O bode, a onça e um barraco romano

Por Flávio Bittencourt

 Atchim! Cuidado! A gripe suína apavora o mundo.  Na medida em que a vida, apesar dos pesares, é bela, as pessoas não querem morrer. Na vida real, da mesma forma que na clássica narrativa "sem autor" O bode e onça, legitimamente inventada por aquilo que se convencionou chamar de o povão, depois de uns poucos espirros, a confusão acontece. E uma baita confusão aconteceu mesmo há dias, envolvendo honrada senadora brasileira. Na Itália. Em vôo internacional e, depois da aterrissagem do avião, em aeroporto romano, sendo que não é possível se falar em contos - já que nesta coluna, depois, muitos deles serão comentados - e em alguma coisa romana, sem evocar os Contos Romanos, de Alberto Moravia (1907 - 1990). 

Mas nos Contos romanos, nos Novos contos romanos e n’A romana (se é que não me falta citar outro título, por falta de informação, mas não de interesse), Alberto Moravia absolutamente não falou de “barracos” (altercações com berros e baixarias diversas, às vezes acompanhados de sopapos e pontapés) acontecidos em razão de espirros. Em literatura menos requintada, mas não menos genial, porque nascida da sabedoria do povo, é em O bode a onça que se pode dizer que aconteceu o seguinte: “Espirrou? Então, 'barraco' se formou”. 

A seguir, primeiramente, (1) parte duma notícia jornalística; em seguida, (2) o poema de um grande cordelista do Nordeste do Brasil (nascido na Paraíba, radicado em Pernambuco), com bela e eterna confusão acontecida em razão de espirros dados por personagem-bicho; por fim, (3) algo sobre a vida e obra desse mesmo multimidiático artista (autor de literatura de cordel e de xilogravura): José Costa Leite (nasc. 1927), porque este espaço é propício à divulgação desse tipo de informação biográfica, literária, multissemiótica e cultural-histórica. Só não cabe agora dizer algo sobre genealogia de O bode e onça, tantas e tão ricas são as informações que o assunto oferece. Isso ficará para um artigo futuro, com as obrigatórias menções a Sílvio Romero (1851 - 1914), Câmara Cascudo (1898 - 1986) e outros consagrados detentores da perícia, ou, como está em voga dizer, da expertise apropriada para o enfrentamento da história da estória. Como não sou um deles, apresentando-me apenas como leitor curioso, é claro que os nomes dos estudiosos a que recorrerei serão sempre mencionados. Isso, se Deus me ajudar e se a gripe suína não me “pegar”; ou se, acontecendo o indesejado acontecimento clínico, a “velha da foice” – personagem que muito deve às transformações criativas dos contos anônimos, que são maravilhosos mesmo quando parecem terríveis, e foram tão caros ao teórico russo Vladimir Propp (1895 - 1970) –, vale dizer, a morte, passar longe mim, como espero que efetivamente aconteça, pelo menos em futuro próximo. Depois, muito depois, tudo bem... Afinal, a vida é mesmo muito bonita - e parece que, por isso mesmo, acaba, ao menos no plano "do aquém"... 

Vamos à labuta, então. Primeiramente, a notícia (primeira parte dela, que é o trecho que, no momento, interessa).

 UM)

"Folha on line, 3.9.2009 – A senadora licenciada Patrícia Saboya (PDT-CE) passou por problemas nesta quinta-feira ao desembarcar no aeroporto de Fiumicino, em Roma. A senadora foi retida pela polícia italiana após passar pela alfândega. A senadora contou por telefone a jornalistas que a confusão começou durante o voo que saiu de Fortaleza para a capital italiana.
 
Na viagem, a acompanhante da senadora, que tem rinite alérgica, espirrou por três vezes. Um dos passageiros ficou incomodado e, aos gritos, pediu que ela fosse retirada da aeronave. Os comissários conseguiram controlar o tumulto e, segundo a senadora, o voo prosseguiu. Ao desembarcar, ela e a acompanhante foram abordadas pela polícia de imigração e chamadas para uma nova revista nas bagagens.
 
