0

DEZESSETE: A RUA DAS FLORES.

 

 

CONCHITA del Carmen esperou que o homem se voltasse.

Não havia ninguém naquela rua. Rua estreita, na Vila de Transvaal. Ladeira. Exuberância de plantas e flores. Do Rio Jordão, que ali passava, no fim da descida. Dois gatos se lambiam na calçada. Conchita, sentada numa cadeira de embalo, olhava o homem e lixava as unhas. Fernandinho de Bará, nervosamente, sorriu para ela quando o homem se voltou. Fernandinho estava de pé, ao lado dela, sob begônias. Antes que o homem se voltasse, ela não tinha reparado bem, distraída, examinando as unhas, a revista francesa caída sobre o colo. Conchita del Carmen uma mulher gorda, muito gorda e muito sexy.

 

 

ERA De Bará um travesti de meia idade. Começara a vida ali, como faxineira, contratada pelo patrão, o turco Pedrosa, de quem foi amante nos primeiros dias. De Bará, então nova, bela menina, pernas grossas e sorriso fácil, índia de cor clara. Discreta. Tímida. Meiga. O patrão, Pedrosa, sócio do prefeito, homem magro, careca e bigodudo, ficou com ela desde que ela chegou do Celismar, no Rio Embira, especialmente para aquele lugar famoso em toda a região amazônica - corrido pelo pai, que queria matá-lo depois que soube das coisas. O escândalo na Vila do Celismar criou fama.

 

 

QUANDO chegou, jovem, De Bará personificava a Alegria. Fortíssima, bailarina, elétrica, esplêndido corpo feminino, prestativa e leal, amável e asseada. Trazia a Rua das Flores limpa, na energia de dez homens. A Rua das Flores fazia inveja a casa de madame. De Bará, sozinha, era capaz de limpar, em poucas horas, todos os quartos, como uma ventania. Não se cansava nunca, trabalhava o dia inteiro, desde as primeiras horas da manhã, e passava a noite brincando no seu resplendor feminino. Ruas enfeitadas de flores que cultivava nas casas transformadas. A antiga Rua das Velhas passou a chamar-se Rua das Flores depois dela. E foi o regatão Saraiva, com sua sabedoria só de experiência feita, quem aconselhou a menina a procurar a vida de Transvaal.

FERNANDINHO mostrou valer uma Prefeitura inteira. Transformou Transvaal num ponto turístico, primaveril e poético, de referência, o mais belo da região conforme o digo eu, o Narrador: - vasos e canteiros de flores na calçada, no correr do meio-fio, no parapeito das janelas, na entrada das portas das casas. Foi o único paisagista da Amazônia, o primeiro a usar folhagens tropicais como elemento de decoração urbana. Era um monumento ao verde! A Rua das Flores foi sempre o mais belo jardim urbano que já vi em toda a história do Amazonas, com flores e plantas coloridas da região - tajás, cipós, aráceos, leguminosas, heisterias, peperômias, flores de maracujá e beladona, crinum, palmeirinhas e até bananeiras ornamentais - um gênio da jardinagem!

De Bará imperou sozinho naqueles afazeres decorativos durante décadas. Tivesse nascido num grande centro cultural, De Bará certamente teria sido um artista plástico, um costureiro, cenógrafo, decorador. Como não tivera modelo ou escola, tudo partia de sua imaginação futurista, no mais autêntico estilo de Max Ernst. As portas e janelas da Rua das Flores pintou-as Fernandinho de Bará de amarelo-ouro, de azul-cobalto, de azul-violáceo-profundo, de vermelho venerável, de verde-esmeralda-brilhante - segundo a mistura e combinação de cores que lhe inspiravam as moradoras, como mandarins, ou fossem pássaros, ou mulheres pastoris de uma estranha família vert ou rose. Sobre as bandeiras pintou flores ou motivos, cogumelos de longevidade, patos com paisagem, cavalheiros míticos - toscos, é claro, mas que se transformavam em afrodisíacos vitrais, sobre as paredes das casas de argila recobertas de uma camada sempre recente de cal branca com gesso robusto em pasta grossa, camada da virgindade de guarnição de prata. Um inimaginável luxo. Quem ia à Rua das Flores nunca a esquecia: tábuas de madeira enceradas como as de palácio, com pequeninos tapetes de retalhos coloridos - oh, aquele lugar uma limpeza de esmero e arte cabocla, de feitiço, com santos em caixilhos, figuras emolduradas de Nossa Senhora das Graças. O lugar ficou familiar - bicha santa era aquela! - e freqüentado pelos senhores acima de qualquer suspeita, respeitáveis do lugar e redondezas, viajantes - que todos se reuniam à noite para as conversas proveitosas com as mulheres, conversas gerais e instrutivas, bebendo uma garrafa de XPTO e contando as preferidas. Lugar de sossego e descontração, seguro e calmo. Doméstico. E também apareciam pela manhã os imberbes alunos da Escola Municipal, gazeteando as aulas para se exercitar nas experimentadas rixas.

