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[Bráulio Tavares]

As chuvas catastróficas no Estado do Rio neste começo do ano aconteceram, por sincronicidade, na mesma semana em que eu estava lendo, no livro de Marshall Berman Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, o capítulo dedicado à cidade de São Petersburgo, e à sua importância na consolidação dos projetos modernistas da Europa. Berman explica que Petersburgo foi uma cidade conquistada ao mar, um triunfo da engenharia e do urbanismo de sua época, uma espécie de apoteose do pensamento modernista de que a ciência, a tecnologia e a razão são capazes de vencer qualquer obstáculo, e que suas vitórias sempre representam a passagem para um estágio superior da vida humana.

Berman comenta o poema de Puchkin “O Cavaleiro de Bronze”, em que Petersburgo é destruída por uma enchente do rio: “O rio desabou com ódio e tumulto, inundou as ilhas, fez-se cada vez mais feroz, elevou-se e rugiu como uma máquina exalando vapor e, frenético, desabou finalmente sobre a cidade. (...) Um cerco! Um ataque! Ondas sobem até as janelas, como bestas selvagens. Barcos, numa massa desordenada, quebram os vidros com as popas. Pontes que o dilúvio rompeu, fragmentos de cabines, vigas, tetos, as mercadorias dos comerciantes precavidos, os pertences arruinados dos pobres, as rodas das carruagens da cidade, os caixões do cemitério, tudo flutua à deriva pela cidade”.

A criação da cidade pela engenharia e sua parcial destruição pelo rio/mar ganham dimensão simbólica pela força da poesia de Puchkin e da análise de Berman. Cada cidade é um pequeno triunfo modernista e tecnológico, uma modesta derrota imposta à Natureza (porque é em termos de conflito contra a Natureza que as cidades em geral são vistas). Cada vez que o império da Natureza contra-ataca, conquista, por sua vez, uma modesta vitória. O mundo moderno, conforme Berman o enxerga, perde cidades inteiras como uma cobra perde pele: como uma fase natural de seu próprio crescimento.

As obras da antiguidade sonhavam em permanecer de pé durante 40 séculos; as de hoje querem ser a apoteose do presente. Até quando desmoronam são um triunfo, porque o capitalismo/modernismo, insaciável, constrói outra por cima das ruínas da primeira. Nossas cidades são o avanço do descartável, do efêmero, bairros construídos sobre lixões, favelas espalhadas no mangue da beira-rio, efeitos colaterais da briga com a Natureza e primeiras vítimas dos seus contragolpes. Cada pirâmide precisa de 150 mil operários e consequentemente de 150 mil barracos; não existem pirâmides onde não existem barracos.

As enchentes de Teresópolis, Friburgo, São Paulo, bem como as de Palmares e de cidades alagoanas ano passado, são a pororoca entre civilização e natureza. Nossas cidades se desmancham no ar porque seu sentido se esgotou (para quem as construiu) no empreendimento da construção. É a civilização do presente, que constrói como se o futuro não viesse nunca, como se já tivéssemos atingido o fim da História.