Foto: Reprodução TV Clube
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[Halan Silva]

Em Campo Maior, ninguém sabia dizer ao certo se Mão de Seda pertenceu ao bando de Lampião. Mas aqueles que o conheceram de perto não hesitam em assegurar que ele ficava invisível ou virava fumaça nas horas de aperto. Após a morte de Mão de Seda, não faltou gente para duvidar que ele tenha existido, pelo menos do jeito que ele costuma ser lembrado. Seja como for, o fato é que cinco dias antes do Natal de 1974 ele estava na porta da casa mais nobre de Campo Maior, do palacete de um ilustre senador da República. Após acertar o preço com Mão de Seda, o senador entrou em casa com um belíssimo peru para a ceia de Natal. Contudo, à noite, o inesperado aconteceu: simplesmente o peru sumiu do quintal. Por sorte, Mão de Seda passou de novo à porta do senador, com outro peru debaixo do braço, semelhante ao que desaparecera durante a noite passada. Visando distrair o senador, Mão de Seda tirou o chapéu da cabeça e disse que isso só poderia ser coisa de corujão ou, talvez, de um saruê safado; esses bichos são muito malvados, costumam comer tudo o que encontram pelo meio do caminho. O senador não ligou para as palavras de Mão de Seda, apesar de ter meneado a cabeça em concordância. Na sequência, o senador abriu a carteira e, novamente, comprou o peru para a ceia natalina. Todavia, como se um raio caísse duas vezes no mesmo pau, durante a noite o peru desapareceu sem deixar vestígios. Logo que soube do acontecido, Mão de Seda apressou-se para a casa do senador, levando outro peru. Mas o senador estava ressabiado, com uma enorme pulga atrás da orelha, e, sem medir as palavras, soltou os cachorros para cima de Mão de Seda: disse-lhe que não nascera para sustentar ladrão. Mão de Seda fez ouvidos moucos; para desfazer qualquer mal-entendido, lamentou o desaparecimento dos perus e, sem pestanejar, aconselhou o senador a se conformar com a situação; disse para ele levantar as mãos para o céu porque os ladrões só roubam dos que têm alguma coisa. E fez questão de enfatizar que um Natal sem peru não tem sentido, assim como não tem sentido um São João sem fogueiras. E, para que o senador não passasse o Natal sem um peru na mesa, fez um preço bem camarada, preço que nem mesmo os ladrões são capazes de fazer.

— Esse peru está barato demais, pelo visto foi roubado — disse o senador, enquanto metia a mão no bolso da calça.
— O peru está barato, não paga nem as ferroadas de abelha que levei no Bom Lugar. Não bastassem as abelhas, o seu Toinho não prega o olho; um barulhinho de nada e ele já se levanta, com a lanterna na mão. Se o seu Toinho me pega, por essa hora eu estaria comendo a boia na cadeia pública.
— Acho melhor você deixar esses detalhes para lá, se não vou desistir dessa compra — concluiu o senador.

Como fosse grande a preocupação do senador com os parentes que vieram passar o Natal em Campo Maior, ele não pensou duas vezes antes de comprar, pela terceira vez, o peru. Porém, fez questão de esclarecer para Mão de Seda a motivação da compra: a vontade de botar as mãos no ladravaz. Para Mão de Seda, o plano de guardar o peru dentro do canil e de soltar o pastor-alemão no quintal era uma boa estratégia; afinal, essa raça de cachorro costuma ser muito valente. Quando o dia amanheceu, o senador levantou-se arrastando os chinelos de rabicho e, metido num pijama, foi até o quintal verificar se tudo estava em ordem. A decepção não poderia ter sido maior: o senador não achou nada do que procurava, nem mesmo o rastro do peru ele encontrou. Bem informado que era, Mão de Seda amanheceu na porta do senador, com outro peru dependurado no guidão da bicicleta. Ao avistá-lo diante do portão, o senador viu-se obrigado a conter a fúria:

— Seu filho de uma égua, você me roubou os perus, que aliás não são três, mas apenas um!
— Senador, eu estou velho, faz tempo que larguei de mão essas estripulias.
— Não sou besta, você só presta para mentir. E outra, vou é responsar Santo Antônio, para que, na próxima vez, seu Toinho te acerte com um tiro de sal. Vamos, conte-me como me surrupiou o diabo do peru.
— Senador, estou velho, faz tempo que não mexo no alheio — concluiu Mão de Seda, com uma tosse forçada.