 

 

CONCHITA del Carmen já era a dona da Rua das Flores. Talvez você continue a se perguntar o que tem a ver a Rua das Flores com esta estória. Foi o que me perguntou também muita gente, desde muito tempo. Verá.

Mas Conchita não acreditava no que estava vendo quase à sua frente. Aquilo nunca tinha sido visto antes, que Fernandinho, sempre atento às observações daquele tipo, lhe tinha chamado a atenção. Apesar dos cinqüenta anos, De Bará não tinha perdido a curiosidade dos explosivos e gloriosos primeiros tempos. Sim, era verdade.

Era um bugre alto e escuro, quanto à fortaleza dos músculos e dos membros, monstruosamente enorme, meio índio meio negro, mal vestido e descalço. Porém tinha, a seu modo, certa simpatia.

 

 

CONCHITA del Carmen vivia ainda sonhando com o filho do lendário Coronel Pierre Bataillon, que tinha sido o oposto daquilo que estava na sua frente. Zequinha tinha sido gentil, delicado, infantil e sensual. A fama com que o aureolavam como a maior fortuna de que se tenha noticia em toda a história do Amazonas o transformava num ser mítico - por isso Zequinha tinha sido o moço mais bonito que Conchita del Carmem já conheceu. Ele um dia apareceu: Maneiras finas, pinto pequenino, despertou nela não um amor à primeira vista, não. Quando ela o viu a princípio teve medo - o medo que os poderosos lhe despertavam. Depois sentiu espanto. Só no dia seguinte estava apaixonada. Mas era tarde. Então teria dado a vida por ele, sua escrava em troca de nada, tê-lo-ia seguido além dos limites da floresta em que ele se embrenhou e para sempre se perdeu.

Ela ainda tentou seguir, com todas as banhas e bandas, numa caravana de mulheres em canoas para as brumas do Igarapé do Inferno, em busca do Coronelzinho Batelão.

Zequinha fôra o príncipe perfeito. Tratara-a como a uma dama da corte. Oh, ela seria capaz de tudo! Zequinha só apareceu uma vez e foi logo com ela - que a escolheu entre todas. Procedeu como se ela fosse rainha, delicadíssimo e meigo. E se aninhou no seu colo, criança indefesa, com delicado amor durante a noite que passou em suaves conversas e ternura naquele seu português afrancesado. Sentado no seu colo, nu, ele estendia os braços no seu pescoço e falava bem perto dela, de seu ouvindo - ela sentindo-lhe o hálito, segurando o corpo bronzeado, acariciando os cabelos escuros e lisos, contemplando os olhos brilhantes de uma expressão bondosa, inteligente e triste.

Não - ela não ia, por vaidade, se ufanar de ter tido nos braços o Príncipe das Amazonas, o dono do mundo, acostumado na corte européia, vivendo em palácio de rei, em ouro e pelúcia.

E isso não foi tudo.

 

 

ACONTECE que, depois de ter passado a noite com ela, em convívio amoroso, naquela madrugada ele, o príncipe, lhe deu um presente. A coisa é curiosa e digna de relato. Zequinha mandou acordar o homem - cujo nome não me quero lembrar - que era, ao mesmo tempo, o Juiz de Direito, Prefeito, Chefe de Polícia e dono do único Armazém de Transvaal e, não discutindo com ele a questão do preço, comprou, ali mesmo, para D. Conchita del Carmen, a famosa Rua das Flores, que tinha tido Pedrosa como sócio. Transação feita, dizem as más línguas, dentro do quarto, Zequinha em cueca, mandando que o Juiz lavrasse a escritura e fosse receber, em dinheiro vivo, no Manixi.

 

 

NO ano seguinte Conchita del Carmen engordou mais - pois ficou grávida. De tal forma que, no ano seguinte, teve um filho - o Maneco Bastos, um autêntico Bataillon.

 

 

POIS o monstruoso homem era o contrário do que tinha sido o príncipe perdido. Rica, poderosa, não precisava trabalhar. Olhando aquilo, enojou-se. O monstro se afastava em direção do fim da ladeira da Rua das Flores, o chapéu na mão com que os cumprimentara. Tinha chegado do Rio Jordão.

Mas voltou.

Voltava! ele passava em revista as portas das casas. Como era de manhã, elas dormiam. A princípio, o Mulo. Depois ... se decidiu por ela.

 

 

AS donas tinham dignidade naquela época. Negaceavam antes de ceder, o que aumentava seu valor. Eles pouco galantes, acostumados aos estupros, se viam valorizados, por desejar o difícil, que o que se oferece não merece consideração. Quanto a elas, senhoras de respeito, olhar emburrado e lábios de beicinhos, certo jeito ofendido de temerosas gazelas fugidias. Isso fazia parte do jogo do amor, uma cortesia. Damas requisitadas primeiro, machos rejeitados depois. Eles reassumiam o papel conquistador, mulher oferecida ofendia ao homem, a mulher era a desejada, a que cedia os seus favores como concessão. O macho tinha de conquistar, mostrar-se capaz.