Pelos menos dez policiais cercaram as duas. A senadora tentou argumentar que era parlamentar, mas foi informada que por lá apenas embaixadores tem tratamento diferenciado.
 
Patrícia acionou a Embaixada brasileira, mas sem conseguir uma assistência imediata, acabou fazendo o que classificou de 'barraco'. A senadora relatou que começou a gritar para constranger os policiais. A estratégia acabou funcionando e ela e amiga foram liberadas.
 
A senadora viajou para acompanhar um casamento em Roma. (...)". [Folha on line  POLÍTICA – "Senadora é detida em Roma, porque amiga dela espirrou três vezes no avião".]
 
DOIS)
 

A ONÇA E O BODE

       José Costa Leite

 

Uma pobre onça vivia

em uma mata deserta

dormindo ali, acolá

não tinha morada certa

exposta a chuva e o vento

cochilando no relento

sem travesseiro ou coberta.

 

Certa vez a onça estava

pensando na sua vida

havia chovido a noite

ela estava enfraquecida

com fome e toda molhada

além disso, resfriada

pois se molhou na dormida.

 

A onça disse consigo:

“Isso assim não fica bem

vivo por dentro dos matos

sofrendo como ninguém

nunca pude preparar

uma casa pra morar

e quase todo bicho tem".

 

E esse plano na mente

pegou idealizar

dizendo assim: Quando chove

eu só falto me acabar

se Deus do céu me valer

brevemente eu vou fazer

uma casa pra morar.

 

Na ribanceira dum rio

viu o canto apropriado

a onça limpou o terreno

deixando tudo ciscado

resolveu ir descansar

pra depois de recomeçar

quando passasse o enfado.

 

Acontece que o bode

teve o mesmo pensamento

disse: Eu durmo no mato

passo a noite no relento

exposto a muitos perigos

a sanha dos inimigos

sujeito a chuva e o vento.

 

- Eu vou cuidar em fazer

uma casa pra morar

quando estiver chovendo

eu tenho aonde ficar

fazendo inveja aos demais

pois todos os animais

zombar vendo eu me molhar.

 

Na ribanceira dum rio

achou um lugar varrido

o bode disse: Eu aqui

farei o meu lar querido

aqui ninguém me aperreia

o rio dando uma cheia  

eu estarei garantido.

 

Cortou madeira no mato

e cavou na mesma hora

os buracos dos esteios

já com a língua de fora

cansado de trabalhar

resolveu ir descansar

tomou banho e foi embora.

 

A onça chegando viu

o trabalho prosperando

disse assim: É Deus do céu

que está me ajudando

cortou folhas de palmeira

trabalhou a tarde inteira

e foi-se embora cantando.

 

O bode chegando achou

o serviço quase no fim

disse: “Parece que Deus

está ajudando a mim

pegou tapar o mocambo

trabalhou que ficou bambo

plantou até um jardim".

 

Tomou banho e foi embora

e quando a onça chegou

botou portas no mocambo

e o que faltava tapou

cortou folhas de palmeira

fez na base de uma esteira

forrou tudo e se deitou.

 

O bode chegando teve

uma alegria danada

já viu a casa com portas

porém não foi caçoada

foi chegando perto dela

e quando olhou da janela

avistou a onça deitada.

 

E quando o bode falou

a onça disse que tinha

feito a casa pra morar

pois sofrendo muito vinha

porém o bode na hora

disse: Minha não senhora

porque esta casa é minha.

 

A onça disse: Eu limpei

o canto e fui descansar

o bode disse: Eu cortei

a madeira e fui cavar

os buracos dos esteios

assim por todos os meios

nela sou quem vou morar.

 

A onça disse: Eu cortei

palmeira e cobri ela

o bode disse: Eu tapei

e fiz o jardim perto dela

disse a onça: Eu vou caçar

pois eu não quero brigar

só sei que vou morar nela.

 

O bode ficou deitado

e a onça foi caçar

lá ela matou um bode

e trouxe para jantar

o outro bode, coitado

vendo seu irmão sangrando

deu vontade de chorar.

