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OITO: RATOS.

 

 

CHEGAMOS ao ponto deste caminho em que digo que, certa vez, eu me lembro bem que vi primeiro um risco preto entre as tábuas do chão. Era algo que passava como uma linha reta móvel preta. Um traço cinematográfico, contínuo. Depois se pareceu com minúscula cobra reta que se infiltrava entre as frestas da construção carcomida, algo que percorria o tempo, que atravessava o mundo, fluindo como se deslizasse para furar e vazar a terra. Aí então chegou a aparecer como um corpo maior, um corpo duro - um cabo, um rabo. Sim, aquilo era um rabo de rato.

 

 

TALVEZ que uma ratazana saísse dali diante de mim, de sua ratada. Talvez. Ratânia-do-Pará. Talvez um ratão, um rato enorme, como ratão-d’água, ratão do banhado, roendo, moendo sob a terra, corroendo a casca, mascando e carcomendo a crosta, consumindo, devorando por baixo de numa mastigação constante. Ou mais. Ou o dorso preto, ou cinza escuro, de quase 15 centímetros de rabo, couro, rabo-de-couro e arganaz, murídeo - e atrás vinham outros, catitas, ratinhos, e mais um rato preto, de pilosidade eriçada, um camundongo quase gordo, coró, toró, curuá, sauiá, e mais. E mais. E eram muito mais ratos vindo chegando entrando no barracão, imburucus, gabirus, dezenas, centenas, milhares - o Manixi estava sendo consumido por ratos, e não só de noite como a qualquer hora do mesmo dia.

Revelo que isso se passou naqueles anos, depois, em 1925. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. Todo o empenho de João Beleza, que administrava o espólio, toda a sua luta contra os ratos de nada adiantava, os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final.

 

 

Dominado pelo furor, João Beleza arranjou uma jibóia para espantá-los, aos ratos, e salvar o barracão, mas a cobra sumiu e aí apareceu o regatão Saraiva Marques, homem que valia por muitos, e que recomendou e vendeu para João Beleza um veneno de rato a base de verde-da-Prússia. João Beleza passou a assim proceder, alimentando os ratos, todas as noites, servindo-lhes comida num tacho. Os ratos comiam um purê de mandioca, durante dias, cada vez mais, cada vez mais, até que se empanturraram que no último dia comeram purê envenenado.

 

 

JÚLIA ria-se. Júlia a princípio anunciou. Depois sorriu, e logo já gargalhava, alto, nervosamente, ih ih ih em delírio, e os ratos iam morrendo na sua frente, e ela os via com interesse amistoso morrerem, um a um, e os via com afeto, Júlia tratava-os, embevecida e louca, via morrerem à luz do dia, tocava-os, ninhada aqui e ali, à beira do Igarapé punha-se às gargalhadas - os ratos parecendo decorar tudo com o colar de ratos mortos na linha d’água, e eram dezenas e centenas e milhares de ratos mortos, e Júlia ria-se com aqueles seres moribundos, e pegava-os e falava delicada, pelo rabo, exibia-os e envolvia-os e rindo os lançava nas águas condenadas do Igarapé do Inferno.

Depois houve uma estranha paz no Seringal Manixi.

 

 

CHEGA que João Beleza amanheceu doente.

Tinha cólicas, ia à latrina mas não conseguia evacuar, as fezes que o queimavam por dentro.

Passou o dia assim, e bebeu uma sopa que Júlia lhe deu. Quando a noite chegou ele piorou, a barriga cresceu ainda mais, começou a sentir dormência nos braços e nas pernas, que iam ficando frios; começaram perturbações nas vistas, iam ficando escuras; e ele foi morrendo lentamente, com dores e podres, pois Júlia o tinha envenenando com remédio de rato à base de verde-da-Prússia, e no dia seguinte ele estava completamente morto, sim.

E foi que, pela primeira vez, Júlia começou a chorar. Júlia começou a chorar, e chorava segurando as mãos, chorava contra o céu e verteu suas enternecedoras lágrimas da sua imensa desventura.

E assim foi que ela, sem que ninguém a visse, saiu ela dali e desapareceu na floresta sem se deixar pegar como encantada. Pois ninguém soube mais dela. E ninguém. Ela estava uma moça, que isso aconteceu alguns anos depois de 1930, ou em agosto de 1931, não sei bem, não sei, não, não sei.