O canto do rei

Rogel Samuel


Depois de um elogio de Neuza Machado ao poema de Walmir Ayala abaixo, volto àqueles versos de mãos limpas de ouro, mas que sobrevivem a cada manhã fabricando seu próprio sol, rei pássaro matinal que tenta no desespero voar, e se pergunta, pária, que se condena ao estado de rei-mendigo onde claudica, ele, como pássaro, abre a sua canção ao espaço (oblíquo) de seu desusado jardim, demodê, "o coração já não se usa" (disse um poeta), pois não sendo ele-mesmo um jardineiro do chão, faz dos astros as suas flores a cada aurora, mar onde mergulha, mar onde adere, e onde naufraga, invertido (os mastros se mergulham primeiro, ao naufragar), e na sua esquadra feita de só de quilhas, no peso dessas quilhas está seu ouro, sua riqueza, suas luas, as luas do seu reino, as luas do seu reino de estrelas, que se desbobram cada madrugada como um pálio de párias, que poeta!


CANTO DO REI

Rico de ouro não sou, porém. fabrico
o sol cada manhã, estendo penas
(pássaro matinal) e atinjo antenas
de desespêro no meu vôo ubiquo.
Se tu, pálio de párias, me condenas
à rude mendicância onde claudico,
abro a minha canção no espaço oblíquo
das tuas superadas açucenas.
Jardineiro não sou. Feitor dos astros,
recrio minha aurora de aderências
na prematura submersão dos mastros.
Nas quilhas dêstes barcos que me sobram,
é que o sol dos meus ouros se conforma,
e as luas do meu reino se desdobram.