[Paulo Ghiraldelli Jr.]

O episódio da Escola de Base, ocorrido em 1994 em São Paulo, deveria ter ensinado alguma coisa à imprensa. No entanto, ao ver que a Rede Globo usou novamente o episódio de Xuxa nesse último domingo (27/05), como se já não bastasse ter apresentado a coisa na semana passada, em um desespero pelo “ibope”, percebo que por mais que se tenha comentado a barbárie que se fez contra aquela escola do bairro do Cambuci, o jornalismo brasileiro ainda não aprendeu a lição.

A Escola de Base foi fechada, apedrejada e teve seus professores postos como inimigos públicos. Nenhum deles conseguiu se recuperar física e moralmente do episódio. Foram muitas vidas destruídas. Muitas famílias destroçadas. Tudo porque uma aluna, bem criança, segundo sua mãe, disse que foi molestada sexualmente por professores da escola, e a partir daí se concluiu que se tratava de uma prática dos professores e, enfim, chamados para a investigação, as crianças foram confirmando os abusos. A idéia de linchar os professores percorreu muitas cabeças, e a imprensa e as autoridades não fizeram nada para esfriar os ânimos. Mas, o tempo passou e essas crianças cresceram e, então, se lembraram do ocorrido, e resolveram desmentir tudo. Ficou provado então que a justiça havia colhido informações erradas, uma vez que provocou a imaginação das crianças, que falaram o que os adultos queriam ouvir. Mas, já não se podia fazer mais nada, todos da escola tiveram suas vidas interrompidas, uns até fisicamente.

Escrevi várias vezes sobre esse assunto, lembrando que na América, diferente da Europa, o espírito de Rousseau é vencedor. Todos querem proteger a infância. Mas isso não só por conta do romantismo rousseauísta que nos diz que a criança é pura, não mente, não faz isso e não faz aquilo. Há outros elementos tão perversos quanto aos divulgados por quem Nietzsche chamava de “a tarântula moral”.

Muito da nossa proteção é só em relação aos nossos filhos, que nunca saem da infância, mas não em relação aos filhos dos outros, que ficam adultos antes mesmo dos seis anos de idade, na nossa avaliação. Além disso, pesa também nossos traumas. Somos frutos de pecados que não existiram e, então, nos mantemos rápidos no gatilho quando se trata de mobilização contra o que chamamos de crimes sexuais. Somos bem mais lentos quando se trata de denunciar crianças que não vão à escola por conta do trabalho ou crianças que ficam sem pais porque nós mesmos não criamos leis para que seus pais possam estar em casa mais tempo com elas.

Mas, o que mais me apavora mesmo é nossa ojeriza ao sexo. Um dos criminosos de guerra nazistas mais terríveis, uma vez preso, recebeu na prisão o livro Lolita, de Nabokov. Ao terminar de ler, disse a quem emprestou o volume: “trata-se da coisa mais monstruosa que já pude ler ou ver em toda a minha vida”. Todos os bárbaros crimes cometidos por ele não eram monstruosos como o caso do professor que se apaixonou por uma garota pré-adolescente. Esse episódio, do comentário do nazista, sempre me volta à mente quando nossa sociedade se mobiliza para proteger a infância não de abusos variados, mas somente de agressão provocada pelo falo.

O trabalho infantil não tira a infância. A criança que faz malabarismos nos semáforos não perde a infância. As crianças que estão submetidas ao trabalho escravo não estão sem infância. As crianças filhas dos presidiários também não importam – tanto é que boa parte da população não quer que a família receba ajuda de custo prevista em lei. As crianças que estão jogadas nas ruas, cheirando cola e procurando lixo para comer estão com a infância intacta. Ninguém fica penalizado com isso. Mas, se uma criança ou, melhor ainda, se uma mocinha de 13 anos, vê um falo, então ela perde a infância.

O pior é que, nessa situação, a histeria coletiva é fácil acontecer. Xuxa falou que foi abusada por várias pessoas, até os treze anos, na sua própria casa, e então no dia seguinte faltou criança no Brasil para corresponder ao número de abusos que os órgãos policiais foram informados que haviam ocorrido ou estavam ocorrendo. Eis aí o perigo! A mesma histeria que se fez contra a Escola de Base, agora, voltada contra toda a sociedade. Eis que surge então no lar brasileiro todo tipo de desamor. Pais e avós começam a ser vistos como vilões. Qualquer aproximação com uma criança, logo é posta sob o olho paranóico de senhoras descabeladas e homens doentes, que imantados pela Xuxa iniciam o “medo de todos contra todos”. A guerra do “ibope” se perde nos descaminhos que podem, daqui para diante, fazer ressurgir vários casos como o da Escola de Base, mas que ninguém irá ficar sabendo. O Brasil é grande. Cabem frutos de histeria por lugares que nunca vamos saber.

Um fantasma ronda o Brasil, o “fantasma do falo”. Ele não é tão perigoso para as crianças quanto é a idéia maluca de que ele pode, como um raio, entrar nas vagininhas infantis a qualquer momento. Isso me mete medo: a paranóia que faz com que se inicie um movimento de Maria-vai-com-as-outras, é algo que me lembra o fascismo. Quando alguém com o poder da Xuxa vai para a TV – e não só ela tem esse poder – para fazer “dar ibope” a qualquer preço, somos nós, os brasileiros do sofá, que podemos nos dar mal. Podemos ter nossos lares arrebentados pela paranóia coletiva de uma sociedade que, só de seguir a Xuxa, já deveria começar a pensar em criar um grande divã para a população toda.

© 2012 Filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