O Globo lança página de poesia

Um espaço para divulgar novos e antigos poetas. É o que propõe o Globo, por meio de nova página no caderno Prosa e verso, que circula aos sábados. A estreia ocorreu dia 11. Conheça o caderno acessando

oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2010/04/110_935-risco.PDF

A coordenação da página é do escritor Carlito Azevedo, que concedeu entrevista a O Globo sobre poesia e sobre o novo projeto:

 

Carlito Azevedo fala sobre nova página de poemas

Responsável por editar a página mensal de poemas "Risco" (cuja primeira edição circula com o caderno deste sábado, 10/04) em parceria com a equipe do Prosa & Verso, o poeta Carlito Azevedo expõe abaixo algumas de suas ideia sem relação à iniciativa e à poesia brasileira contemporânea.

Carlito Azevedo. Foto de Gustavo PellizzonO que você acha da idéia de se publicar poesia em jornal? Por que acha que a imprensa parou de fazer isso?

O que faz toda poesia que realmente interessa é avaliar, em seu momento histórico, quais as possibilidades de felicidade para uma raça que não sabe de onde veio e nem para onde vai, vagando temporariamente por um planeta onde caem raios, a terra treme e o mar, vez por outra, avança imparável em tsunamis devastadoras, e onde, pior que tudo isso junto, o semelhante que o seu coração elegeu para amar pode simplesmente dizer que não lhe ama mais e desaparecer de sua vida. É claro que nenhum poema isolado lhe dará uma resposta sobre isso, nem todos eles juntos, provavelmente. Mas não resta dúvida de que depois que esse mesmo planeta foi visitado por Sófocles, Goethe, Fernando Pessoa, Mário Quintana e Paulo Leminski, por exemplo, ficou mais fácil compreender que, para o homem, mais difícil do que encontrar a felicidade é desistir de encontrar a felicidade, e que o mais desafiante é tornar esse cenário habitável. Os jornais pararam de publicar poesia provavelmente porque o consumo dessa matéria verbal complexa, dessa negação do óbvio, desse elogio do paradoxo, tem outro tempo muito diferente do tempo de consumo de uma notícia urgente. Mas com a variedade de tempos que convivem hoje em um jornal, com seus diferentes cadernos, revistas, suplementos, e com o consequente hábito de se recortar e guardar páginas para leitura mais vagarosa, no tempo certo, também há de haver uma página onde cresça o tempo do poema. Essa concepção aliás é filha da idéia de que o tempo não evolui como uma seta em linha reta, mas cresce como pétalas de uma multiflor. Cada uma em sua direção.

A poesia brasileira contemporânea merece atenção dos leitores?

A música contemporânea merece atenção dos ouvintes? As artes plásticas contemporâneas merecem atenção dos espectadores? O teatro contemporâneo merece atenção da platéia? Como certamente todos estarão de acordo com o fato de o teatro, as artes plásticas, a música e a poesia serem coisas que merecem atenção, creio que a dúvida aí recai sobre a idéia de contemporâneo. O que pode ser traduzido numa pergunta: gostamos de nós? Para julgar uma coisa é preciso observá-la de fora, do exterior, mas como podemos nos observar de fora? Outra questão: será que vemos o que nos cerca como um desafio a ser enfrentado, que estimula a melhor parte de cada um de nós a construir o seu sentido? Ou preferimos negá-lo e assumir a síndrome do paraíso perdido, da época de ouro que não volta mais, lamentando que tudo em volta seja apenas decadência? A dificuldade em se aceitar a arte do presente, como diz o poeta Marcos Siscar, muitas vezes coincide com a incapacidade de lidar com os impasses do presente. Há quem vire as costas para isso e prefira ler apenas os clássicos, o que seria ótimo se tal atitude não nos fizesse desconfiar que “clássico” então vira sinônimo de conforto, segurança, ausência de risco, gosto burguês pela certeza de haver investido o seu dinheiro em um produto de retorno seguro, monumentalização e rentabilidade garantida. Ora, um clássico é todo o contrário disso. Quantos abismos não há em Stendhal, nosso contemporâneo? Felizmente há os que também pensam e desejam a leitura como um encontro às cegas, como um gozo nervoso, que não se sabe nunca se virá, se vai acabar de imediato ou se ficará dormitando sobre cada célula do corpo em uma pequena festa por uma eternidade. E já que falamos em gozo, é sempre bom recordar o crítico Roland Barthes, morto em março de 1980, exatos trinta anos, que já dizia: “é preciso escutar o contemporâneo”. De minha parte, sei que realmente necessito de certo alimento que só me é dado por autores contemporâneos que estão dividindo comigo a dor e a delícia de um tempo muito estranho e fascinante, e todos a seu tempo e à sua maneira o foram. Às vezes saio de uma livraria com o livro de algum autor novo de que nunca ouvi falar, e é como se tivesse sido arrastado por uma piscadela de rua para uma possibilidade de prazer ou desprazer. Muitos dos meus livros preferidos me chegaram assim, por acaso, sem que eu nunca tivesse ouvido falar em tal autor ou autora. E é bom que seja assim.

