O agente e as estruturas das realizações

            “Homo Genealogicus – gênese e evolução do ser humano socialmente importante”, de Gilberto de Abreu Sodré Carvalho, é um livro inusitado. Estabelecendo diálogo entre a genealogia e campos variados do conhecimento, o autor propõe-se ao estudo de vários elementos para a sistematização de um novo campo,        a “Sociologia da Genealogia”. Em entrevista exclusiva a Dílson Lages, editor do Sítio Entretextos, o pesquisador esclarece algumas das formulações teóricas que sustentam o estudo e, concomitantemente, aponta um sentido prático para a genealogia, um sentido distante do caráter nobiliárquico que o senso comum concede aos estudos genealógicos.

           Gilberto de Abreu Sodré Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, em 1947. É casado com uma educadora musical e pai de três filhos. Reconhecido como consultor experiente em modelagem organizacional a partir do enfoque jurídico-gerencial. Por 40 anos, foi advogado interno e consultor de grandes corporações, e membro de colegiados de planejamento estratégico e relações com governo, em holdings. Além disso, é acadêmico e autor de diversos artigos e papers. Gilberto é também genealogista e historiador voltado para o início do século 18 brasileiro.

Livros de Gilberto de Abreu Sodré Carvalho estão disponíveis no site da Amazon, inclusive “Homo Genealogicus – gênese e evolução do ser humano socialmente importante”

Entretextos - Lendo “Homo Genealogicus – gênese e evolução do ser humano socialmente importante”, uma das primeiras impressões que se tem é de que há uma tênue ligação entre filosofia moral e genealogia. O que o senhor diz sobre isso?

Gilberto de Abreu Sodré Carvalho - Antes de responder à pergunta de ENTRETEXTOS, é importante dizer que “Homo genealogicus” é um trabalho na nova área a que pode chamar de “Sociologia da Genealogia” ou “Sociologia Genealógica”. Esse campo de estudo teria por objeto próprio a pesquisa da mobilidade no âmbito da hierarquia social, em uma vida e intergeracional, com base em dados de genealogias, ou seja, de redes de parentesco.

A Sociologia Genealógica não disputa espaço com os estudos econômicos da Economia e estudos sociométricos da Sociologia comum a respeito de estratificação e mobilidade sociais. Esses dados poderão ser úteis à Sociologia Genealógica, mas o escopo desta é o de focar casos de movimentação social com os dados da genealogia. O propósito da Sociologia Genealógica é de identificar padrões na mobilidade social de cada tempo histórico e em cada comunidade sociopolítica, como uma vila, cidade, região ou país.

Ponto importante é que o estudo da mobilidade social é necessariamente articulado com o da hierarquia social. Ou seja, os movimentos de ascensão e de descensão dos indivíduos e famílias de dão no espaço sociológico de uma hierarquia social. O indivíduo é o “agente” e a hierarquia social é a “estrutura”. 

O tempo-objeto da pesquisa sociológica pode ser qualquer um, desde que se tenha, hoje ou no passado, uma massa de dados confiáveis que sirva para atender a uma hipótese de trabalho que possa ser discutida e chegar-se à sua confirmação ou rejeição.

A Sociologia Genealógica é novíssima. A primeira obra séria, volumosa e rica em Sociologia Genealógica, no mundo de tradição portuguesa, onde o Brasil está, é a de Guilherme Maia de Loureiro, de 2015, de nome Estratificação e mobilidade social no Antigo Regime em Portugal (1640-1820), editado em Lisboa: Guarda-Mor. Guilherme Maia de Loureiro, por vários anos, estudou no Reino Unido, e foi certamente lá onde percebeu a riqueza sociológica dos dados dasgenealogias.

“Homo genealogicus” é um trabalho na área de Sociologia Genealógica. Mostra os fundamentos das tensões entre o indivíduo desejoso de expressar-se, realizar-se e ser importante, de um lado, e a hierarquia social, com suas regras e restrições, do outro lado; agente e estrutura, respectivamente. 

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Passo a responder à pergunta de ENTRETEXTOS. 