Sabendo que Mão de Seda não cederia sem levar vantagem, o senador propôs comprar o peru pelo triplo do valor que pagou pelos outros, mas desde que Mão de Seda lhe contasse como fez para apanhar o peru. Mão de Seda é doido por dinheiro; somente pelo vil metal, ou em troça de cachaça, ele é capaz de abrir o jogo.

— Senador, essas coisas não se contam, é segredo! — respondeu-lhe Mão de Seda.
— Você quer ou não quer a porcaria desse dinheiro? — insistiu o senador.
— Ora, se quero, porcaria é comigo mesmo, vou contar tudo o que aconteceu ontem à noite.

Folgazão, Mão de Seda gargalhou ao ponto de mostrar o seu dente de ouro. Em seguida, contou que não teve dificuldade para apanhar o peru no canil, pois levara consigo a sua cachorra Bolinha, que estava no terceiro dia de viço. O trabalho foi somente o de passá-la por cima do muro e esperar o pastor-alemão cobri-la, para, então, meter o peru dentro do côfo. Nessa hora, o sangue do senador ferveu dentro das veias; pela primeira vez na vida ele teve animus necandi.

— Ah, peste, não é à toa que te chamam de Mão de Seda!

Mão de Seda não era um ladrão qualquer, desses que a gente vê por aí, saltando muros. Ele tinha glamour, talvez fosse um cleptomaníaco sem diagnóstico. Quando se sentia enfadado, Mão de Seda passava na delegacia de polícia e pedia ao delegado para que o prendesse por uns dias. A primeira vez que vi Mão de Seda de perto, eu devia ter nove ou dez anos, não lembro direito. Ele era um homem diferente dos outros, andava pelas ruas numa bicicleta e costumava entrar nas oficinas ou vasculhar os monturos em busca de garrafa, alumínio ou ferro-velho. Outro dia, lembrei de uma história do Mão de Seda que envolvia o meu pai. O meu pai estava na serralheria e, como sempre, absorto no trabalho que fazia. Sem tirar a vista da peça que montava, pediu-me para pegar o maçarico no baú de madeira. Pus o baú pelo avesso, mas não encontrei o tal maçarico. O meu pai insistiu, disse que o maçarico estava lá, que eu reparasse direito. Revirei tudo de novo, umas duas ou três vezes, mas o maçarico não estava lá, no baú. Aborrecido, ele disse que eu não sabia procurar nada, que, na realidade, eu era um poço de preguiça. E, aborrecido, levantou-se e foi ao baú pegar o bendito maçarico. Ele despejou tudo no chão, mas não encontrou o que procurava. Então, voltou-se para o ajudante, que malhava um ferro na bigorna:

— Wilson, o Mão de Seda andou por aqui hoje?
— Andou, e bem cedo — respondeu-lhe o ajudante.

Como se soubesse detalhes do que se passara durante sua ausência na oficina, o meu pai ficou tranquilo, acendeu um cigarro sem filtro e me deu uma ordem:

— Pegue a bicicleta do Antônio Músico e vá lá na casa do Mão de Seda buscar o maçarico, vá!

O Mão de Seda morava longe da oficina, lá para as bandas do Açude Grande. Afora isso, eu estava com muita preguiça; a bicicleta era grande e pesada, eu sentia muita dificuldade para pedalá-la. Mas, quando o meu pai dava uma ordem, não adiantava a gente resmungar. Emburrado, montei na Gulliver e segui para a casa do Mão de Seda. Ao chegar lá, fiquei um bom tempo parado, observando-o revirar bagulhos no chão de um pátio cimentado. Sobre a vasta cabeleira desalinhada, Mão de Seda tinha sempre um chapéu de palha, de abas alongadas. A barba era espessa e emaranhada, de um branco encardido. A camisa estava desabotoada; dada a sujeira de graxa e fuligem de ferro, não consigo definir a cor da camisa que ele trajava. Apesar da desordem daquele lugar, eu seria capaz de passar horas e horas ali, completamente paralisado. Não por ele ou pelo espaço, mas pelos pombos, uma centena deles, todos muito vistosos e barulhentos. Quando me viu parado no portão, Mão de Seda aproximou-se com o fito de saber o que eu desejava.

— Nada, não, seu... eu só vim buscar o maçarico do papai — respondi-lhe, tremendo de medo.

