O conto de Herberto Sales

[Aramis Ribeiro Costa]

 
O contista Herberto Sales já encontrou o romancista Herberto Sales a meio caminho. Vinha de romances consagrados, entre os quais o primeiro, o famoso Cascalho, epopeia de garimpeiros nas lavras e grunas de Andaraí, obra que, rapidamente, lhe granjeara renome nacional. Cascalho fora dado a público em 1944, no Rio de Janeiro, pelas Edições O Cruzeiro, e foram romances também os dois livros seguintes, Além dos Marimbus (Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1961) e Dados Biográficos do Finado Marcelino (Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1965). O contista só aconteceria em 1966, ou seja, vinte e dois anos após a publicação do livro de estreia. Para participar de um concurso, Herberto escreveu três contos: “Quando o Homem Ama”, “O Paciente” e “Cachaça”, três relatos curtos e dialogados que, se não lograram os prêmios do certame obtiveram outro maior, que foi o de estimularem o autor a prosseguir no gênero. E, em pouco tempo, estava concluído o conjunto dos dezessete textos que seriam publicados sob o título de Histórias Ordinárias (Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1966). Mas por que o contista tardara tanto, quando tantos outros ficcionistas iniciam-se justamente pela página de pequeno fôlego, antes de aventurar-se no vôo mais largo do romance? É o próprio escritor quem explica, no seu SubsiDiário/ Confissões, Memórias & Histórias (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1988):
 
“Sempre achei muito difícil escrever um conto. Tentava, tentava, tentava, e acabava rasgando e jogando fora. Por intuição, e depois, sentindo sem exagero na carne a experiência, cheguei à conclusão, embora não à novidade — esta: só escreve um bom conto quem sabe realmente escrever. Quer dizer: quem tem o domínio da língua. Quem tem — escrevendo — o senso da medida. Ou melhor: o senso clássico e tomístico da medida. O arpejo certo. Sem uma nota a mais ou uma nota a menos. O buraco da agulha e a linha. Quase que a conta matemática da escrita.”
 
Foi essa conta matemática da escrita, acertada nos três contos já citados, a nota dominante das suas Histórias Ordinárias, um título sugerido pelo dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, com a aprovação imediata do autor, e, sobre o qual, há também que se questionar, principalmente pelas conotações da palavra ordinárias. O fato é que, de ordinárias nada tinham aquelas histórias no sentido da má qualidade, enquanto que, pelos costumes da época e dos lugares onde várias delas se passam, bem poderiam ser ordinárias na acepção de ocorrência ordinária, habitual, comum, como o episódio de “Emboscada”, que encerra o volume, um dos seus contos mais antologiados, e tão magistral quanto a passagem de Cascalho, onde o jagunço Zé do Peixoto é, também, emboscado e morto.
 
Seria quase impossível recontar, oralmente, o conto “Emboscada”. Ou melhor, poderia ser contado em pouquíssimas palavras, mas deixaria a impressão, em quem ouvisse, de se tratar de um conto pobre e sem nenhum interesse. Dois homens, um mais velho, Patuá, e um mais moço, Guido, caminham para emboscar o fazendeiro Pedro Neves. O mais velho está calmo, o mais moço nervoso. Todo o conto é o diálogo dos dois sobre a emboscada. Enquanto conversam, preparam-se e esperam. Finalmente surge a vítima, e eles atiram. Não há nada de interessante nisto. Entretanto a narrativa torna-se interessantíssima exatamente em função do diálogo, da descrição do ambiente e, sobretudo, do clima de expectativa e nervosismo durante o período da espera.
 
A reincidência do tema “emboscada”, primeiro no romance Cascalho e depois neste conto, indicaria a frequência da situação na época e nas terras em que tais histórias se passam. Mas, ainda assim, seria uma ocorrência ordinária apenas para aquela gente habituada à violência do garimpo daqueles tempos dos coronéis, e sua ilimitada sede de poder. O leitor contemporâneo, particularmente o urbano, não verá o ordinário desses episódios, nem mesmo neste outro sentido da palavra, surpreendendo-se, pelo contrário, com o inusitado e, às vezes, absurdo dos relatos. O mesmo se pode dizer das ocorrências urbanas. Embora uma ou outra, como em “Generoso, Generoso” — um mero encontro de amigos em diferentes condições financeiras —, o acontecimento possa ser considerado efetivamente comum ou ordinário, será difícil rotular desta forma, por exemplo, a história de “O Automóvel”, seu conto mais longo, cuja extensão e estrutura de trama beiram a novela, uma obra-prima de observação e sutilezas, capaz de fazer rir e pensar.
 