A relação entre uma coisa e outra (“Homo genealogicus” e Filosofia Moral) existe na medida em que a Filosofia Moral estabelece a discussão sobre o “dever-ser” do comportamento humano, o que inclui sem dúvida a conduta do “homem genealógico”.

No entanto, aSociologia Genealógica, que se tem no livro “Homo genealogicus”, é um conhecimento descritivo. Descreve como os seres humanos se autoprogramam e se autoeditam socialmente, todo o tempo. Todos queremos ser significativos nas nossas vidas e darmos sentido a nós mesmos no cenário da sociedade.

Tal conhecimento descritivo tanto pode ocorrer sobre o passado, nas narrativas sobre quem foram e o que fizerem nossos antepassados e os dos outros, como no presente, quando cada um de nós busca, agora mesmo, ser importante. Ser “importante”? A noção de “ser importante” inclui suas manifestações mais discretas como “ser realizado”, ou a mais sutil: “ser feliz”. Essa última (“ser feliz”) tanto pode se apresentar no consumismo (quando se compra para esconder a insatisfação) como na negação – sincera ou não – de participação no mundo competitivo. Ao fazer isso, não competir, a pessoa se torna espacial ou importante ao menos para si. O fato é que o insucesso ou a infelicidade não são metas de ninguém. Quando ocorrem é contra a nossa vontade.

Para complicar, o comportamento de cada um de nós, à procura de sobrevivência e de importância para melhor garantir a sobrevivência, implica na reação dos outros e na dança para-resultados, ou jogo de poder, que fazemos durante a vida. Os outros fazem o mesmo conosco. Cada um estáa jogar para si, na primeira, na segunda ou na terceira intenção do que planeja e do que faz.

Nessa medida, os achados de Filosofia Moral (da Religião e do Direito) importam para normar ou delinear os limites da ação de cada um. Na extensão em que a Filosofia Moral determina os comportamentos que considera corretos ou justos, e os que entende maus e injustos, se tem que ela serve para a discussão da justeza moral de cada processo de autoconstrução pessoal. 

            No entanto, deixo claro que a exposição e discussão que faço em o “Homo genealogicus” é especificamente descritiva e propositadamente não prescritiva. Não entro nos meandros da Ética. Simplesmente descrevo como as coisas se dão e não como deveriam se dar entre o indivíduo e a hierarquia social. Parto da premissa de que cada um de nós é irresistivelmente autovocacionado para ascender socialmente e lutar por isso, no quadro da narrativa greco-romana, de que resultou a civilização ocidental contemporânea. O “homem genealógico” é o homem ou a mulher que quer constar como alguém que importa aos outros, minimamente que o seja. Mesmo a escolha pela total humildade, como o caso do frei carmelita sincero ou da freira paupérrima. A sua escolha pela pobreza é, ela mesma, um ato de busca de ascensão. Ele rompe, ou despreza a hierarquia social como tal, e procura posicionar-se diretamente junto a Deus, o que não é um feito pequeno.   

Entretextos - Há também em “Homo genealogicus” uma clara associação entre genealogia e história social. Quais benefícios à história pode trazer aos genealogistas?

Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- A Sociologia Genealógica é informada pela História Social e pela História da Família.

O registro de um antepassado de alguém é um registro histórico. O assentamento genealógico de alguém só faz sentido se posto em relação aos fatos do tempo do personagem-objeto, os costumes da época em que vivia, as regras de ascensão e descensão social (mobilidade), cultura do seu ambiente familiar e do geral da sociedade, a localização geográfica, as perspectivas de evolução de vida que o personagem-objeto em específico teria, os deslocamentos que fez ou para onde migrou e porquê.

Quando os dados históricos não existirem na narrativa imediata do personagem-objeto, ou em uma possível História da Família, incluídas as fontes orais, cabe obterem-se subsídios na História Social do lugar onde nasceu, onde viveu e morreu; tal História Social apoiada pela História Social mais ampla como a da região e da sociedade nacional.

Que benefícios a Sociologia Genealógica pode trazer à História? Penso que seja a de verificar, validando ou não o que a historiografia diga. As conclusões da Sociologia Genealógica não podem ser contrariadas pelos achados da historiografia. Um dos dois lados estará errado. Pode ser que o erro esteja na historiografia que narrou a “história” com conclusões que não deveria ter, ou sem as ressalvas que deveria mostrar. 

