O bom momento da ficção brasileira

[Ronaldo Cagiano]

Há uma certa nostalgia para se falar no novo “boom” da ficção brasileira, quando alguns críticos e analistas da cena ou dos fenômenos literários reportam-se à mitologia dos anos 70 para ressaltar a pujança criativa daquele período. Sem dúvida, muitos dos autores que hoje pontificam na literatura brasileira eclodiram naquela década. Encravada no período ditatorial (1964-1985), quando as liberdades (política, estudantil e de expressão artística e intelectual) foram sumariamente varridas da vida brasileira, forjou o nascimento de uma escritura vigorosa e de uma arte contestadora. Natural que os poucos autores que conseguiram burlar a censura e as proibições e despontaram nessa época representaram um avanço e uma novidade estética num universo sufocado e sem esperanças, principalmente as vanguardas na literatura, no teatro, na música e no cinema. 

No entanto, hoje podemos constatar a existência de uma nova efervescência no campo da criação literária, até superiores em número e qualidade. Verifica-se isso por duas razões distintas: as facilidades ou suportes do mundo virtual (que em blogs, sites e revistas eletrônicas permitem circular de forma democrática e alcançando público variado e de forma veloz, distintas vozes da ficção e da poesia) e os suportes editoriais, que favorecem a edição de boa literatura com pequenas e médias tiragens, de obras de autores iniciantes ou mesmo com bibliografia estabelecida, com um padrão gráfico que nada deve aos selos consagrados, que, muitas vezes dominam o mercado, excluindo-os das estantes das grandes redes de livrarias.

São de pequenas e médias editoras que vêm surgindo novidades na produção literária, ainda que o incensamento da mídia e os holofotes da crítica jornalística voltem-se prioritariamente para autores que pertencem ao mainstream, reverberados pela política agressiva de marketing das grandes editoras, o que nem sempre quer dizer literatura de qualidade por conta do excesso de exposição e da forjada “consagração”. 

Na esteira da multifacética produção ficcional, há autores que vêm produzindo, sem alarde e sem albergue no guarda-chuva da grande mídia, obras de grande qualidade. São livros de inegável densidade publicados por pequenas editoras em diversas regiões do País e com o mesmo esmero editorial de uma grande casa. Porém, em relação a esses é perceptível uma negligência solene, para não dizer um criminoso silêncio e uma estratégica ignorância da imprensa monopolista e hegemônica do eixo Rio-São Paulo.

Entre os destaques dessa profícua e prolífica safra, vale destacar a promissora estreia de Rafael Sperling. Em seu Festa na usina nuclear (Ed. Oito e Meio, 2011), o jovem escritor carioca assina uma prosa segura e visceral, cujas histórias e cenários transitam do inusitado ao suprarreal, revelando um autor às voltas com os dilemas e dramas contemporâneos, cujos personagens incorporam a perplexidade e o desconforto diante do absurdo da realidade e dos fetiches da própria modernidade.  Nos 25 contos a sensação de estranhamento e inquietação, tanto na estrutura formal quanto no desenrolar das tramas e nos movimentos dos protagonistas, incorporando um certo viés do fantástico permeado de humor e ironia, metaforiza o caos do mundo em que vivemos. 

Inventivo e ousado, sem cair na falsa experimentação, o autor lança mão de recursos narrativos que conferem à sua prosa uma singular plasticidade ao falar de de um tempo e de temas atuais e até desconcertantes, como (a falta de) sentimentos, a violência, a miséria (material e moral), a fetichização do homem, a deturpação dos valores e outros gargalos existenciais, com uma dicção que explora todas as possibilidades da linguagem. Sem dúvida, Festa na usina nuclear chama atenção a partir do próprio título, mas primordialmente por não ser um livro bem comportado, porque não deixa pedra sobre pedra, e num percurso tão onírico quanto escatológico, profanando o politicamente correto, oferece ao leitor uma nova alternativa de leitura. Não é exagero afirmar que num momento de celebrização de mediocridades literárias elevadas ao status de inovação e/ou renovação, a escritura de Sperling, por sua alta voltagem e provocação, não nos deixa indiferentes, é um soco no estômago e nos possibilita questionar os contrastes desse “mondo cane”.