Maupassant, para condenar o recurso do acaso na ficção, dizia que não se deve deixar cair uma telha na cabeça de um personagem central. A exemplo de Monteiro Lobato, em seu famoso conto “O Comprador de Fazendas”, onde o vigarista Pedro Trancoso tira a sorte grande na loteria, Herberto, neste “O Automóvel”, ousando contrariar o mestre francês, deixa cair a telha na cabeça do personagem. Melhor: supera Lobato, e faz cair a telha duas vezes, ou, se quiserem, faz caírem duas telhas seguidas. Como em “Emboscada”, é possível resumir, em poucas palavras, o fio condutor deste enredo. Seu Raul é um modesto funcionário público, morador em Olaria com a família, a mulher e cinco filhos. Vivem de apertos quando, um dia, ele ganha um automóvel num sorteio — primeira telha. A vida da família passa a girar em torno do automóvel, com todos os problemas, mudanças, alegrias e decepções que ele proporciona, até que, pouco tempo depois, o veículo é destroçado na porta de casa, por um caminhão — segunda telha. Assim resumido, não se pode imaginar o quanto de riqueza narrativa possui este conto, o quanto ele desperta de interesse no leitor. Torna-se rico e interessante, em particular, pelo registro de pormenores do cotidiano, pela espontaneidade e procedência dos diálogos, e pela autenticidade dos personagens, extraordinariamente vivos e humanos em suas fraquezas e esperanças. Porém como se considerar ordinária ou comum a singularidade de alguém ganhar um automóvel num sorteio e perder, logo em seguida, esse mesmo automóvel, diante da própria casa, destroçado por um caminhão? Não fosse o extraordinário da circunstância, ou das circunstâncias, já que há mais de uma excepcional — o ganho e a perda do veículo —, não fossem, afinal, as duas telhas de Maupassant, e, certamente, este conto não aconteceria. Ocorre, portanto, nesse primeiro livro, o oposto do que acreditou o autor quando, em nota no início do volume, glosou o título geral dos seus escritos:
 
“Não se lerá aqui, nas histórias que estas páginas registram, nada de extraordinário. Nem a tanto poderiam elas aspirar, por lhes faltarem para isso engenho e fantasia. São simples casos. Coisas comuns. Histórias ordinárias.”
 
Está visto que não eram. Ou, se eram, deixaram de ser, pela distância do tempo e do ambiente, mas, sobretudo, pela perícia narrativa do mestre contista.
 
Encontrando o romancista Herberto Sales já pronto, senhor e mestre do seu ofício, o contista Herberto Sales tomou-lhe o estilo e, com ele, a linguagem seca, quase sem adjetivos, porém de amplas modulações, indo do escorreito e do erudito ao coloquial e costumeiro na região recriada. Sendo um observador sagaz do cotidiano, os seus contos, como os seus romances, tornam-se um registro quase obsessivo de quanto acontece à sua volta, como se o autor fosse um repórter que tivesse por missão documentar tudo sem distorcer a verdade, sem aumentá-la, sem diminuí-la, sem enfeitá-la com cores mais belas ou piorá-la com tintas ainda mais sombrias. Em Herberto o cinza não é azul disfarçado, mas cinza mesmo, o negro não é ausência de cor nem o branco é alvo. Cada coisa no seu lugar, na sua medida exata, ainda mais contido no conto do que no romance, contido em cada frase, em cada palavra nua e crua. Apesar disto tira humor de tragédias, como no originalíssimo “Duas Versões”, com seus dois tão inesperados desfechos. E também não esconde a sensibilidade nem a indignação, tampouco a emoção diante das injustiças ou dos sofrimentos, fazendo do seu trabalho, além de arte literária de altíssimo nível, um instrumento poderoso de denúncia. Se fosse repórter, as suas observações resultariam em duras reportagens. Sendo um ficcionista, recria a realidade na literatura, inserindo nela o registro dos costumes, fazendo-a documento de época e de lugar, reveladora da condição humana em seus mais íntimos, ínfimos e também maiores anseios e conflitos.
 