 

A onça disse ao bode:

- Quando me ver pinotear

é que está chegando em mim

a vontade de brigar

da minha casa eu não saio

e de fome sei que não caio

todo dia irei caçar.

 

Disse ao bode: Quando eu

ficar de pé, espirrando

pinoteando bem alto

e a barba balançando

estou rosnento e voraz

pior do que Satanás

é bom ir se preparando.

 

Na caçada o bode viu

uma onça pendurada

tinha caído no laço

ele matou-a de pancada

chegou em casa com ela

a onça vendo a irmã dela

ficou toda arrepiada.

 

Fez um churrasco da onça

e comeu que ficou deitado

depois pegou espirrar

dando salto agigantado

com a barba balançando

deitando e se levantando

com o maior bodejado.

 

A onça com medo dele

também pegou pinotear

para dizer que estava

com vontade de brigar

nos dois pés se levantou

mas o bode nem ligou

e danou-se pra espirrar.

 

O bode de cara feia

ficou perto da janela

pra pinotear e correr

antes do fim da novela

ela estava no pagode

era com medo do bode

e o bode com medo dela.

 

O bode espirrou de novo

fez um grande bodejado

a onça saltou no terreiro

e entrou no mato fechado

o bode correu também

no mato inda hoje tem

o mocambo abandonado"

(http://www.ccsa.ufrn.br/5sel/v2/pdf/minicurso08_aoncaeobode_vacaestrelaeboifuba.pdf).

  

TRÊS)
 
Lúcia Gaspar, bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco, escreve sobre Costa Leite:
 
GASPAR, Lúcia. José Costa Leite. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 23 set. 2009.
 
"José Costa Leite

                                                                                                                              Lúcia Gaspar 

 Considerado um dos nomes mais conhecidos da literatura de cordel do Nordeste brasileiro, José Costa Leite nasceu em Sapé, no estado da Paraíba, no dia 27 de julho de 1927. 

          Mora, há bastante tempo, em Condado, município da Zona da Mata de Pernambuco. 

          É um dos mais importantes e conceituados xilógrafos ou gravuristas do Brasil, dono de uma técnica apurada e de estilo muito pessoal. 

Utilizando a sua quicé ou caxirenguengue (uma faca velha, imprestável e/ou sem cabo) na madeira do cajá – árvore da família das Anacardiáceas (Spondias lútea L), de textura mole, fácil de ser trabalhada e abundante na região nordestina - cria inúmeras xilogravuras, que ilustram as capas dos seus folhetos.  

          O antigo Instituto do Açúcar e do Álcool publicou, em 1972, um álbum com 21 xilogravuras de sua autoria, coletadas pelo folclorista Evandro Rabello, alusivas aos mais variados meios de transporte usados na zona canavieira do Nordeste, no passado e no presente: o carro de boi, a charrete, o caminhão, o trem, o cabriolé (espécie de carruagem) que antigamente conduzia a família do senhor de engenho, a rede, o cavalo, o trator.    

José Costa Leite começou a escrever poesia popular aos 20 anos, possuindo atualmente mais de 500 folhetos. Sua arte, além de ter sido exposta em diversos estados brasileiros, é também conhecida internacionalmente, através de exposições realizadas em Nova Iorque, nos Estados Unidos e em Santiago, no Chile. 

Em dezembro de 2006, José Costa Leite recebeu o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, junto com o Clube de Alegoria e Crítica O Homem da Meia-Noite e a artista circense Índia Morena (Margarida Pereira de Alcântara). 

A Biblioteca Central Blanche Knopf, da Fundação Joaquim Nabuco, possui no seu acervo uma grande coleção de folhetos de sua autoria. 

