do Movimento Modernista em Minas. É assim que posso ser rigidamente seriado".  Beira-Mar, p. 354. 
O texto claro  não nasce em jorro. Nava estudava as palavras procurando sinônimos. Na página  191 do original de Círio perfeito ele escreve palavras do mesmo campo  semântico de doente, paciente, cliente e caso. Fazia também jogos para analisar  combinações de palavras. O memorialista, na ficha 811 de Beira-mar, faz  um estudo do vermelho. Primeiro lembra os sinônimos: "vermelho, rubro,  carmim, escarlate, carmezim, fulvo, ruivo, aleonado (fauve), magenta, nacarado,  púrpura, vinhoso, garance, nácar, zarcão, rubicundo, goles, solferino,  encarnado". Depois, busca na ciência elementos vermelhos: "alizarina  (lyrio vermelho), rosanilina, eosina, tornassol vermelho, laca, anêmona  carmezim, pássaro de fogo, fogo, lagosta, crista de galo, a luz de Marte -  milmartes, papoulas polipapoulas, rosa peônia, ocre vermelho, hematita  (minério), colcotar (peróxido de ferro), ferrugem, rosalgar (sulfureto de  arsênico)". Daí, parte para associações: "sangue, vinho, guelras,  fauces, inferno, lava, vulcão, carne, sangue, canto de galo, clarim, toque de  clarim, grito de raiva, cólera, colérico, bancos de coral". Essa viagem  pela cor serve para descrever o crepúsculo em Belo Horizonte.
A corrupção  da memória era um de seus temas mais recorrentes e achava que fazia parte do  livro de memórias o esquecer. "Porque esquecer é fenômeno ativo e  intencional - esquecer é capítulo da memória (assim como que seu tombo) e não  sua função antagônica.", Baú de ossos, p. 292. 
Fonte: Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa



