O ciclo da borracha na ficção amazonense

Lucilene Gomes Lima: FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS

Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas

A ABORDAGEM DO CICLO DA BORRACHA NA FICÇÃO AMAZONENSE

(Na foto, representação do herói Ajuricaba que enfrentou os dominadores poretugueses)

             A presença constante do tema do “ciclo da borracha” na ficção amazonense levou Mário Ypiranga Monteiro, em Fatos da literatura amazonense, a criticar o filão em torno desse tema, observando: “[...] lamentavelmente todo contista que se inicia ou mesmo romancista já experimentado se deixa seduzir pelo denominador comum da economia da borracha [...].[1] Para o autor, o tema do ciclo é o principal motivo do infernismo literário, o qual consiste em escandalizar a paisagem e explorar a tragédia em torno da figura opressora do coronel da borracha e da conseqüente submissão do seringueiro. A ficção da borracha padeceria, segundo sua avaliação, de um tautologismo ao repetir desgastadamente sempre os mesmos aspectos.

            Opondo o infernismo do “ciclo da borracha” ao edenismo do ciclo do cacau, Monteiro demonstra as diferenças fundamentais entre esses ciclos. Observa que o ciclo do cacau promoveu a fixação à terra, criou condições para que se estabelecesse uma cultura expressiva do sedentarismo burguês. A própria estrutura arquitetônica da casa-grande do ciclo econômico do cacau ostentava permanência, comodidade, com sua variedade de janelas, seus quartos amplos, suas salas de jantar e de estar, seus móveis em estilo clássico e as redes armadas nas salas de jantar ou à sombra dos cacauais. Já o “ciclo da borracha” apresentou um panorama social bastante diverso. Sendo economia de transplantação, suas características eram as relações de desconfiança entre patrão e freguês, suas moradias ostentavam o aspecto da improvisação dos que não tomavam assento definitivo à terra. Nas palavras de Monteiro, a sociedade econômica do ciclo

 

[...] conduz os trabalhadores da ‘margem’ para o ‘centro’, da liberdade para a reclusão, isola-os, explora-os, escravíza-os ao regime da conta sem-fim, animalíza-os, brutalíza-os, inutilíza-os até para a satisfação sexual, instaurando um quadro de renúncia forçada aos acenos ambiciosos da vida, um estatuto de anacoretismo em que parece mais evidente o contexto da sabedoria popular: mente desocupada é oficina de satanás. A ausência da fêmea, nutrindo a preocupação dos machos famintos de associação e presença, é suprida pela imaginação sofredora e urgentiza a paródia, a busca de soluções desesperadas. Daí para os conflitos sangrentos é um passo.

Nasce o infernismo literário, produto da economia predatória e da paixão solitária.[2]

 

            Monteiro aponta um tratamento superficial dado pela maioria dos escritores às obras do ciclo ao afirmar que tanto os antigos quanto os modernos deixaram de perceber o mundo do seringal por uma via verdadeiramente sociológica que penetrasse a sua engrenagem internamente e optaram pelo aspecto externo da tragédia fácil.[3] Para Monteiro, as características da economia de transplantação geraram as formas de abordagem que enfatizam a negatividade do meio, os comportamentos humanos aberrativos.

            A ficção em torno do ciclo explorou abundantemente imagens da solidão do seringueiro na selva, solidão que na maioria das vezes é o degredo do nordestino retirante, vivendo o estranhamento de uma ambiente que lhe é desconhecido e hostil. A relação inamistosa do seringueiro com os índios que habitavam as grandes extensões de terras dos seringais é também um tópico quase sempre abordado nas obras do ciclo. Via de regra, o indígena aparece como um ser sanguinário, ameaça ao trabalho do seringueiro, pavor que faz o dia-a-dia nas estradas de corte de seringa um perigo constante. Além desses tópicos que geralmente se apresentam nas obras do ciclo, ocorre a constância de alguns aspectos, muitas vezes estruturadores dos enredos, que se relacionam diretamente às características das relações de trabalho estabelecidas em função da extração do látex. O relacionamento do patrão seringalista com o seringueiro ou freguês motivou a maior parte das abordagens das obras. Os dados históricos que informam as condições nem sempre justas do vínculo de trabalho entre o patrão e o freguês serviram de corolário à criação dos ficcionistas, abrindo um caminho que foi percorrido diversas vezes. Passaremos a analisar, a seguir, a constância desses aspectos nas obras do “ciclo da borracha”.

