[Bráulio Tavares]

 

Nossas vidas têm regularidades tão implacáveis quanto as que regem o balé dos planetas e a multiplicação dos cromossomos. Pensamos que somos dotados de livre-arbítrio, mas nosso livre-arbítrio consiste apenas em imaginar que o temos. Um indivíduo que salta de um arranha-céu é livre para pensar o que quiser, inclusive que poderia interromper a queda, mas, talvez até para provar o seu livre-arbítrio, ele toma a decisão de continuar caindo. A natureza se repete; é do seu feitio. Não podemos imaginar que um belo dia uma laranjeira produza, no meio das laranjas habituais, uma graviola. Ou um relógio.

O caso de Thomas Adelmann, por exemplo. É um pacato comerciante de Munique, dono de uma loja de relógios que herdou do avô através do pai. Talvez fosse ele (que a cada noite, antes de dormir, toma de um caderno da capa preta e anota em colunas, com letra miúda, as despesas do dia, desde o metrô ao cigarro, desde o jornal ao carnê do seguro, desde as frutas que trouxe para casa à mesada da filha adolescente) uma das pessoas mais capacitadas para perceber a existência do número fatal, o número que rege sua vida. E este número é 611.

Como se sabe, na vida não há coincidências, a não ser que consideremos uma coincidência o fato de que toda tarde, após o trabalho, voltamos para a mesma rua, entramos na mesma casa e dormimos na mesma cama. Coincidência, os números marcados numa régua estarem todos a um centímetro de distância um do outro? A vida de Thomas Adelmann estava regida em ciclos de 611 horas ou 611 dias. Esta era a raiz (o x-linha e o x-duas-linhas) que zerava de forma satisfatória as modestas turbulências produzidas no Universo pela sua presença; e o readmitia no fluxo da harmonia universal.

Thomas nunca somou as letras do seu nome completo, do da sua noiva, e dos pais e avós de ambos. Se o tivesse feito teria chegado ao número 611 e isto lhe pareceria um dado aleatório. O lacônico testamento do pai, deixando-lhe, previsivelmente, a loja na Schillerstrasse, tinha um total de 611 palavras. O bilhete de loteria que um vendedor com óculos verde-escuros lhe ofereceu numa estação de trem ostentava um número que era (mas como Thomas poderia saber?...) 611 ao quadrado (ele agradeceu e recusou o bilhete, que dias depois fez a fortuna de uma professora de piano regida pelo mesmo algoritmo). E como explicar a Thomas que o dia de sua morte ocorrerá num múltiplo de 611 em relação ao do seu nascimento?

Se existissem deuses poderíamos elogiar sua generosidade. Não os havendo, basta dizer que é uma feliz coincidência o fato de que as regras fundamentais do nosso destino nos são invisíveis, de tão amplas. São como as Linhas da Nazca, que traçam figuras quilométricas e imperceptíveis sob os pés dos incautos viajantes. Fosse o número, ao invés de 611, um simples 3 ou um simples 7, é possível que numa noite insone Thomas saltasse na cama, gritando “Eureka!”. Ao que nos consta, isto até agora não aconteceu.