[Bráulio Tavares]

Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

 
Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.
 
Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.