 

A dicotomia explorador-explorado

 

            Seringalistas e seringueiros são, na maioria dos romances da borracha, as personagens centralizadoras dos enredos ou, se considerarmos outro aspecto da narrativa, personagens sob as quais recai a focalização.[4] As demais figuras presentes nas atividades do seringal, entre elas gerentes, guarda-livros ou aquelas atreladas ao processo do ciclo, tais como aviadores, exportadores não têm presença de destaque na prosa do “ciclo da borracha”. Não se tem a visão do mundo do seringal senão através do seringalista que configura o explorador e do seringueiro, o explorado.

            A condição do seringalista como explorador da força de trabalho do seringueiro possibilitou a criação de um estereótipo do patrão truculento. O endosso dessa imagem veio das próprias relações de trabalho estabelecidas nos seringais. Ao criar o contrato de trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês seringueiro a um regulamento que estabelecia mais vantagens ao patrão do que ao freguês. Além das perdas que o seringueiro tinha com a cobrança de um débito que se iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal e acrescia-se com o preço das ferramentas de trabalho, também era obrigado a se submeter a uma ração alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A selva, a percepção do narrador põe-se frontalmente em oposição ao seringalista, esclarecendo a condição de servidão do seringueiro, vítima da má fé e da extorsão:

 

Aquele era sempre o ‘talão grande’ onde se juntavam as despesas da viagem e mais empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingênuo.

Alberto viu-se com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcelados por seis ou oito linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe pareceram não valer um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à nota do vizinho, descobriu nela uma quantia igual, repetida em quantos papéis se estendiam para Binda.[5]

 

            Em Terra de ninguém, romance de Francisco Galvão, o narrador também demonstra aversão pela personagem do coronel seringalista. Identificando-se com os seringueiros, esse narrador critica o enriquecimento do seringalista, os privilégios que aufere às expensas do trabalho dos seringueiros. No contexto do romance, a possibilidade de saldo para os seringueiros é taxativamente negada:

 

A vida corria monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna do dono do seringal. Todos lutavam com o mesmo esforço, como polias impulsionando a mesma máquina. As estradas contribuíam, com o suor humano, para que ele possuísse na firma J. G. de Araújo, grandes reservas monetárias.

[...]

Mil braços se estorciam ajudando a engorda pacífica e mansa desse homem, na selva bárbara, onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que aumentava o débito da conta corrente pela desapreciação do preço das gomas.

O que se atrevesse a falar em saldo, no desejo natural da volta ao nordeste, arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estrada, morto à tocaia mandada fazer pelo Antônio.[6]

 

            Ainda que prepondere nas obras a desdita do seringueiro que vem para o seringal com o sonho de enriquecer e encontra apenas trabalho árduo, condições de sobrevivência precárias e risco de vida, há alguma referência a seringueiros enriquecidos com o trabalho de extração como nesta passagem do romance Dos ditos passados nos acercados do Cassianã:

 

[...] Deveras que muito seringueiro teve de sua sorte. Ganhou dinheiro a valer. Se não gastou nas safadezas na capital, voltou rico. José Francisco foi um dos agraciados. Com o saldão recebido, tornou ao Ceará. Montou comércio em Fortaleza, vive hoje de como que quer. Saber-se de outros, comprando fazenda de criação, engenho, grandes porções de terras no sertão. Uma dessas se dando, quando a borracha vai longe. De tirar saldo de não ter onde guardar [...][7]

 



[1] Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura amazonense, p. 297.

[2] Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura amazonense,  p. 41.

[3] Ibid.,  p. 47.

[4] De acordo com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético, conseqüentemente, a focalização além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação [...]” (Dicionário de teoria da narrativa, p. 246).

[5] José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,  p. 101.

[6] Francisco GALVÃO, Terra de ninguém,  p. 89.

[7] JACOB, Paulo Herban Maciell, Dos ditos passados nos acercados do Cassianã, p. 37-8