 

Entretextos - “Homo genealogicus” busca desfazer mitos sobre a genealogia e resignificar a função social dessa área do saber?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho ­­-- Sim. Inteiramente, sim. O “Homo genealogicus” busca mostrar os fundamentos da Sociologia Genealógica. Essa é um estudo que, de regra, se faz no passado, sobre antepassados, mas também pode ser desenvolvido no presente (ou seja no passado próximo) para entendermos o comportamento das pessoas agora, hoje, no âmbito do nosso desejo fundamental de importarmos aos outros: sermos alguém. De outro lado, “Homo genealogicus” indica que a Sociologia pode e deve estudar, por via das genealogias, a mobilidade social que um personagem-objeto e/ou os seus descendentes tenham experimentado no âmbito da hierarquia social.

Neste quadro, a Sociologia Genealógica seria a ciência social que estuda qualquer pessoa (personagem-objeto) de qualquer tempo, na sua tensão com a sociedade ou hierarquia social na sua busca por melhor posicionamento e no afastamento da descensão. Inclui ainda movimentação social a movimentação social das linhagens familiares -  dispersão de irmãos e primos, por exemplo -, hoje e no passado. E ainda as questões de pertencimento das pessoas a uma ou mais tradições que estão no seu repertório de passado, as quais se manifestam na adoção e uso de sobrenomes e de nomes inteiros. Isso tudo me parece socialmente importante saber-se, inclusive para superarem-se preconceitos e arrogâncias. A Sociologia Genealógica poder ser libertadora, desmistificadora.

A Genealogia à moda convencional, a qual é praticada pela maioria dos genealogistas,em nada é isso. Os estudos genealógicos comuns pretendiam e pretendem servir como uma documentação que prove origem importante, ou ao menos, alguma origem. Por certo, opera na linha da importância das pessoas, todavia não descreve a dinâmica do porquê a importância é “importante” ou de como é decisivo para o entendimento de tudo ter-se em conta que cada um de nós (morto ou ora vivente) é um autoconstrutor de si, e como nosso propósito é de ascender e evitar a descensão, seja para nós diretamente ou para nossos filhos e filhas.

 

Entretextos -- Já no primeiro capítulo de “Homo Genealogicus”, o senhor procura demonstrar a importância da designação pessoal para a construção da identidade. O que isso representa do ponto de vista social?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- A designação pessoal é o ponto de partida para a autoconstrução identitária. Trata-se de ponto nuclear de onde nos fazemos reconhecíveis por nós mesmos em nossa relação com o meio social.

A sua natureza da designação pessoal é notavelmente social. Só temos designações pessoais porque temos de necessariamente sermos reconhecidos pelos outros na nossa identidade. Por isso, não há a possibilidade, no âmbito da mínima civilização, que duas pessoas tenham a mesma e exata designação pessoal. Por quê? Porque o nosso individualismo não permitiria isso. Mesmo que duas pessoas se chamem de “José”, cada uma vai ser endereçada de uma forma diferente, com a ajuda de alguma outra sinalização adicional: um gesto de apontar, um jeito mais ou menos respeitoso; ou o óbvio: o José Fonseca, o José da Praça, ou o José que não é o José Fonseca.

            Sem reconhecimento social exato da pessoa referida e o correspondente acatamento pela pessoa referida, não existe a possibilidade de sociedade organizada mais complexamente.         

 

Entretextos - A noção de autoidentidade perpassa todo o livro. É ela a razão de ser da genealogia?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- O conceito de “autoidentidade”, no que se inclui necessariamente a sua variação durante a vida do autoconstrutor (cada um de nós), é um conceito emprestado da Psicologia Social contemporânea, em que o maior contribuidor é o neurobiologista António Damásio (self-autobiográfico), e tomado da Sociologia, como por exemplo, o sociólogo Anthony Giddens (self-identity).

É um conceito para a Sociologia Genealógica que proponho, na medida em que combina a busca individual por sobrevivência e ascensão (seja por poder econômico, poder do prestígio, poder de mando e/ou poder de criar normas) e a narrativa correspondente.