E assim foi.

Mas Conchita não se sentia lisonjeada por aquela cortesia, mesmo fosse outro. Gordíssima, Conchita ainda era magnética, erotizava o corpo todo. Vivia em gozo. Principalmente agora, na voluntária abstinência. Não lhe faltariam fregueses, se quisesse. Mas ela se aposentara. Quantos anos teria, impossível dizer. Pintada, cabelos amarrados em coque na parte da nuca, flor vermelha no peito, os lábios carmesins, as banhas saltando à mostra pelo vestido de seda rosa, a cintura visível, as pernas enormes, grossíssimas, os pés metidos numas pantuflas com pompons vermelhos de pelúcia - não, não era feia.

Mas homem não queria. Principalmente um índio daqueles - via-se ali um assassino, um homem mau, com quem deveria desenvolver logo umas evasivas amáveis mas firmes falas. Aquilo era um bandido, ela conhecia bem.

Mas o homem se aproximava.

Meio envergonhado, como convinha tratar uma senhora-dama, ele veio dizendo uns “bons dias ... ”.

 

 

FOI quando De Bará deu um grito, olhando o homem de perto:

- D. Conchita, este é o Paxiúba, do Manixi.

Palavras mágicas.

DE repente se afigurou diante dela o guardião do príncipe perdido. Paxiúba era da confiança de Zequinha, dormia na sua cama, criado desde criança junto dele, adorando-o, como um cão. Aquele o protetor, capaz de matar pelo chefe, anjo-da-guarda do grande amor de sua vida. Paxiúba ali, ao alcance da mão. Ela nunca o vira antes, mas sempre soubera dele. Paxiúba não freqüentava prostíbulos. Estava envelhecido, mas ainda era um touro selvagem - e, por um processo rápido, imediato, de contágio, num relâmpago, ela estava apaixonada! Pois aquele corpo tinha roçado o corpo do Amado. Durante anos seguidos os dois tinham tido uma amizade de índio, um tipo de ligação meio homossexual, Paxiúba penteando o menino, tirando piolhos dos cabelos, dormindo esfregando-se nele, um colado no corpo do outro, como se amantes. Paxiúba dava-lhe banho nos igarapés. De repente aquele corpo enorme e significativo passava a ser para ela uma ampliação em negativo do outro, um monumento do desaparecido, e ela estava, naquele instante, e assim ficou, apaixonada.

A Rua das Flores talvez tenha sido um dos lugares mais familiares da Amazônia. Lá não se falava de ninguém, e uma invisível atmosfera, lei implícita, ditava que não se olhasse o que o outro fazia. Coisa considerada natural o fato de ali estarem. Talvez por isso todos se sentiam à vontade, como nas suas próprias casas, livres de culpa, sem a consideração do valor de seus atos - mas, advirto bem, dentro das normas da convivência respeitosa a harmônica. Por exemplo: ali não se falava alto. E não era permitido embriagar-se. A Rua das Flores, tão antiga - teria décadas de funcionamento - conseguira impor às pessoas que a visitavam uma conduta própria. Um alívio para burgueses cheios de culpa que a freqüentaram. Era de praxe ninguém se cumprimentar, revelar conhecimento. Como ninguém seria capaz de perguntar: “Já vai?” na hora da saída. Ninguém esperava ali encontrar parente ou conhecido. Principalmente porque poucos - só viajantes - circulavam livremente por toda a extensão da rua.

É claro que sempre se encontravam aqueles tipos que chegavam triunfais, como se dissessem: “Meninas, cheguei!”, ostentando o estar ali como prova maior e pública de suas próprias existências e machezas. A grande maioria, porém, fregueses assíduos, aparecia discretamente, às escondidas, nas escapadelas do cotidiano familiar - alguns com o horror estampado na face, o medo de ser reconhecido, e vinham de cabeça baixa, chapéu abaixado, passos rápidos, se escondendo ao penetrar aquelas portas familiares que eram logo fechadas. Assim o Doutor Juiz, ou os filhos da D. Consuelo, os seminaristas da Ponte, ou o próprio vigário, que aparecia ao nascer do dia, antes da missa, quando a cidade ainda era um deserto.

À hora da saída, a aflição de alguns senhores aumentava. Pois, desafogados com o competente trabalho profissional, eles já não eram tão impetuosos, voltavam aos arrependimentos e culpas de pais e avôs de família, personagens veneráveis que a Vila soubera sempre bem respeitar. Por isso era comum que, quando aqueles fregueses acabavam de exercer suas funções, Fernandinho de Bará ia ver se a rua estava livre, dar uma olhada na esquina. E aqueles senhores então partiam em disparada, nervosos como se acabados de praticar o hediondo crime, ou fugissem das labaredas do inferno.