Diante de tais abordagens, seria lícito acreditar-se não se preocupar este contista demasiadamente com a urdidura do seu conto. Porém isto não é verdadeiro. Há tramas que resultam de cuidadoso artesanato, cujos elementos narrativos são peças que se encaixam e se completam, obtendo, no final, o efeito desejado. Veja-se este “Duas Versões”, aqui citado. O conto inicia com uma pergunta: “Finalmente, como teria João Sapucaia matado a mulher?” Note-se que o autor não põe em dúvida o assassinato, como não porá em dúvida, no corpo da narrativa, o motivo do crime. João Sapucaia, “garimpeiro, residente no povoado de Piranhas”, matou a mulher, D. Luzia, por ciúme dela com Coriolano, “um homem de dente de ouro, conhecido tocador de harmônica”. É um fato. E matou a facadas, também isto não é posto em dúvida. O que não se sabe é de que forma, exatamente, se deu o homicídio. Há a versão de Jorjão, e esta é a primeira a ser contada, onde João Sapucaia esfaqueia a mulher dentro de casa, enquanto recebe o seu compadre Isidro, que trazia um peru, para a festa de São João. João Sapucaia fica alternando entre ir lá dentro dar mais uma facada na mulher, até a derradeira, na goela, e a atenção ao seu compadre, na sala. O conto podia acabar aí, com a morte da mulher e o pedido para que Isidro o levasse para a cadeia. E estaria muito bem. Mas seria apenas o curioso relato de um crime passional, pouco mais trabalhado que uma notícia jornalística em página policial, ou o pormenorizado registro de um inquérito, numa delegacia de polícia. Então o autor, inesperadamente, conta a outra versão do assassinato, onde a mulher sai de casa correndo, já esfaqueada, e a última facada é dada em plena rua, diante de várias pessoas, inclusive do compadre Isidro, que vai chegando naquele momento. E o pequeno conto, que seria apenas divertido se permanecesse na primeira versão, cresce extraordinariamente em originalidade e interesse.
 
O que mais surpreende a quem estuda as páginas de ficção curta de Herberto Sales, das quais esta “Duas Versões” é uma das mais expressivas, é como ele consegue armar um conto com tão poucos incidentes narrativos, e ainda consegue tirar das circunstâncias — aparentemente pobres — o mais perseguido dos efeitos neste gênero literário: a surpresa.
 
Ainda em relação aos contos de Histórias Ordinárias, narrados, todos eles, na terceira pessoa e, indiscutivelmente, páginas de ficção e não simples relatos de experiências e sensações ou registros de acontecimentos reais, não se poderia esquecer a matéria-prima autobiográfica, sobretudo porque confessada no SubsiDiário, e não raro identificada — como em “Ordem de Pagamento”, as atribulações de um escritor para receber direitos autorais vindos da Bulgária, e “Memórias”, onde o personagem tenta, desesperadamente, ser um contista, sem êxito.
 
O livro de contos seguinte, intitulado pelo autor de Contos Folclóricos e modificado, pela editora, para O Lobisomem e Outros Contos Folclóricos (Rio de Janeiro, Ed. Ouro, 1970), representa um trabalho singular na obra de Herberto Sales, pois permuta a recriação da realidade pessoal e circundante pela recriação de temas do imaginário popular, de raízes índias, negras e portuguesas, transmitidas através de gerações, pela oralidade, como Lobisomem, Caapora, Saci, Mãe-D’Água, Mula-Sem-Cabeça e outros. As histórias aproveitam-se, principalmente, das lendas dos encantados que lhes servem de protagonistas, daí a sua natureza folclórica. Não há, no entanto, como excluir este livro da sua contística, desde quando as suas páginas são verdadeiramente contos, nascidos da habilidade ficcional do autor, e não apenas transcrições da tradição oral. A nota inserida na primeira página do volume explica isto:
 
“Não são variantes, na acepção da pesquisa e da ciência; mas versões pessoais de ficcionista, literatura com motivações folclóricas, só: bichos, crendices, povo. Reinvenção do inventado; conto do contado, recontado sob outra forma, por outra boca: acrescentos do homem à obra que o povo faz. Como diz o próprio povo e reconhece: “Quem conta um conto aumenta um ponto”.”
 
