O título da crônica , reconheço, não deve ser original. Me lembra um nome de um romance. Será um romance, brasileiro ou estrangeiro? Estou um pouco esquecido, pois as lembranças são muitas e se confundem, baralhando, no tempo, passado e presente, o que dificulta a sua verdade, a sua captação pelos processos lógicos e racionais. Mas, de uma coisa estou certo. Sou um homem sem passado. E direi, leitor, por quê. Antes de tudo, é preciso esclarecer que esse passado está congelado, abriu uma enorme lacuna na minha memória, de tal sorte que só o presente conta para mim quando se trata de sondar o domínio da afetividade.
                              Sou um homem desgarrado da afetividade fraterna. A imagem da família sofreu uma ruptura, um descontinuidade até finalmente desaparecer num canto do horizonte. Os laços se soltaram sem que razões me fossem apresentadas pelo círculo familiar. Onde poderei buscar o calor antigo que não existe mais? Só o presente conta,e mesmo está deserto. Expulsaram de meu universo afetivo todas as possibilidades de reatamento, de reaproximação. Tudo ficou vazio e sepultado a partir de algumas perdas. Não me sinto mais aquele que fui entre os meus.
                             As conversas que mantivemos juntos, os sorrisos que trocamos, as lágrimas que partilhamos, as esperanças que nutríamos naqueles tempos inocentes, isso tudo feneceu. Um homem sem passado perde um pouco a sua alma original. Torna-se outro a despeito de não ter querido tal mudança. Mudei eu ou mudaram eles? Quem teve a parcela maior de culpa? Não fui eu certamente, porque nunca desejei a separação, o rompimento.
                            Estou relegado ao presente, a compreender o meu destino a partir do afeto zero. Vou, pois, construir uma outra afetividade, outros laços talvez mais autênticos porque enraizados numa escolha mais bem amadurecida, embora destituída dos liames sanguíneos. Não quero ser um homem sem presente. Não quero sofrer duas vezes, e poder contar só com um indeterminado tempo do futuro. Ao construir um novo presente haverá uma possibilidade, ainda  que pequena, de poder ser um homem com passado no futuro.
                        O homem sem passado não deixa de ser um indivíduo sofrido e marcado pela perda da saudade. O homem sem passado é aquele que não conheceu a continuidade do antigo amor, do antigo abraço, da antiga certeza de que iriam ser mantidos os mesmos laços de origem. O homem sem passado é um desenraizado. As memórias desse homem, por terem sido interrompidas na área da afetividade tornam-se memórias ficcionalizadas, perdem a sua base real por falta do sopro da amizade que passa a não mais existir como insumo necessário à continuidade das  relações familiares.
                       Como restabelecer o que se partiu com o tempo? Como recuperar o sentimento do amor que se deixou de cultivar? Como sentir aquela emoção que se exauriu, se definhou? O homem sem passado é um ser incompleto, possui uma felicidade pela metade, deixou de viver a alegria proporcionada àqueles que não se cansaram de amar e de acreditar na emoção profunda de se entregar ao fascínio da fraternidade.
                     O homem sem passado foi impedido de reafirmar o seu livre gesto de declarar sua amizade desinteressada, a sua efusão amorosa, o seu sorriso aberto e franco. Ele é uma pessoa a quem não permitiram a realização plena e encantadora de poder exercer a alegria de externar o livre e delicioso jogo da afetividade, da mão estendida e dirigida principalmente a quem queria apenas significar o vasto sentimento do seu coração e a vontade de bem querer. Só lhe resta enterrar esse turbilhão de sentimentos malferidos, voltar-se ao presente e procurar conforto entre aqueles que hoje representam o sentido de sua vida: a família que construiu - fonte da amizade e do amor sem limites e por isso eterna.