A vez e a voz de Cozinho: o jogo do múltiplo e da dúvida

                                                                   Cunha e Silva Filho            

 

         Nas limitações  do espaço  de um prefácio que me  pediu o autor,   Rivanildo  Feitosa, jovem ficcionista e jornalista,  piauiense, para um segundo  livro de ficção, O macho e  fêmea; 1a. ed.  (Barueri, S P.: Novo Século Editora, 2014 ), sua segunda  incursão no gênero  romance,   igualmente de título insólito, tanto quanto  o primeiro, Reflexões de uma cadela  vira-lata (2011), me vejo  diante da  responsabilidade que me pesa  como crítico e, por esta mesma razão, com a  possibilidade de  aplaudir injustamente ou   censurar  por excesso.

       Numa resenha que fiz para o  primeiro  romance do autor, julgo que,  no conjunto geral  das minhas ponderações, apostei  no valor do ficcionista que, numa estreia,   surgiu com   um tema  pouco  explorado pela literatura  brasileira da  maneira conseguida por ele,  i.e.,  acoplou   criatividade e nível técnico de construção estética,a fim de   compor   uma  personagem, uma vira-lata de traços  pícaros  que, pelas suas deambulações,  um pensamento  tinha  para   torná-lo realidade: ser animal e ao mesmo tempo  ser mulher.

      Quer dizer,  nesta dimensão  fabulosa, mágica,   Sabiá,  a personagem cadela,  se não inaugura  um tipo  de protagonista novo na ficção  brasileira,  pelo menos   dilata essa   possibilidade  para  prováveis  outras   aventuras humanas misturando  o irracional com  o racional,  alem do mágico e do poético, em que o grande lance  do constructo ficcional não é só  o  enredo, mas sobretudo  um  mergulho  profundo  na caracterização  de  um jogo    ficcional  trabalhando  o duplo,  o proteico,  a metamorfose,  o “fingimento” do  real, do imaginário, tendo ao mesmo tempo  o disfarce como   componente  essencial da linguagem literária,   feita de signos  linguísticos  intencionais – linguagem  modelizante  no conceito de Lotman -  produto, enfim, de   construções de  realidades convincentes,  de forte carga humana,  mas feitas de palavras, frases  e parágrafos, dessa pirotecnia    fruto do   talento, conhecimento  e sensibilidade   do fenômeno  literário.  

          No segundo  romance, objeto destes comentários,  Rivanildo  deixa  transparecer  algumas marcas já identificadas  no livro de estreia: uma história,  cuja  fabulação se passa numa   cidade  de nome  inventado, “Sem nome”,   que não consta do mapa  geográfico  do Piauí. Nesta segunda obra, igualmente  o narrador usa de um  nome de cidade – Repentina – que, na realidade,  não  existe tampouco  nas plagas  piauienses. Mas, o espaço,  a natureza,  os costumes,  as tradições  claramente  põem  o leitor  no cenário do  sertão  nordestino.              Assim como  no primeiro  livro,  o autor  ensaia  passagens da narrativa de cunho   metaficcional  em O machoe fêmea.  Emprega  recursos, já  no primeiro capítulo,  de teor digressivo, onde, em diálogo com o leitor,   cria uma atmosfera  narrativa  de idas e vindas, de como acertar  o passo  narrativo.

          Ao mexer com  a atenção ou curiosidade  do leitor, ou mesmo  irritá-lo,  o narrador transmite a impressão de que a narrativa  não  quer   cair na tentação de fazer   ficção tradicional, linear, bem comportada,    mas   desautomatizar  o leitor desse esquema  fechado  com a quebra  da ilusão  realista/naturalista do romance  ocidental. Outro  traço  recorrente em  relação  ao livro anterior  está na natureza do  tema,  a  sexualidade, desta vez  com a diferença de  que o protagonista,  de nome Cozinho (apelativo, por sinal, semântica, jocosa  e sonoramente   muito associado às implicações temáticas do livro) não pertence ao reino  dos bichos, mas é alguém que, ao nascer,  passou  a  alimentar a curiosidade das pessoas de Repentina.

         O seu parto  se deu sob o signo da dúvida e do preconceito que poderia gerar na população local,  gente pobre, sofrida,  esquecida, em terra  quente, de sol  inclemente e ainda por cima, sobrecarregada  de  muitas   superstições,  de ignorância,  de crenças no   sobrenatural, como ainda é comum se encontrar  em  pequenas  e desconhecidas   cidades  nordestinas.  

         O menino  Cozinho   é vítima  de todas  esses atrasos  culturais   de  lugares  como  Repentina. Um dia,  aconteceu-lhe algo  fora  da normalidade  que se espera de uma criança  que nascera com   os  traços de  menino, normais aos olhos   descuidados  de uma parteira, mas que,  na realidade,   além  do “saco, preto e grande,”  ocultava   algo  mais. Tanto assim que, certo dia,  Cozinho  veio a menstruar.

         Cozinho,  enquanto personagem,  cercado  de vozes  da incompreensão  e dos mexericos,  a despeito de tudo,  conduz sua vida  da forma que melhor  possa  carregar  seu ser diferente do comum dos mortais. Ser múltiplo, com seus  “eus,”  no entanto  é pessoa  que  cresceu, amadureceu como qualquer outro  da espécie humana. Tem a boa índole,   tem muitos  talentos  práticos  de levar a vida: reza quando necessário,  faz  às vezes de enfermeiro, receita suas “mezinhas e chega mesmo  a revelar-se uma   pessoa  divertida.

         A questão  estética do  grotesco, dos desvios físicos e dos  problemas   psicológicos é uma discussão  que se impõe à consideração  do leitor  e dos especialistas  em  sexologia, psicanálise – áreas que,  no meu juízo,  seriam  abordagens  férteis, a meu ver, no aprofundamento   do tema nuclear   de O macho e fêmea.

         Com todas  as riquezas temáticas  deste  novo romance creio que   outras possibilidades ficcionais    se abrem   para  o  romancista  piauiense que,  nesta segunda obra, reafirma  seus  méritos na   prosa de ficção, em especial  pelas virtualidades de imaginar  mundos,  pessoas e natureza, além  de levantar  questões  cruciais  para alguns  problemas  humanos lamentavelmente não  entendidos  por parte  de uma mundo  que não acordou ainda  para  o  exercício  pleno dos direitos de cidadania, notadamente  daqueles   ligados  à sexualidade,  ainda  vítima de tantos   tabus, hipocrisias   e  preconceitos   estéreis.