A seguir uma relação alfabética de alguns de seus folhetos de cordel:  

. ABC do cachaceiro  

             . Bandeira sempre ao alto, presença de Pernambuco 

. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia 

             . A Boa vida do rico e a triste vida do pobre  

             . O Boi do pé da cajarana  

             . O Boiadeiro do sertão e a filha do fazendeiro 

             . A briga de A. Silvino com Lampião no inferno

             . A carta misteriosa do Padre Cícero Romão

             . O casamento de Camões com a filha do rei

             . O conselho da mocidade

             . Os dez Mandamentos, o Pai Nosso e o credo dos cachaceiros

             . O Diabo e o camponês

             . O dicionário do amor

             . Discussão de um fiscal com um matuto 

             . Discussão de Rodolfo Cavalcante com José Costa Leite 

             . O encontro de Lampião com a negra dum peito só

             . A filha que matou o pai por causa de uma pitomba

             . O Frei Damião sonhou com o Padre Cícero Romão

             . A herança da minha avó (ou o cavalo para gatão)

             . História de três amigos ou o poder do dinheiro  

             . O homem que enricou porque plantava algodão

             . Homem que foi se enforcar – com medo da carestia

             . Jorge e Luizinha  

             . Josimar e Anita ou o galo de ouro

             . Lampião fazendo o diabo chocar um ovo

             . O lubisomem da Paraíba

             . O matador de onças

             . A mensagem de Jesus ou o Sermão da Montanha

             . A moça que “pisou” Santo Antônio no pilão prá casar com o boiadeiro

             . A moça que virou porca em Rio Tinto

             . Mulher bonita e cheirosa deixa o homam arrepiado

             . Mulher é como café quanto mais quente melhor

             . A mulher que engoliu um par de tamancos com ciúme do marido

             . A mulher que quebrou as “gaias” do marido com uma mão de pilão

             . Não há quem saiba entender o coração da mulher

             . Nascimento,vida e morte de Antonio Silvino

             . Um passeio a São Saruê

             . Peleja de Geraldo Mousinho com Cachimbinho

             . Peleja de José Costa com Ana Rôxinha

             . Peleja de José Costa com José Jeronimo 

             . Peleja de José Costa com a Sabiá do Sertão

             . Peleja de José Costa Leite com Maria Quixabeira 

             . Um pequeno agricultor que se tornou fazendeiro

             . O pobre homem caipora e o Doutor Sabe-Tudo

             . A pobreza morrendo de fome, no golpe da carestia

             . Os quatro conselhos do fazendeiro Adriano

             . Quem gosta da corrução só quer morar em Campina

             . O rapaz que beijou o pai da moça enganado

             . O rapaz que virou bode porque profanou de Frei Damião[sic]

             . A santificação, a oração e a profecia do Padre Cícero Romão

             . Satanás na gafieira

             . O satanaz reclamando a corrução de hoje em dia

             . Sertão, folclore e cordel: a boiada sertaneja  

             . Os sinais do fim do mundo e as três pedras de carvão

             . As travessuras de Pedro Malazarte

             . Vassourinhas e sua tradição

             . A véia debaixo da cama e a perna cabeluda

             . A verdadeira riqueza

             . A vida de João Malazarte

             . A vida de Lampião e Maria Bonita  

             . A Voz de Frei Damião 

                                                                                Recife, 5 de fevereiro de 2007.

                                                                    (Atualizado em 28 de agosto de 2009).

 

FONTES CONSULTADAS: 

JOSÉ Costa Leite. Disponível em:  <http://www.ablc.com.br/historia/hist_cordelistas.htm>. Acesso em: 23 jan.2007 

MARANHÃO, Liêdo. O folheto popular, sua capa e seus ilustradores. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1981. (Série monografias, 20).   

REGISTRO do Patrimônio Vivo tem três novos nomes:  Disponível em:

<http://salu.cesar.org.br/seccultura/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeNoticia?codigoDaNoticia=5020&dataDoJornal=atual>. Acesso em: 23 jan. 2007 

TRANSPORTES na zona canavieira: vinte e uma xilogravuras de José Costa Leite. Rio de Janeiro: IAA; Divisão de Administração Serviço de Documentação, 1972” (Lúcia Gaspar, 

http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=307&textCode=7892&date=currentDate).

 

Por fim, porque recreio também revigora, espiemos, por merecimento,  "O bode e a onça" no Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=lJZp5GhEZGA

(Programa da Rede Brasil/TVE, adaptação e "contação" - caprichadíssima, aliás - por Augusto Pessôa).