O macho e fêmea
Por Cunha e Silva Filho Em: 28/09/2021, às 19H30
A vez e a voz de Cozinho: o jogo do múltiplo e da dúvida
Cunha e Silva Filho
Nas limitações do espaço de um prefácio que me pediu o autor, Rivanildo Feitosa, jovem ficcionista e jornalista, piauiense, para um segundo livro de ficção, O macho e fêmea; 1a. ed. (Barueri, S P.: Novo Século Editora, 2014 ), sua segunda incursão no gênero romance, igualmente de título insólito, tanto quanto o primeiro, Reflexões de uma cadela vira-lata (2011), me vejo diante da responsabilidade que me pesa como crítico e, por esta mesma razão, com a possibilidade de aplaudir injustamente ou censurar por excesso.
Numa resenha que fiz para o primeiro romance do autor, julgo que, no conjunto geral das minhas ponderações, apostei no valor do ficcionista que, numa estreia, surgiu com um tema pouco explorado pela literatura brasileira da maneira conseguida por ele, i.e., acoplou criatividade e nível técnico de construção estética,a fim de compor uma personagem, uma vira-lata de traços pícaros que, pelas suas deambulações, um pensamento tinha para torná-lo realidade: ser animal e ao mesmo tempo ser mulher.
Quer dizer, nesta dimensão fabulosa, mágica, Sabiá, a personagem cadela, se não inaugura um tipo de protagonista novo na ficção brasileira, pelo menos dilata essa possibilidade para prováveis outras aventuras humanas misturando o irracional com o racional, alem do mágico e do poético, em que o grande lance do constructo ficcional não é só o enredo, mas sobretudo um mergulho profundo na caracterização de um jogo ficcional trabalhando o duplo, o proteico, a metamorfose, o “fingimento” do real, do imaginário, tendo ao mesmo tempo o disfarce como componente essencial da linguagem literária, feita de signos linguísticos intencionais – linguagem modelizante no conceito de Lotman - produto, enfim, de construções de realidades convincentes, de forte carga humana, mas feitas de palavras, frases e parágrafos, dessa pirotecnia fruto do talento, conhecimento e sensibilidade do fenômeno literário.
No segundo romance, objeto destes comentários, Rivanildo deixa transparecer algumas marcas já identificadas no livro de estreia: uma história, cuja fabulação se passa numa cidade de nome inventado, “Sem nome”, que não consta do mapa geográfico do Piauí. Nesta segunda obra, igualmente o narrador usa de um nome de cidade – Repentina – que, na realidade, não existe tampouco nas plagas piauienses. Mas, o espaço, a natureza, os costumes, as tradições claramente põem o leitor no cenário do sertão nordestino. Assim como no primeiro livro, o autor ensaia passagens da narrativa de cunho metaficcional em O machoe fêmea. Emprega recursos, já no primeiro capítulo, de teor digressivo, onde, em diálogo com o leitor, cria uma atmosfera narrativa de idas e vindas, de como acertar o passo narrativo.
Ao mexer com a atenção ou curiosidade do leitor, ou mesmo irritá-lo, o narrador transmite a impressão de que a narrativa não quer cair na tentação de fazer ficção tradicional, linear, bem comportada, mas desautomatizar o leitor desse esquema fechado com a quebra da ilusão realista/naturalista do romance ocidental. Outro traço recorrente em relação ao livro anterior está na natureza do tema, a sexualidade, desta vez com a diferença de que o protagonista, de nome Cozinho (apelativo, por sinal, semântica, jocosa e sonoramente muito associado às implicações temáticas do livro) não pertence ao reino dos bichos, mas é alguém que, ao nascer, passou a alimentar a curiosidade das pessoas de Repentina.
O seu parto se deu sob o signo da dúvida e do preconceito que poderia gerar na população local, gente pobre, sofrida, esquecida, em terra quente, de sol inclemente e ainda por cima, sobrecarregada de muitas superstições, de ignorância, de crenças no sobrenatural, como ainda é comum se encontrar em pequenas e desconhecidas cidades nordestinas.
O menino Cozinho é vítima de todas esses atrasos culturais de lugares como Repentina. Um dia, aconteceu-lhe algo fora da normalidade que se espera de uma criança que nascera com os traços de menino, normais aos olhos descuidados de uma parteira, mas que, na realidade, além do “saco, preto e grande,” ocultava algo mais. Tanto assim que, certo dia, Cozinho veio a menstruar.
Cozinho, enquanto personagem, cercado de vozes da incompreensão e dos mexericos, a despeito de tudo, conduz sua vida da forma que melhor possa carregar seu ser diferente do comum dos mortais. Ser múltiplo, com seus “eus,” no entanto é pessoa que cresceu, amadureceu como qualquer outro da espécie humana. Tem a boa índole, tem muitos talentos práticos de levar a vida: reza quando necessário, faz às vezes de enfermeiro, receita suas “mezinhas e chega mesmo a revelar-se uma pessoa divertida.
A questão estética do grotesco, dos desvios físicos e dos problemas psicológicos é uma discussão que se impõe à consideração do leitor e dos especialistas em sexologia, psicanálise – áreas que, no meu juízo, seriam abordagens férteis, a meu ver, no aprofundamento do tema nuclear de O macho e fêmea.
Com todas as riquezas temáticas deste novo romance creio que outras possibilidades ficcionais se abrem para o romancista piauiense que, nesta segunda obra, reafirma seus méritos na prosa de ficção, em especial pelas virtualidades de imaginar mundos, pessoas e natureza, além de levantar questões cruciais para alguns problemas humanos lamentavelmente não entendidos por parte de uma mundo que não acordou ainda para o exercício pleno dos direitos de cidadania, notadamente daqueles ligados à sexualidade, ainda vítima de tantos tabus, hipocrisias e preconceitos estéreis.