O ESCRITOR E O SEU LUGAR

                                                                            

                                                                                   Ó cousas vãs, todas vãs, todas mudaves (...)

                                                                                                                                Sá     de Miranda                                                               



                      No tempo em que iniciei nos anos setenta o magistério público municipal no Rio de Janeiro, lecionando língua inglesa da 5ª à 8ª séries (hoje ensino fundamental), uma graciosa adolescente de uns onze anos, muito simpática e despachada, chegou até a minha mesa e me perguntou se gostava de poesia. Lhe respondi afirmativamente. Sorridente, me disse: - Pois, professor, aqui lhe trouxe um livro de poesia de meu avô, pondo toda entonação ascendente na palavra “avô”. Percebi claramente nos gestos, na voz e sobretudo no olhar brilhante daquela menina o quanto de orgulho e de admiração demonstrava pela figura querida do avô. No livro havia uma dedicatória dela pra mim; não era, pois, um autógrafo do avô. Ela preferiu que assim fosse, que ela mesma ofertaria a seu professor o exemplar. Queria mostrar a mim e ao mundo – no caso, os seus colegas -, se possível, que seu avô era um escritor, era um poeta, alguém especial que merece respeito, consideração e reconhecimento público.

                Fico pensando na quantidade assombrosa – não estou exagerando - de autores que vão viver e morrer sem conhecer o favor do público. E não me reporto apenas aos anônimos, mas a tantos outros autores de uma livro só, ou dois, que, um dia, viraram escritores. Pouco gente irá ler os seus escritos, os seus poemas, as suas estórias. Talvez um pequeno círculo de amigos, se tanto. Entretanto, isso lhes basta para massagear-lhes o modesto ego. Isso lhes dá sentido à existência pouco exigente no domínio da criação literária. Provavelmente esse grupo, e me parece que seja mesmo muito numeroso pelo país afora, apenas aspirasse àquele velho clichê de mera convenção social segundo o qual um homem para ser completo deverá ser pai, plantar uma árvore e escrever um livro. Chamaria a esse grupo de autores – sem nenhuma intenção pejorativa -, de autores anônimos de primeiro grau, uma escala de juízo de valor decrescente que vai até ao anonimato de terceiro grau.

                No anonimato de segundo grau situar-se-iam aqueles autores que produziram mais de um livro, contudo nunca atingiram o patamar da fama. Seu público leitor é maior sem dúvida, ultrapassa o círculo meramente familiar e social e conseguiu mesmo ser um pouco conhecido durante algum tem

               No anonimato de terceiro grau se inserem autores de maior talento e que tenham editado livros com repercussão, durante algum tempo, só no seu bairro, no seu município ou até mesmo no seu estado, sem transpor, porém, os limites do seu estado. Já se vê que aqui se trata de escritores com certa visibilidade para o leitor. Esses três graus de anonimato corresponderiam aproximadamente ao que os ingleses chamam de minor writers, classificação que, pela primeira vez, vi numa obra do crítico e historiador Agripino Grieco (1888-1973).

              Fora dessa série de anônimos, posicionam-se os autores de repercussão nacional e até além-fronteiras. Esse é um grupo de certa forma difuso e suscetível, no julgamento da crítica, de ser vítimas de distorções valorativas. Acredito que nesse grupo se encontram aqueles que mais são injustiçados pela crítica e, além de injustiçados, esquecidos com o passar dos anos. E não estou falando aqui daqueles casos isolados de best-sellers que representam a hipertrofia valorativa indevida. A esses escritores de alta visibilidade no seleto e exigente meio acadêmico corresponderia a classificação inglesa de major writers. A grande contradição, no tocante ao caráter de visibilidade, é que os best-sellers, e no Brasil temos o exemplo de Paulo Coelho, não poderiam se classificar nos limites dos major writers. Quer dizer, têm visibilidade maior na estatística internacional junto ao público, mas não têm nível estético de um grande escritor da estatura de um Machado de Assis, de um Guimarães Rosa, de um Graciliano Ramos, entre outros.
                      Sabemos também que, entre os grandes escritores brasileiros, há gradações de prestígio, de reconhecimento e de nível de complexidade estética. Os historiadores literários, através de categorias valorativas, permanecem sempre vigilantes, observando, com paciência e tempo, os nomes que deverão constituir o corpus de privilegiados autores, nos diversos gêneros, a serem incluídos nas suas histórias literárias. Ainda na procura criteriosa, na formação do grande grupo de escritores maiores, o historiador, posto que cauteloso, vai relacionar, segundo o seu critério de natureza canônica, aqueles que, não obstante viverem fora do grande eixo Rio-São Paulo, já deram suficiente prova de que possuem uma obra de grande significação dentro da produção literária e cultural brasileira, com repercussão no país e no exterior.

                   Por outro lado, ao realizar essa procura de representatividade nacional de autores, o historiador estará sujeito a erros de reconhecimento ou mesmo erros devidos a julgamentos apressados e, às vezes, por vias indiretas, deixando, portanto, de agrupar escritores de excelente nível de qualidade literária que não chegaram a um maior reconhecimento em âmbito nacional. Acredito que isso ocorreu em parte com o poeta piauiense H. Dobal, há pouco tempo falecido. São exemplos de grandes escritores fora daquele eixo cultural, acolhidos pela historiografia brasileira, salvo omissões involuntárias, Gilberto Freire, Câmara Cascudo, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Benedito Nunes, Dalton Trevisan. A intenção desta crônica tem dupla finalidade. Primeiro, refletir sobre a condição do escritor brasileiro que, na sua generalidade, sofre o esquecimento do público, seja porque a este faltou empenho de conhecer os autores, seja porque o tempo nunca foi fiel amigo dos escritores. Tempo, em se tratando de autores, acentuamos, é sinônimo de olvido.

                    Uma segunda finalidade é a de levar a todos esses autores anônimos, de maior ou menor talento, não importa, a minha palavra de estímulo, de conforto, de solidariedade e mesmo de cumplicidade a fim de que não se sintam inferiorizados diante da glória de alguns outros companheiros da mesma faina intelectual. Somos o que construímos. Somos o resultado das diversas circunstâncias da vida. Ninguém deve ser espelho para ninguém. Construímos nossa essência, usando este termo em sentido filosófico, através de nossos atos e de nossas opções. A condição humana é frágil e prenhe de contradições e incertezas. Num poema formado de uma única quadra de título “Síntese”, do livro Verônica (1927), pertencente a um grupo de poemas classificado por José Guilherme Merquior como ‘poemas morais”, o poeta piauiense Da Costa e Silva (1885-1950) em clave filosófica, sentencia: O que me intimida/ O meu espírito forte/ Não é a certeza da morte,/Mas a incerteza da vida. O tempo, que flui incessantemente, é uma das mais sérias preocupações do ser humano. Ninguém escapa a essa condição existencial.