[Bráulio Tavares]

 

 


Uma obra literária é um conjunto de imagens, idéias e emoções que brotam na mente de uma pessoa à medida que ela lê um texto. Por comodidade, dizemos que a obra literária é o texto em si, mas cada pessoa extrai daquele texto uma experiência distinta, formatada pela sua personalidade, seu conhecimento literário, etc. O texto é sempre o mesmo, mas sempre produz leituras (isto é, obras literárias) diferentes. 

Essa experiência só acontece se o leitor se entregar a ela. Entregar-se a ela não é perder o senso crítico, não é aceitar passivamente tudo que o autor diz, mas é ter boa vontade, querer participar de um jogo jogado meio-a-meio, cada um dando sua colaboração para que o romance possa acontecer. Se o cara não quer participar disso, pra que diabo abre um livro?

Coleridge dizia que a literatura fantástica só funciona se o leitor proceder a uma “voluntária suspensão da descrença”, ou seja, deixar de lado o seu ceticismo, a sua convicção sobre a inexistência de vampiros, extraterrestres, etc., e disser: “OK, faz de conta que isso existe; qual é a história que você vai me contar?”. Eu diria que essa suspensão da descrença é igualmente necessária para a gente lerGabriela, Cravo e Canela, ou até para assistir a novela das 8. Porque a gente sabe que tudo aquilo é invenção, é encenação, são atores pagos para recitar frases redigidas por terceiros.

Ora, existe na literatura um tipo de leitor que eu chamo o Leitor Recalcitrante, que é aquele que desde a primeira linha toma uma atitude hostil ou desconfiada. Fica perguntando mentalmente ao autor: “Ah, é? Quem disse que é assim? Por que você está me dizendo isto? Por que esse detalhe não está bem explicado? Para que serve isso? Por que esse personagem se chama Fulano?” E assim por diante. É um leitor cabreiro, sempre com o pé atrás, sempre pronto a descobrir um erro do autor ou a se queixar de que o autor não deixou claro um detalhe. Se o autor cita Fulano ou Sicrano, o leitor recalcitrante se encrespa: “Ôi, e eu tenho obrigação de ter lido Fulano? Pra ler esse livro aqui preciso ter lido quantos, antes?”.

O Leitor Recalcitrante não é um leitor crítico, não é nem sequer um leitor hiper-crítico, porque mesmo estes são capazes de mergulhar num texto com prazer e abandono, depois que suas exigências iniciais são correspondidas. (Críticos literários muitas vezes são assim.) O Recalcitrante se alterna em momentos de baixa estima (“Eu não consigo entender esse livro, está além da minha capacidade”) e de arrogância (“Não vou perder meu tempo, esse cara pode ser famoso mas não sabe escrever”). É um leitor que não sabe abrir a porta e sair pra brincar.