São quinze contos vivos, movimentados, cheios de suspense, impregnados dos mistérios dos encantados, como em “Flor-do-Mato”, a caapora fêmea, que seduz e atrai, para o interior da mata, o solitário menino Janjão, roubando-o para sempre do seu avô, ou como em “O Mistério das Sete Estrelas”, onde sete indiazinhas são transformadas no Sete-Estrelo pela estrela Ueré. Embora também autor de literatura infantil, Herberto Sales não dirigiu estas páginas à infância, como fez Monteiro Lobato, quando tratou de temas semelhantes, em O Saci e Histórias de Tia Nastácia. Mas deu-lhes um especial colorido num estilo que lembra o contador do povo contando histórias, “realizando uma adequação de linguagem em que o clássico se funde com o popular”, como observa um comentário na primeira edição do livro.
 
A recriação da realidade na ficção de pequeno fôlego, quase com as mesmas características das Histórias Ordinárias, teria o seu retorno, no mesmo ano da publicação de O Lobisomem e Outros Contos Folclóricos, em Uma Telha de Menos (Rio de Janeiro, Editorial Tormes, 1970), um conjunto de dezoito contos curtos, cujo título geral, apesar de sugestivo e instigante, não pertence, como no primeiro livro, a nenhum deles. A linguagem, marca do autor, permanece a mesma em seu rigor e precisão, bem como a fluência narrativa e a estrutura e o desenvolvimento das tramas. Permanece, igualmente, a alternância de cenário entre o rural e o urbano.
 
Exemplo, neste livro, de conto rural, é o excelente “O Morrinho”, que abre o volume e rivaliza, com “Emboscada”, na preferência dos organizadores de antologia. Os dois primeiros parágrafos, concisos, precisos e curtos, definem os rumos do episódio:
 
“Coisas de terras; uma cerca que não devia passar por onde passava. O rumo era outro, pela escritura; mas a cerca de Militão acabou entrando nos terrenos de Apolônio, e pegou de viés um morrinho que não era lá grande coisa.
 
Apolônio chamou dois crioulos e mudou a cerca de lugar, recuando-a para o rumo indicado na escritura: o morrinho inteiro tinha de ficar dentro do seu terreno. Era assim que estava na escritura.”
 
Desta forma começa o conto, e começa a disputa entre Militão e Apolônio pelo morrinho, disputa que acaba na morte de um deles, baleado pelo outro. Aqui, mais uma vez, Herberto surpreende, extraindo, de uma controvérsia banal de divisa de terras, um episódio tragicômico primoroso. Por suas peculiaridades, “O Morrinho” talvez melhor estivesse em Histórias Ordinárias, ao lado de “Emboscada” e “Duas Versões”.
 
Demonstrativo de conto urbano em Uma Telha de Menos é “Fim de Semana”, um interessante caso de excessivo ciúme conjugal, onde o personagem Leovigildo prefere pedir o desquite a ter de explicar à ciumentíssima Célia, sua esposa, a circunstância verídica e inocente, que o envolve num acidente com outra mulher.
 
De um modo geral, em Uma Telha de Menos, as narrativas tornam-se mais breves e mais leves, algumas chegando à fronteira de um território que se poderia creditar à crônica ficcional, na forma e no tratamento. Apresentam-se, também, esses contos, em seu conjunto, com uma menor densidade dramática, e já não é tão evidente o registro obsessivo dos costumes, embora permaneça a anotação cuidadosa dos fatos e das circunstâncias. Como em Histórias Ordinárias, são narrados na terceira pessoa, com exceção de “Uma Questão de Tranquilidade”, as desventuras de um proprietário de apartamento que é solicitado para ser avalista, e conservam, ainda que, algumas vezes, em esboços, a estrutura clássica do princípio, meio e fim, com especial atenção para o desfecho. Mas, neste livro, o contista dá a impressão de um narrador mais descontraído, menos formal, como se estivesse a contar casos numa roda de amigos, com o intuito de interessá-los e distraí-los. É oportuno transcrever, do SubsiDiário, um comentário do autor sobre Uma Telha de Menos:
 
“Confesso que nesse tempo, tendo já de alguma maneira conquistado a forma, quer dizer: a forma que tenho de ser mais claro comigo mesmo e com os outros, não me era difícil escrever um conto. Porque o resto — isto é o recheio da forma — para mim não era e talvez ainda não seja o problema. Para escrever um conto, basta-me a mim escrever um dos mil e um desimportantes episódios com que ao longo do tempo venho compondo sem querer a minha autobiografia, imiscuídas nelas as gentes que conheci e que recordo, entre a piedade de meu ódio e o arrependimento de minha simpatia. O que tem de autobiográfico nesse livro não está no mapa. Enfim o escrevi.”
 
