O papa Francisco entre as frestas das pedras
Em: 05/01/2017, às 10H36
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
Um senhora postou no Facebook algo contra a minha explicação a respeito de Direitos Humanos e da chacina na prisão de Manaus: “ah, querer melhores prisões todos nós queremos, mas que não nos obriguem a sentir pena dos mortos, eram bandidos”. Uma outra postou, contra o papa: “esse papa é dessa esquerdalha, reza pelas famílias dos prisioneiros mortos, mas não fala nada pelas famílias das vítimas desses bandidos”.
As frases dessas pessoas revelam um Brasil em crise. Mas elas, por si só, em duplam, me dão tudo que preciso para explicar o papa.
De fato, é por conta da senhora que não quer ter qualquer compaixão com a família das vítimas, que o papa tem de dar atenção aos familiares dos mortos na chacina, e falar por eles. Ele entra pelas frestas das pedras, dos corações de pedras, e põe sua voz. É a autêntica missão de Jesus: olhar por aqueles que ficaram sozinhos, pelos que perderam qualquer força moral, pelos que realmente estão no campo dos desesperados.
As famílias dos presidiários mortos são vistas como famílias de bandidos, ou seja, como gente que deveria ser extirpada da Terra. Pessoas de pouco discernimento, que se intitulam “gente de bem”, os toma como bandidos. Então, o que tais famílias falam soa como o que não se deve ouvir. Ora, esses desesperançados são os que precisam de uma palavra de esperança. Quando se está solitário, desesperado, sem forças, sem qualquer legitimidade para ser ouvido, com quem contamos? Com Jesus. Quem é cristão sabe disso. Então, quem pretende ser um fiel seguidor de Jesus, o papa, tem de tomar a frente e vir atender esses que ficaram do lado fraco, do lado dos desesperados. Qualquer criança que fez o catecismo na Igreja Católica sabe disso.
Qualquer pessoa de bom coração, se não consegue olhar pelas famílias dos presidiários, pode dizer: “eu não consigo estender meu olhar, minha piedade, mas o mundo não é só essa minha maldita frieza, ainda há quem olhe pelos que nem eu mesmo não quero olhar: há o papa”. Quando nem o papa olhar pelos desesperados, quando até ele for uma voz só para os que já estão bem, já estão cobertos pela lei, pelo poder de voto, pelo poder de pressão popular, pelo poder de pagar um advogado, pela capacidade de expor sua legitimidade de ação etc., então, realmente, o cristianismo terá perdido a guerra contra os males da Terra. Garanto às duas senhoras de coração de pedra que escreveram no Facebook: será um mundo pior quando só existirem vocês e eu mesmo, e não mais, no contraponto, o papa.
Francisco I é um professor de filosofia. Pela formação cristã jesuítica, tem a noção clara de missionário. Pelas vítimas de assaltos e pelas famílias das vítimas de assassinatos, os padres locais devem atuar. É um serviço caso a caso. Mas em relação a uma chacina que soa alto, a execução sumária de muitos num lugar onde todos deveriam estar protegidos pelo estado por estarem nas dependências do estado e sem possibilidade de defesa, quem atua com a indenização é o poder público, mas quem deve dar uma palavra de piedade, de paz, de esperança, lá de longe, para completar o trabalho do pároco local, é o papa. Muitos reizinhos de Facebook querem que o papa sirva aos reizões. Mas o papa os contraria, pois, procurando cumprir os ensinamentos de Jesus, o professor de filosofia Bergoglio se transforma em quem não fala só em Direitos Humanos, mas em deveres divinos. A prostituta, o ladrão na cruz, o filho pródigo – são dezenas de passagens no Novo Testamento em que Jesus aponta bem para a sua missão de servir aqueles que perderam a esperança, os que perderam tudo.
Esquecer a missão de Jesus é alguma coisa que me põe a pensar: onde foram educadas as senhoras rancorosas que postaram aquilo no Facebook? Ora, não são pessoas deseducadas. Passaram por alguma escola. Mas não tiveram nenhuma educação moral, nenhuma educação religiosa cristã? Será que estão educando seus filhos também assim, sem o entendimento da palavra compaixão? Será que só ensinam para seus filhos o ódio, a vingança, a capacidade de revanche e nunca o entendimento da tarefa do papa de falar por aqueles não vão ficar sem voz? É tudo muito estranho isso. Há algo de errado na educação dessas pessoas que são incapazes de ver no papa uma tentativa de repor na trilha, corretamente, a esperança de quem ficou isolado.
Cada um de nós pode não ter dinheiro para pagar uma pensão ou infringir uma lei de trânsito ou desacatar uma autoridade ou ser acusado de qualquer coisa e, num episódio desses, terminar na cadeia. Morre-se ali. E a nossa família? Perde o provedor. Nessa hora, quando estamos para morrer ali na prisão, quando estamos para ser executados, fazemos o nosso pedido rápido: “que Jesus tome conta da minha família”. Mas então, o papa, tentando ouvir essa voz, é calado pelas duas senhoras de coração de pedra, incivilizadas, ali no Facebook. Elas querem calar o papa, calar os ensinamentos de Jesus. Não é curioso isso?
Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 05/01/2017
Gravura: papa Francisco visitando o campo de concentração de Auschwtiz