Mão de Seda não disse nada, apenas sinalizou para que eu o esperasse ali mesmo. Poucos minutos depois, ele voltou com o maçarico pendendo na mão direita. Em seguida, quis saber se eu gostava de observar os pombos arrulhando. Respondi que sim, mas que não tinha nenhum em casa.

— Está fácil ter, menino, tenho borrachudos para vender. Nasceram aqui mesmo, naqueles côfos dependurados. Aproveite, os pombos estão baratos, o preço é de ladrão!

O Mão de Seda é um tipo que não se consegue esquecer, por mais que a gente queira! Outro dia, na cancela de uma fazenda que fica defronte a Santana, conversei com o proprietário, o Fábio Andrade. Ele me disse que conheceu o meu pai e comentou o que todos comentam: que ele era trabalhador e espirituoso. Aproveitando a ocasião, perguntei se ele já ouvira falar do Mão de Seda. Ele respondeu que sim e passou a contar uma história que acontecera ali mesmo, naquela cancela. O caseiro avistou o Mão de Seda recostado no mourão. E, sabendo de quem se tratava, resolveu se aproximar:

— O que faz parado aí, Mão de Seda? — perguntou o caseiro.
— Nada, não, só descansando um pouquinho, o sol tá muito brabo! — respondeu-lhe Mão de Seda.
— “Sei”, mas te conheço, Mão de Seda, por isso escute uma coisinha: lá dentro tem uma carabina; ela é para os que entram aqui sem serem convidados — disse-lhe o caseiro.
— Você fala de uma carabina velha, que está guardada num saco de estopa, em cima do armário, no quartinho atrás da casa? — perguntou-lhe o Mão de Seda.

O caseiro ficou pasmo com o que acabara de escutar, mas, antes que respondesse alguma coisa, Mão de Seda complementou:

— Eu, se fosse você, levaria a carabina num armeiro dos bons; está sem o guarda-mato e a mira está empenada para o lado direito — e piscou o olho.

O caseiro baixou a guarda, ofereceu um copo d’água para o Mão de Seda; naquela hora o sol estava de matar calango. Um conhecido de meu pai, o Chico Boca Azul, também me relatou outra história do Mão de Seda, uma dessas visitas inesperadas. Sem que fosse aguardado, Mão de Seda apareceu na quitanda, no finalzinho da tarde. Ao vê-la sortida de tudo enquanto, fez um comentário nada agradável:

— Boca Azul, você está rico!
— Tudo o que tenho consegui com trabalho, não foi roubando, não! — respondeu-lhe Boca Azul.
— Pode ser, mas deixa eu te dizer: virei buscar a minha parte! — disse-lhe Mão de Seda.

O Boca Azul não se intimidou, levantou a camisa e mostrou o cabo do revólver, dizendo-lhe:

— Pois aqui está a sua parte, pode vir buscar na hora que quiser!

E deixou bem claro que não tirava o revólver da cintura nem mesmo para tomar banho. Mão de Seda não ligou, soltou foi uma gargalhada escandalosa, dizendo-lhe:

— Não tenho pressa, nem gaste suas balas comigo, que vou morrer de bengala na mão!
— Eu durmo todas as noites na quitanda, o meu sono é de téu-téu, entendeu?!

Passaram-se dois anos; Mão de Seda cumpriu a promessa que fizera diante do balcão: a de entrar na quitanda do Boca Azul. Depois de fazer a festa, para que Boca Azul soubesse quem lhe furtou, Mão de Seda tomou um trago de cachaça e deixou o chapéu de palha em cima do balcão. O Boca Azul admitiu a derrota, não foi capaz de imaginar que Mão de Seda estivesse o tempo todo de olho, muito menos que ele fosse se aproveitar de sua noite de núpcias para entrar na quitanda. Apesar de não ser profecia, Mão de Seda morreu de velhice, de bengala na mão. Tudo induz que ele sabia mandingas fortes, que andava metido nas roupas de Jorge; todos que lhe fizeram mira perderam suas balas — até mesmo seu Toinho, que, além de perus, tem boa pontaria. A polícia já não o prendia mais, até porque não adiantava nada: Mão de Seda virava fumaça e escafedia pelas grades da cela. Sobre Mão de Seda, uma coisa ninguém pode negar: ele sempre devolvia os objetos que pegava; bastava que o dono fosse lá pedi-los de volta e, de saída, tomar um café preto com o bom ladrão da cidade.