SESSÃO NOSTALGIA:

 

NOTA  AO LEITOR:

A crõnica abaixo fará parte do meu  livro:

          POLIEDRO DE INSÂNIAS

                      (CRÔNICAS)

 

 

 

 

o ARTIGO                                         O FASCÍNIO E O FETICHE

                                                                 Cunha e Silva Filho

          Nunca conseguia entender aquela visão extraterrestre  que, algum tempo atrás, para mim, mais parecia  um pandemônio, uma Babel sem torre. Hoje,  essa visão  é bem mais calma. Esse lugares  dos investimos, das cotações,  das Bolsas de valores, finalmente se ajustaram  a uma   visão  normal, mais humana   e até mais  sossegada   sem aquela  babel  de vozes  de outrora bradando  uns contras os outros como se desejassem se engalfinhar até atingir as vias de fato.    

          Aqueles homens, alguns com mangas meio  arregaçadas, nervosos, por vezes descabelados, sentados diante de computadores da última geração da época,  ou em pé numa mixórdia,  cujos signos mais concentrados vêm a ser os da gestualidade e da gritaria, me fazem lembrar uma narrativa sobre a loucura humana, cuja intriga se passa na espaço vertiginoso das ações da Bolsa de Valores.

         Não conseguia  também  atinar se aqueles homens estavam brigando ou se estavam simplesmente se comportando segundo padrões de estilos de trabalho que para eles  era a coisa mais normal e  rotineira. É preciso que eu me justifique sobre essa minha visão particular e um tanto quanto desfavorável.

         Até hoje só me recordo daquelas   cenas pela TV. Nunca lá estive para  entender daquele riscado.Não é que tenha aversão ao vil metal. Acho mesmo que, sem ele, não poderei sobreviver entre os mortais. Entretanto, no mundo dos títulos, das ações das altas e baixas  das moedas mais fortes, e sobretudo da moeda-símbolo do capitalismo  globalizado,  dos pregões, dos dividendos, das perdas e  ganhos,  dos  overnights das aplicações no world business, me sinto ,até hoje,  – mesmo estando fora dos umbrais  daquele ambiente -,  um ser diferente, anormal,  uma criatura bizarra, que não se amoldou até agora  à avassaladora onda esmagadora  do resto da minha individualidade.

         Via-me e  me vejo tão diferente daquele aglomerado de homens cercados  de máquinas eletrônicas, de gadgets, de telões planetários, de gigantescos quadros indicadores de cotações cambiais e de posições acionárias naquele painel constantemente se modificando numa velocidade que, por vezes, dói nos olhos, com cifras marcadas de números  em  escalas decimais que, ao final e ao acabo,  só me sobra na vista o desenho  último da cena: homens em  movimentos frenéticos, com telefones  ou celulares  nos ouvidos. Homens automáticos (seriam também,  por acaso, os “hollow men! do poema homônimo de T.S.Eliot (1888-1965?) com pensamentos  com o pé nos riscos ou nos lucros  estratosféricos – delícias das delícias no paraíso  profanado  de Adão e Eva.

           Até que ponto trabalhadores desse ofício conseguem transmitir-me um pouco que seja  do que defino  como ações humanas voluntárias e conscientes?  Por que cada  gesto, cada movimento,  cada  grito deles  me soava  como algo muito  mecânico, algo bem aproximado dos limites das possibilidades  robóticas.Tenho para mim que, naquele mundo às avessas, tudo parecia  ser simples e  normal.

            No entanto, a mim se me afigurava e ainda se me afigura, um universo surreal e insuportável, talvez não pela mera exterioridade da sua simbologia, mas pelo que encerrava de complexidade de sua estrutura interior, de realidades e mecanismos  próprios, com  seus pressupostos  somente elucidados  se recorrermos ao domínio filosófico. Provavelmente, Platão (c. 429-c.347  a. C.)  com as suas “Ideias” e com o “mito da caverna” nos pudesse  explicitar esses recônditos   espaços  da realidade  nos seus fins últimos.

          O que faz o homem agir levado só por valores materiais, no caso, valores  financeiros? A especulação de mercadorias, de bonds e shares, algum dia já produziu algum bem que se possa considerar útil? A valorização de um  produto mercadológico já trouxe algum benefício ao aperfeiçoamento  do indivíduo?

            Não há aqui  senão que  recorrer ao tema da reificação no romamce  São Bernardo (1934),  de Graciliano Ramos (1892-1953) discutido num antigo e  percuciente estudo “A  reificação de Paulo Honório,”   de Luis Costa Lima ( Ver LIMA, Costa Lima. Por que literatura?(Petrópolis, Rj., : Vozes,  1969, cap. 2,  p.49-70), tema  tão atual como  nunca o fora e tão aplicável a uma parte  bem considerável  da humanidade, entendida esta nos seus vários estratos sociais, desde que comece a ter alguma consciência do valor do dinheiro e dos bens móveis e imóveis da riqueza de nosso planeta.

          Minha mulher, que tem a sabedoria da experiência e o dom da inteligência pragmática, de vez em quando, me faz essa observação: -  “Tenho receio de que, menos dia, mais dia, o ser humano se transformará numa cédula,” Não está aí, leitor,  um bom exemplo de reificação? Estou me lembrando do famoso  personagem central,  Paulo Honório, do já citado  rommane São Bernadrdo 

           Típico exemplo do personagem-símbolo da reificação. Ao desejar adquirir tudo, ou melhor, se apropriar de tudo, por bem ou por mal, atropelando Deus e o mundo, Paulo Honório, a certo passo da sua narrativa, mostra até que limite leva a sua visão coisificada da vida. Ao afirmar que (...) “Professorinhas de primeiras letras a escola normal  fabricava (grifos meus) às dúzias” ( RAMOS, Graciliano. 28 ed. São Bernardo (Rio de Janeiro: Editora Record, 1977, p. 105), não está mais  do que reiterando essa visão mercantilista que o fazia colocar, numa escala de valor superior, a sua “fazenda” e não a pessoa de sua esposa professora, a infeliz Madalena, terminando por conduzi-la ao suicídio. Note-se, ademais, que o lexema “fabricava” pertence ao campo  semântico do universo reificado

           Será que, algum dia, irei ainda compreender que o mais  significativo, nesse mundo de Deus, é o cifrão? Ou continuarei sempre procurando decifrar os enigmas que cercam os templos pagãos das Stock Exchanges – fascínio e fetiche do homem capitalista?

NOTA: Texto modificado ligeiramente     a partir da sua forma  original.