Narrativa? Sim, anarrativa que se possa estabelecer, da vida de alguém, é o que dará sustentação à construção autoidentitária desse alguém, ocorrida mediante fatos. Só existem os fatos que têm narrativa e é a narrativa que escolhe os fatos e os mostra do jeito em que eles passam a importar.

            O conceito de autoidentidadese imbrica com a busca de sustentação em uma prévia “história de família’, ou uma “narrativa familiar” que antecede aos feitos do personagem-objeto, que dê sustentação intergeracional (vinda da origem genealógica) para os sucessos na vida e mesmo para o merecimento mítico desse sucesso. Registro que o interessado em sua própria genealogia tanto pode aceitar o que se apresente como verdadeiro ou o que ele mesmo mude, esconda ou fantasie, na sua narrativa. Como disciplina, a Sociologia Genealógica deve apurare descrevero que é verdadeiro e afastar o que não é. Estuda mesmo os que não têm ou pensam não ter a sua genealogia; e por isso se fazem “fundadores” de si mesmos e dos seus descendentes. Os self-mademen têm esse proceder.

Entretextos - Em seu estudo “Homo genealogicus”, confunde-se o pesquisador da história social e o genealogista ao ficcionista. Trata-se de um livro, pois, útil a quem também escreve ficção. De que modo o senhor acredita que as hipóteses que constrói sobre a formação da autobiográfica podem auxiliar aos ficcionistas?

 

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- A narrativa ficcional da literatura é contemporaneamente (desde Cervantes e Shakespeare ao menos) uma imitação crítica da vida real.É útil e emociona, como arte, na medida em que nos ajuda a ver como a vida é surpreendente. Surpreendente, por quê? Porque as vidas individuais reais e a vida social real são autocriações de si mesmas. A dinâmica dessas autocriações depende dos personagens nas suas construções interativas de autoidentidades. Trata-se de um jogo; um jogo de poder, ou uma “dança por resultados”. 

            O livro “Homo genealogicus” tem material útil para saber-se construir personagens verossímeis que possam comover por estarem próximos da realidade da nossa construção autoidentitária, por vezes imoral, nada ética, ainda mais se formos à mente dos personagens. O impacto no leitor serámaior se o escritor perceber o “improviso” que é a vida humana.

 

Entretextos - Explicando o conceito de Homo Genealogicus, o senhor diz que, ao longo da vida, “vamo-nos autobiografando, inventando nossa história em interação com os outros e com a história dos outros”. Qual o alcance do passado na construção de nossa autobiografia?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- O passado faz parte da narrativa das nossas vidas, mesmo que ainda não tenhamos nascido. O passado contém dados com os quais temos de lidar; muitas coisas nos podem ser favoráveis, outras não. De algum modo, o nosso passado genealógico é material a ser manejado por nós na construção autoidentitária que fazemos na vida ativa. Por vezes, fazemos ajustes no passado, descobrimos como reinterpretar o ocorrido, reaprumar favoravelmente os mal-entendidos, à semelhança dos tratamentos psicoterapêuticos, em que a técnica é a da “reestorialização” do que foi motivo de dor para o paciente.

De novo, observe-se que a busca do passado tem a ver com cada um. Ninguém nasce do nada. Mesmo que isso fosse possível à pessoa, o seu entorno social não a deixará na paz da ignorância. A sociedade fará a sua própria narrativa sobre a pessoa.

 

 

Entretextos - O leitor perspicaz observará que a organização global do livro não é uma mera enumeração de tópicos relativos à genealogia nem uma mera catalogação de anotações auto-explicativas. O leitor é tomado por uma reflexão sobre o ser e o estar no mundo. Quais fontes teóricas traduzem com maior exatidão esse percurso?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- Procurei contar a história do conceito de autoidentidade. Neste quadro, o protagonista é “o conceito de autoidentidade”, o personagem que conduz a escrita. Tal conceito é delineado em Anthony Giddens, António Damásio e Erving Goffman. Na medida em que uma autoidentidade de indivíduo evoluiria e se transformaria no tempo, desde nascer, fiz o objeto da minha escrita (a autoidentidade em abstrato) também evoluir como narrativa. Propositadamente, não falo da pessoa vista após sua morte, como o faria um estudo genealógico, ou seria o objeto de trabalhos de genealogia tradicional. Isso poderia ter sido a parte final do meu livro. Preferi, no entanto,apenas indicar que o “homo genealogicus” somos nós mesmos enquanto vivemos. O assunto pós-morte é de quem nos estude, outros homens e mulheres, também seres genealógicos.

