Rogel Samuel: O amante das amazonas, 15

 

PIERRE olhou para o jovem e tossiu. O sono já permeava os pensamentos de Antônio Ferreira.

- Conhece o Padre Pereira?

- Sim, disse.

Pierre Bataillon tinha nas mãos o Amazonas Comercial, jornal de Abraão Gadelha, adversário político do sogro de Ferreira. Aquilo era uma agressão, o jovem sentiu, consertando o laço da gravata.

O velho, com calma, cordialmente, como se ignorasse que, páginas adiante, o Comendador era brindado com adjetivos como “pulha” e “ladrão”, disse: “Festa de arrecadação do Padre Pereira para o Orfanato Vassourinha, e festa de aniversário do meu amigo Juca das Neves. Vou-lhe pedir dois favores: me represente nesses ágapes ... Diz a coluna Fatos, de Ricardo Soares Filho”...

- Mas veja!, - cortou o velho, modificando a voz seca, árida, como se tivesse afundado, empalhado, cadaverizado. O jovem olhou para ele - estava pálido, envelhecido subitamente, e parecia menor.

- O naufrágio da Bitar! Eu não sabia! Eu não tinha lido! Oh, meu Deus!

Desde o desastre da gaiola Izidoro Antunes, ele vivia preocupado com os freqüentes naufrágios no Amazonas. Ele sabia de cor: A Izidoro Antunes só tinha realizado uma única viagem, tinha acabado de chegar da Inglaterra. Moderna, confortável, aparelhada com luz elétrica, estava cheia de mercadorias quando desapareceu. Depois disso o Otero, o Perseverança, o Prompto, a Macau, o Etna, o Colomy, o Júlio de Roque, o Waltin, o Mazaltob, o Ajudante (abalroado), o Manauense (adernado), o... - todos debaixo d’água, arrastando consigo homens que desapareceram naquelas águas barrentas e escuras, maduras e de fúnebres murmúrios, indecisas, imprecisas e indiferentes, veladas de véus de lama, densas e fundas na dissolução dos líquidos da vida, na horizontalidade daqueles infindáveis rios estendidos no lento movimento do tempo - cadáveres elementares decompostos nos alagados de vitórias-régias, comidos de peixes, lânguidos, mergulhados na matéria dissolvida da planície de salmoura

- Pierre temia viajar naquelas águas cheias de paus, troncos, bancos de areia, torrões, pedrais, salões e muiunas, rebojos, ituranas, panolas, panelões, praias, sacados, jupiás, ipuêras, baixios, cambões, caldeirões, esqueletos, praias de duas cabeças, voltas - todos obstáculos e perigos da navegação ordinária, de grande ou de pequeno calado, para navios, motores, canoas, montaria e igarités, tudo, toda uma massa de uma teoria infernal de perigos a evitar, a contornar, a vigiar, a desafiar, a temer.

Súbito silêncio de morte caiu em todo o espaço do Palácio, estático como se a Amazônia inteira se imobilizasse sobre suas telhas de Marselha. Pierre mergulhou em si e desapareceu. A mãe-da-lua emitiu suas quatro oitavas. Á distância, um pescador agitou na água o pindá-uauaca.

 

 - UM dia, disse Pierre, um funcionário de Santarém perguntou ao Bates de que lado do Rio Amazonas ficava a cidade de Paris. Imaginava que o Universo inteiro seria cortado pelo grande rio, e que todas as cidades se levantariam de uma ou de outra margem

- O senhor espera regressar? perguntou Ferreira.

- Não sei, respondeu o velho. Creio que deva, um dia. E voltando-se para o jovem com os ombros: Sabe o senhor por que vim para cá?

- Não, respondeu Ferreira.

- Por minha saúde. Tenho que viver nas regiões quentes.

 

 Rasga a hiumara, anuncia a morte. Ferreira vê aquele homenzinho sentado, com a seringa a 308 libras a tonelada. No ano anterior estava a 374 £/t. A modificação do preço, porém, ia dar um salto para 655 £/t! Mas a queda seria brusca, em 1921 cairia para 72 £/t. Dez anos depois, em 1931, cairá mais ainda, chegará a 32 libra/t, menos da metade do preço de 109 anos antes, mesmo descontando-se a evolução dos preços e a pequena inflação. Era a Morte. A decadência e morte do império amazônico. De único produtor, o Brasil passou a produzir somente 1% do que consome. Um vulto desaparece por trás da porta, sumindo-se na galeria dos corredores. Altas paredes de estuque, a decoração pesada, barroca, o luxo surreal fantástico. Canta um jacamim no jardim dos patos. Aquelas salas se intercomunicavam numa área de 500 m2. São 15 cômodos de rodapé de maneira pintada, com balaustrada de coluna e forro de frisos dourados, soalho de acapu e pau amarelo. A entrada do edifício dá para um amplo hall, ao fundo do qual está o gabinete de trabalho do coronel. À esquerda, a porta da sala de música, isolada. À direita está a alcova e a circulação da galeria que dá uma volta por trás do edifício e retoma ao fundo da sala de música, assim como o terraço, que se abre dali para a parte de trás em ângulo reto. Uma grade de ferro fecha o jardim dos patos. Pierre me convida para o café, servido por um indiozinho Caxinauá na saleta contígua. Sentamo-nos num par de cadeiras Voltaire. A cururu-bóia, perdida, agita as folhas das raízes onde se enrosca como sapo. É um café forte, pelo que Pierre passa as noites em claro, vagando como fantasma através daqueles salões semi-iluminados por velas e lâmpadas de vaga-lumes. No meio da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim do mundo. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que saem da escuridão. Pierre, indiferente, anda e seus passos se fazem ouvir ao longo a galeria das portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira das janelas de folhas duplas fechadas até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras guarnecidas de cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina d’água tenta impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma aranha peluda em cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando por debaixo da mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no vão do corredor. Ao cair da noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos espalhados pela casa, se começa a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos, cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é assediado à noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar, atraídos pelas luzes. Ferreira sente medo. Todos os homens, empregados, balateiros, caucheiros, mariscadores, tropeiros, caçadores e índios parecem demônios. A casa é terrível, sobrenatural. Os olhos do caboclo Paxiúba e de Maria Caxinauá. Os salões encortinados como no teatro, a mobília esculpida - demônios e leões - tetricamente luxuosa. Pierre abre as portas de um armário e retira uma garrafa de Black. Ferreira bebe tendo nos olhos o curumim Caxinauá perfilado à sua frente. Aquela fortuna tinha uma fonte, que era o trabalho escravo da inteira nação Caxinauá, que produzia a alimentação que Pierre trocava pela produção de seringueiros que raramente recebiam dinheiro. A pequenina figura daquele homem apareceu por fim pintada na sua verdadeira frente.