Histórias Ordinárias e Uma Telha de Menos tiveram, também, edição conjunta, sob o título geral de Transcontos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974).
 
O quarto e último livro de contos de Herberto Sales foi Armado Cavaleiro o Audaz Motoqueiro (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980).
 
Escrito em função do último conto da coletânea, “Edgarzinho ou Atos que não se Praticam”, onde o autor coloca a sua revolta contra demissões arbitrárias, particularmente no serviço público, o conjunto das narrativas mantém a característica de crítica e sátira social e de costumes. Seus heróis, os tão conhecidos anti-heróis contemporâneos, massificados e não raro esmagados pela grande máquina da sociedade, são criaturas do nosso convívio diário e com as quais, muitas vezes, nos identificamos, como em “O Vôo da Fantasia” — onde um personagem sonha com viagens de avião sem a habitual perturbação das mamães, dos papais, dos vovôs, das vovós e, acima de tudo, das crianças —, ou como em “Sede de Vingança” — onde um funcionário pensa em matar o chefe que não o valoriza. Criaturas insatisfeitas e rebeldes, de alguma maneira, nesses episódios, manifestam o seu inconformismo, às vezes de forma bastante insólita, como em “O Estilete” — no qual um cidadão aparentemente normal manda fabricar um estilete com trinta centímetros para espetar, através do estofado, o primeiro passageiro que, na poltrona da frente do avião, reclina-se a ponto de incomodá-lo.
 
Pontuando esses contos com uma boa dose de humor, mas, sobretudo, com uma grande carga de ironia e indignação, Herberto Sales apresenta-se, na coletânea Armado Cavaleiro o Audaz Motoqueiro, quase um contista novo, imprimindo uma maior velocidade ao seu estilo, com uma linguagem mais solta e uma maior liberdade narrativa, como é exemplo a história que serve de título ao volume. Este conto, “Armado Cavaleiro o Audaz Motoqueiro”, reafirma o pendor irresistível do contista Herberto Sales para a tragicomédia. Comédia fina, irônica, inglesa, extraída dos costumes ou — como queria Wilson Lins — dos maus costumes. E tragédia rápida, cortante, de causar impacto no leitor e deixá-lo estático, mudo, pensativo, a “ouvir uma mosca voar”, como dizia Lobato de Maupassant e de Kipling, e como desejava que fossem os seus próprios contos. O garotão louro, de compridos e escorridos cabelos louros, repartidos ao meio, parte cavalgando a sua moto possante, armado cavaleiro, na liça do asfalto. Vem o ônibus, vem a tragédia. Tudo muito rápido, numa velocidade de tirar o fôlego, levando o leitor, no curto espaço de tempo da leitura do conto, do sorriso inicial pelo tom irônico do contista, à perplexidade pela morte brutal do personagem. Nesta página há um absoluto domínio da técnica narrativa na ficção de pequeno fôlego. Uma página de mestre. Lamentável que, justamente quando este nível de qualidade indiscutível é atingido, Herberto abandona o conto para sempre, jamais a ele retornando.
 
A ficção curta de Herberto Sales foi reunida ainda, em livro, nas seguintes antologias: Seleta, Organizada por Ivan Cavalcanti Proença, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1974; Vamos Ler Herberto Sales, Seleção e nota introdutória de Fernando Sales, Rio de Janeiro, Cátedra, 1984; Os Melhores Contos de Herberto Sales, Seleção e estudo introdutório de Judith Grossmann, São Paulo, Global, 1984; e Herberto Sales — 10 Contos Escolhidos, Estudo introdutório de Maurício Salles Vasconcelos, Brasília, Horizonte, 1985. Participa, ainda, de inúmeras antologias nacionais e estrangeiras, tendo sido os livros traduzidos para diversos idiomas.
 

Sem a continuidade do romancista Herberto Sales, o contista Herberto Sales, com páginas como “Duas Versões”, “Emboscada”, “O Morrinho”, “Armado Cavaleiro o Audaz Motoqueiro”, e, sobretudo, “O Automóvel”, colocou-se, no conto, como já o fizera, no romance, o romancista, entre os maiores da literatura nacional. 

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