Em suma, oque ENTRETEXTOS observou quanto à uma estrutura narrativa é verdadeiro. Vou do mais próximo, que é o âmago da pessoa que simplesmente precisa ser chamada de um nome para existir socialmente, até o desdobramento maior e mais denso da pessoa nas tensões enormes da hierarquia social. Em seguida, vou ao presente histórico, com suas mutações e licenças. Por fim, acalmo o leitor, depois de tanta turbulência, com dados sobre antroponímia luso-brasileira que voltam a mostrar como o nome e o sobrenome são armas do indivíduo na sua luta por posicionamento e reconhecimento social. Em suma: faço uma curva narrativa: do mínimo nuclear do tema, passando por uma área de grande turbulência e discussão, até a resolução calma, correspondente à esquematização do que foi narrado e os dados de hoje.

            Os temas antroponímia e genealogia se “interimbricam” no curso de “Homo genealogicus”. Por que isso? A razão é que a discussão da autoidentidade depende de um sujeito, o agente na terminologia sociológica, que se apresenta – na sua busca por ascensão, realização, e ainda por “ser feliz” - por uma designação pessoal, um nome, um sobrenome, um nome completo, uma alcunha, um nome profissional ou um nome artístico. A discussão sobre antroponímia faz parte do objeto da Sociologia Genealógica. 

            A impressão de haver uma narrativa e não uma coletânea de considerações é o que eu queria. Fico feliz de isso ter sido notado por ENTRETEXTOS.

 

Entretextos - Levando em conta os dias correntes, sobrenome e identidade estão realmente interligados?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- Penso que sim, ainda que muito menos que no passado. Não temos outro modo de nos identificarmos socialmente no âmbito para além da família, a não ser por algum nome que se junte ao nosso nome de batismo ou de registro civil.

O peso do sobrenome é hoje pouco. Tornou-se “politicamente incorreto” esmiuçar-se ou dar importância ostensiva à origem social ou genealógica das pessoas.

            Hoje, como trato no final da seção “Tempo de Mutação”, aceita-se que alguém não preste contas de seu passado genealógico. No entanto, essa discussão permanece latente, como uma permanência do passado dos costumes de avaliação social. Por certo, o sobrenome sozinho nada vale. Todavia pode reforçar positivamente a condição pessoal de alguém na hierarquia social onde estiver. 

 

 

Entretextos - Que papel desempenham os jogos de poder na tessitura das hipóteses que o senhor defende em “Homo Genealogicus”?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- A ascensão social que todos almejamos, ou ao menos queremos nos manter firmes onde estamos, é uma luta de poder no campo de batalha que é a hierarquia social. A luta acontece em todos os vários ambientes sociais onde estivermos a cada tempo, como projeções do que ocorre no espaço maior da hierarquia social ampla. Ocorre na família, no trabalho, na congregação da igreja, no mercado dos bens em que temos produtos ou serviços, no partido político, na vida pública, nas equipes esportivas etc.

            A disputa só não ocorre quando há um embate com uma força externa. É o caso de um exército na situação de batalha com um outro; de um time esportivo no jogo com um outro time etc. Nesses casos, os indivíduos tendem a desenvolver a cooperação, sem a qual não haverá bons resultados. A hierarquia social deixa de ser importante nessas situações.A situação de guerra faz o povo unido e os conflitos ficam esquecidos. A “pátria em chuteiras” (termo do escritor Nelson Rodrigues) é uma cativante sugestão de que todos somos iguais, desarmados entre nós.

