Rogel Samuel: O amante das amazonas, 7

 QUATRO: PAXIÚBA.

 

E CHEGA que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) - sim, que quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fome, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no para, o esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nem nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é. Mas o olho burro tudo vê, e registra - mosca da vida sobre a rosa de sangue e da conversa vã. Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci, e se tomou lendário e eterno - ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale.

Pois se aproximava somente para dizer: “Bons dias”, e assim se referia a uma certa e acocorada Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas, agachada sobre a prancha lisa, lixiviada, de Itaúba, tabuão de sabão, - ela nem o tinha visto e pressentido em suas costas feito um jacaré inteiro estirado imenso - Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, mas literário, mas enorme de belo, que já o conheci assim, escuro caboclo e tigre, grandão, desenvolto, olho de cobra, de bicho, poderosamente selvagem, no vivo, no ensolarado do olho amarelo, luminoso, feroz, sobre musculatura nobre de dar inveja às estátuas do Louvre, erguida cabeça sobre o pescoço grosso, sólido, de muito viva, e guerreira, assassina, arisca subjetividade - era assim que ele vinha, cínico, atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se dissesse: “te conheço: sei quem és” - o certo da culpa, gesto indecente e ameaçador, de assustar policial - seu poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil confissão antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob seu pulso, que se sabia dele em quem nunca se pôde confiar - impondo mole aquilo que o sustentava nos seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que encontrava no fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o bruto, mas fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que coage, que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se, impelida, à força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se infiltrando nas fendas do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na interseção vazia e na interdição da resposta, na inversão das forças a ré, malandragem desmascarava única nobreza, qualquer dignidade sobrevivente: “Diga sua verdade” - era a linguagem da ordem de seus olhos no risco do seu sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado que nos fotografava, que nos dizia, no espelho avaliado das baixezas. Paxiúba era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência, medo e prática muda da obscura familiaridade com a ternura se via na transmissão de seu segredo. Em uma palavra: explícito. Quando se retirava, a gente se persignava. Porque se efetivava guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo, privilegiadas, sexuais, capazes de muito realizar, sedimentando o músculo vivo e assumido. Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva. E a montaria, transpostos os espaços da vigilância, esbarrava nela, na prancha do cais onde Zilda lavava roupa branca e pura, iluminada, a espuma saindo e se indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo na bordadura branca da superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da água.

Nem o sabia naquele dia, Zilda, de costas, atenta à trempe, e concentrada, individualizada - e vapt! - batia a roupa contra o tabuão de branco sabão para esparzir no ar o acúmulo e amontoado de bolhas voadoras e coloridas, vaporizadas, elevadas, explodindo em pequenos pânicos. E o regular da urgência daquele olhar a assustava e acamava, como a chegada da doença, da morte, na volta galopante, no ódio, no nojo, no asco e escarro gosmento. E a voz que ouviu, na revoada de sons, de índio, dicção de um fenômeno conivente, curiosamente fino, de metal, de agulha, na elevação vibrátil, tanger e soar de arpejos e cometas afirmativas e básicas de violino e cravo, um conjunto contínuo por trás da soberania de relinchar de cavalo excitado e rico em crinas pretas e oleosas, voz que não sabia de onde vinha, como de todos os lados e não da boca, e já repercutisse na contramão, fora do espaço em torno, mas tão logo forte saísse de dentro do ventre, e geradora, à medida que existia em metros de morno e pesado, suplicante e irresistível apelo, golpe baixo e terreno, mas galante, como cobra, que rainha divulgava-se, reprodutora, gradual, detida, fundamental, molecular, nas glândulas de um funcionamento estabelecido e fecundo, tramas nervosas da musculatura do corpo dele e das urgências e necessidades primárias do medicinal, acordado e fértil, duro, tais vibrações de ssss próprias do amortecer das subsistências e defesas da mulher.

E Zilda sob aquela pressão se mexia dentro de si, incomodada, e em pânico, com asco e odioso horror, ao se sentir tocada na hospitalar penetração da cabeça assassina e animalizada da voz, nativa do cumaru, fecundante terra - timbre autônomo e sibilante da serpente e não do agressivo mas do insistente, da demoníaca ousadia que dizia: “te conheço”. E dizia: “não te podes esconder de mim”.

No momento ela sabia. Toda ela sabia aquilo, o que o desenvolvimento daquela voracidade, o que o corpo estava querendo. Ela sabia o que aquilo esperava dela. Era a doença. A guarda fechada, apreensiva, desconfiada, escondida, agachada, acocorada, devassada nas intimidades daquele som. O que aconteceu depois? Pois ele poderia ter assegurado a espingarda, que sempre ficava com ela por trás do oratório de Santa Rita. Mas ela tinha medo da estagnação da vontade. O marido longe. O símbolo agressivo nascente. O confronto. O vestido molhado deixando nua, carnadura forte, concreta, branca, de seu seio grande e de seu corpo de mulher amadurecida e boa de parto, saia entre as pernas roliças atingidas no vasto da moral.

Devido aos Morgados, o marido fora o único seringueiro do Manixi que tinha podido trazer mulher. Laurie Costa funcionou protegido, o Bataillon gostou dele, autorizado, embora provisório. Zilda ficou lavadeira pessoal do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa, que aquelas águas, a escória das águas, águas mendigas, encardiam as roupas. Os Morgados, acabados de vender o Seringal do Igarapé Riachuelo, por direta ordenação da mulher, D. Izabel Morgado, de medo das febres, e já aparecessem muito ricos ao se irem para Lisboa, onde ficaram, nas Amoreiras. Laurie e Zilda ainda se despediram do compadre índio Iurimã e sua mulher, a índia jovem Ianu, que foram para o Rio Ji-paraná, de onde não deram mais notícias.