Às vezes se diz que a poesia atual virou assunto para especialistas/iniciados. O quanto há de verdade nisso?

Um esclarecimento antes, sobre minha resposta anterior. É claro que hoje, como em todos os momentos, há péssimos poetas e prosadores, alguns badaladíssimos e premiadíssimos. Ou talvez não sejam nem péssimos, são desinteressantes, mortos, sem inquietação, acomodados, não correm riscos, não agridem nem agradam. Mas creio que esses entendem o contemporâneo como aceitação das coisas tais como ela foram dispostas pelo mercado, e não como o espaço/tempo de onde partimos para viver a aventura, quase vanguardista, de mostrar que já são passado certas coisas que alguns julgam serem ainda presente. Ainda bem que existem esses abençoados Roberto Bolaño, Adília Lopes, César Aira, Nicanor Parra ou Angélica Freitas. Quanto ao fato de a poesia ter virado uma espécie de seita para iniciados, talvez tenha sido a solução de sobrevivência que ela encontrou ao ser banida da República do Mercado. Sabe-se que tudo o que não apresente uma rentabilidade imediata tende a desaparecer da vitrine. Mas isso é mais uma daquelas coisas que devem virar passado e não ficar emperrando o presente. De todo modo, como editor, creio que minha posição pessoal em relação ao assunto deve ficar clara aqui: me agrada a idéia de um pensamento sofisticado, sutil, mas me desagrada a idéia de texto restrito a iniciados, bem como detesto a idéia de especialistas quando o assunto é literatura. Parafraseando o grande alemão Lichtenberg: quem entende só de Clarice Lispector não entende nem de Clarice Lispector. Defendo o meu amadorismo no assunto até o fim, e admirava imensamente o Haroldo de Campos, que se metia, equipado ou não para isso, em poesia russa, alemã, japonesa, chinesa, yorubá, grega, e se dizia um “desespecialista em fragmentos”. Aliás, boa parte da frustração de uma certa espécie de leitor diante da poesia contemporânea não estará na presunção de que deve ler como “especialista”? Decifrando, interpretando, produzindo comentários “cultos”, em vez de partir para a leitura do poema com a garra do amador, que não investe nenhum narcisismo na operação e por isso mesmo não se sente ludibriado se um poema não lhe toca, apenas compreende que ele e aquele poema não foram feitos um para o outro?

O que te animou a topar essa proposta? O que vai nortear seu trabalho na página?

Essa idéia que defendo do contemporâneo como o lugar não de aceitar passivamente nosso contorno, mas de agir aventurosamente na elaboração de seu sentido, é algo que me leva sempre, diante da existência de opção, a dizer sim, a estar disponível. Por isso editei durante dez anos uma revista de poesia, por isso dirijo coleções de poesia voltadas para a publicação de vozes poéticas estrangeiras pouco divulgadas por aqui e poetas jovens do Brasil. É um grande prazer, pois costumo me divertir muito organizando essas coisas. Quanto à página, a melhor coisa que lhe pode acontecer é ela se revelar metamórfica, em transformação, proteiforme, e não virar uma coisa congelada. O espaço foi dividido entre a produção inédita brasileira, que é mais aquela leitura de risco e desafio, aquela que a gente não sabe onde vai dar, que é feita sem a muleta do já aprovado. E o espaço de tradução, fundamental para o aumento de nosso repertório de poesia em português. Esta seção de tradução deve funcionar, mas não é obrigatório que isso se dê, como aquela leitura que já vem com algum tipo de aval, de segurança, o que, se não quer dizer leitura conformista e conformada, não é nenhum pecado mortal. Não serei monstruoso a ponto de ocultar que é nesta seção que algo em mim se deleitará com mais amplidão. Mas não serei insincero a ponto de negar que é a possibilidade de abrir esse canal de escuta e construção do contemporâneo que justifica o projeto. Ainda penso em, futuramente, tentar gerar no organismo da página uma espécie de rodapé que poderia conter notas sobre poesia, sobre livros lançados, traduções de textos curtos sobre poesia, mini-entrevistas com poetas. Tornar-se um organismo pluricelular é o melhor destino para essa página.

Fonte:oglobo.globo.com/blogs/prosa/