O buraco
Por Gabriel Perissé Em: 31/01/2007, às 22H00
O buraco é o contrário da montanha. A montanha escalamos, no buraco despencamos. A montanha indica superação, o buraco significa passividade, o vazio, a residência da morte, o fim do caminho.
O buraco tem a ver com a caverna profunda. Está associado ao medo de entrar e não sair, à perda da luz.
O buraco negro, o buraco branco, buracos na camada de ozônio, o desconhecido, o ameaçador, o chão que desaparece sob os pés, o desespero da queda.
Cavamos buracos para multiplicar a vida ou esconder os corpos, ou eles se abrem sozinhos em pleno dia. Os buracos são a boca faminta, querem nos tragar. Alimentam-se de tudo. Buracos omnívoros.
Olhamos pelo buraco da fechadura, os ricos não passam pelo buraco da agulha, cair no buraco é fracassar, e depois é quase impossível sair do buraco.
É mais difícil tapar buracos do que quebrar galhos. A burocracia do buraco. O buracão e seus barulhos, seus ecos, seus pesadelos, a solidão imensa do buraco sem fundo, a buraqueira, a buracada.
Buracos embaralham nossas idéias. Buracos nos deixam fracos, atônitos, perplexos. Todo buraco deseja secretamente tornar-se abismo. O buraco e sua história de terror. O buraco, aflição imensa, lugar remoto, desastre, terremoto, ruína, agonia da nossa civilização.
Buracos falam sozinhos, fazem prognósticos pessimistas. O buraco antecipa o pior, dá uma bofetada em nossa arrogância, puxa o tapete, dá rasteira, pisa nosso orgulho.
Buracos pequenos provocam tropeços. Buracos maiores atrapalham o trânsito. Buracos gigantescos humilham a cidade. O buraco surge do nada, e tudo quer engolir em sua fome buracal. O buraco é bocejo infinito. Os buracos não dormem e não deixam dormir.
Todo buraco é mentira, enganação, falsidade. O buraco finge o tempo todo. O buraco no orçamento, no discurso, na argumentação, no texto, na tese. Buraco é olhar para dentro de algo e não ver o que ali deveria haver. A vertigem do buraco.
O buraco e o avestruz. O buraco e o agricultor. Os buracos da lua. Os buracos do queijo. O buraco crescendo lentamente, sonhando em tomar o lugar de tudo, e de destinar tudo e qualquer coisa para o lugar nenhum.
De buraco em buraco perdemos o rumo. O buraco nos chama, quer nos levar para o outro lado do mundo. Pelo buraco assistimos ao decaimento, à falta de sentido. Os buracos são olhos arregalados.
Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e escritor.