O morro da casa grande

21. A lei da natureza

Dílson Lages Monteiro

- Raimundo, ei Raimundo, leva esse menino pra ti – ordenou Custódio, fingindo-se de sério, ao velho barbudo que subia o morro vestido em blusa rasgada, marcada de suor. – Leva que ele tem medo de ti.

 

O neto do coronel voltou-se ligeiramente ao que se concentrava à frente do nariz. O coraçãozinho encheu-se de sangue e  tremeu. Tremia como se tivesse visto o Cabra Preta. O menino não conseguia falar, mas ainda encontrou coragem para invadir a quitanda e entrar por baixo da cancela do balcão, o qual, para a pequena criatura,  mais bonito se tornou assim que ela rompera as fronteiras do recinto, ao passar para o compartimento das mercadorias.

 

O balcão dividindo ao meio o comércio era para ele dois mundos, mas, naquele instante, sentia-se seguro em ver que existia um lado que mandava, um lado pelo qual Raimundo não ousaria atravessar. Não ousaria passar pela cancela se não fosse mandado. E, quando o fazia, era sempre para despejar o babaçu no canto da quitanda, debaixo da imagem de Santa Teresinha.

 

Dois mundos. Do lado de dentro, o avô anotava em caderninho o que o agregado pedia; do lado de fora, o homem botava o cofo na balança, dizia a quantidade de litros de amêndoas de babaçu, confirmados ou negados pela medição, e explicava o que queria: quase sempre, açúcar, arroz, café, feijão e fumo. Vez por outra, um trago de cachaça.

 

Marciano respirava profundamente, sem olhar para a cara de Raimundo. Com certeza, cara de zanga, cara de maldade. Marciano respirava. Os olhos cheios de água, as mãos juntas apertando-se, mas protegido, protegido pelo balcão preto, pelo lado de dentro, de onde não gostava de ficar; preferia o de fora, para curiar a gente da fazenda e ouvir mais de perto as histórias e as dores que contavam. Hoje sentia para que serve o balcão, para que serve o lado de dentro.

 

Raimundo, o Pananã – que ninguém o chamasse desse apelido - , parecia sempre mal em sua cara fechada. O malvado, que não tomava banho e comia carniça, como era do saber da região, chegara à propriedade na seca de 32, vindo das bandas do Ceará. Comia mesmo porcarias – tudo que era animal morto, mas o prato predileto dele era camaleão. Dele, de Maria Moça e de Antônio Cearense, o Capelão. Eles, debaixo da mesma casinha, comendo porcarias. Quem diabo sabia se não cozinhavam criança também?

 

Marciano recordou visita que fizera a casa deles. Os primos mataram gordo camaleão na mangueira do quintal e arrastaram-no com uma embira presa ao pé até a palhoça de Pananã.  Maria Moça recebeu aos risos os netos de Custódio. Queriam tirar a prova: Maria comia ou não lagarto? Ela abriu o bicho, tirou toda a carcaça de couro, limpou as impurezas e jogou a carne sem cor numa panela suja. Enquanto ela ria, Marciano contorcia-se em naúseas. A cena se repetiu por dias no pensamento da criança e, ao se deparar com Raimundo, lembrava-se do bicho fervendo na panela.  Só podiam cozinhar criança também.

 

O menino vivia impressionado e, desde a data da visita, diariamente perguntava:

- Carne de camaleão é boa, Genésio?

 

Genésio pensava rápido. Era raro pergunta a que não rompesse com resposta que convencia. Fora levado para a casa grande da Renascer muito pequeno, órfã de mãe,  recebido pelo coronel Alberto, que ainda lhe mandou a Parnaíba, onde aprendeu a ler. Era homem observador do mundo.

 

- É a lei da natureza! Pra sobreviver eles aprenderam a lutar com as armas que têm. – respondera um dia para Marciano.

 

Passado o susto, enquanto renascia na memória o camaleão fervendo na panela e os risos de Maria moça, calculava o que era entregue a Raimundo. Correu a vista no cofo. Nele, uma foice, a peça de metal à mostra; açúcar e farinha acomodados ao fundo; nas mãos pedaço de rolo de fumo. Absorto nas lembranças e nos movimentos de Pananã, não viu o caminhão freando, freando; nem Enoque entrar no comércio, nem os cassacos pularem do alto da carga de babaçu.

 

Ao sentir presença estranha, Marciano disparou para a marquise, sacudiu o cofo que aprisionava a franga pedrês. Estava viva. Apressou-se até o curral para urinar. Deu conta de Raimundo bebendo numa cuia – a mesma em que dava água aos cachorros. Quando ele já se distanciava do morro, o menino gritou:

 

- Pananã! Pananã! Pananã!