Ponto importante: a aquisição por alguém de mais poder ocorre necessariamente porque alguém, ou mais de um, perdeu poder. O poder é escasso, é mesmo rigorosamente limitado. Quem o adquire o obteve de alguém que o perdeu. Um exemplo de como o poder é limitado: se um colegiado de diretores de uma organização for de dez membros e mais um diretor for adicionalmente incorporado ao grupo, cada um dos dez membros terá perdido um tanto de poder. Alguém dirá que isso é simplismo, uma vez que dentro de qualquer colegiado há quem tenha mais poder (liderança) que outros. Todavia, mesmo o poderoso de antes terá de cativar o membro novíssimo para que mantenha o seu estoque de poder antigo. 

O jogo do poder sintetiza como se desenvolve a autoconstrução identitária de cada um de nós. Mesmo quando não estamos claramente em uma disputa por poder, torcemos para alguém cuja vitória nos poderá ser benéfica. A vida é ação e ação que quer ganhos. Desse modo, o jogo pelo poder é inerente à vida em sociedade, esta como hierarquia social.   

           

Entretextos - A escritura, mesmo a da história, consiste em uma grande representação presa a crenças, a valores e à própria estrutura social. Cristaliza-se, entre nós, a ideia de que ao contar ou recontar, o homem se reinventa e se insere no campo que é o da linguagem e o do discurso, dando uma natureza institucional às suas verdades. Quais formações discursivas o senhor busca para dar sentido à genealogia?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- A Genealogia convencional é praticada como escritas cheias dos valores e crenças enraizadas na hierarquia social onde ela, a Genealogia tradicional, se coloca. Tende a ser uma escrita corrente, ou uma esquematização gráfica, que reforça valores e crenças preexistentes.Sob esse ângulo, a Genealogia comum é semelhante às crônicas da Antiguidade, até pelo gosto do estilo épico. No entanto, penso a Sociologia Genealógica como uma ciência descritiva e crítica. Entendoque deva seguir a narrativa expositivas dos achados científicos: estabelece-se uma hipótese de trabalho, discute-se a matéria ou se vai à pesquisa documental, e se conclui a favor ou não da hipótese de trabalho. 

Por certo, a exposição de um trabalho que siga alguma orientação científica é um discurso. Nessa ótica, ele deve ser convincente na lógica da argumentação em boa fé e assim na não exclusão de informação sobre o que foi observado. Creio que o discurso nos artigos, monografias, dissertações e teses em Genealogia deva ser avaliado pela clareza na reprodução dos passos da pesquisa e da calibração das conclusões em linha exata e limites do que se possa ter, em boa fé, como verdadeiro no âmbito do pesquisado. A arte ou a habilidade literária, ou de forma, vai existir como veículo da argumentação mais exata, ou que diga o que deve ser dito com plenitude, e ao mesmo tempo justeza. Todas as figuras de linguagem (desde que possam ser percebidas pelo leitor como recursos de expressão) são úteis na medida em que deem plenitude ao entendimento do conteúdo. 

            Algo totalmente diferente disso são as argumentações genealógicas, ou genealogias, que visem a demonstrar “verdades” que sejam do interesse de algum construtor de seu passado a seu próprio gosto. Neste caso, a narrativa segue a exposição usada nas narrativas históricas à moda antiga, em que a linguagem é exuberante e tenta convencer pelas impressões que causa. As figuras de linguagem são, de regra, falseadoras do real. A aceitação desses textos é obtida pela autoridade de quem o quer como “verdadeiro”. Os poderosos tendem a estar sempre certos (vide o conto do “Rei nu”). 

 

 

Entretextos - Em “Homo Genealogicus”, o senhor se detém em desvendar os elementos determinantes da construção da identidade, a partir da relação entre o tema e áreas do saber como a genealogia. Quais contribuições a genealogia pode gerar nesse sentido?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- Penso que a Sociologia Genealógica possa servir aos estudos sobre autoidentidade, ao menos tanto quanto a Psicologia Social, Sociologia comum e Psicoterapia. A diferença vai estar no fato de que a Sociologia Genealógica ter princípios e ferramentas próprias.

Os fundamentos teóricos da Sociologia Genealógica são, a meu ver, tentativamente, os seguintes:(i) a premissa de que os indivíduos de uma comunidade sociopolítica estão posicionados em uma hierarquia social, e se movimentam para garantir a sua posição ou ascender para melhor; (ii) a premissa de que mais “importância” social é correspondente a mais “poder” e, assim, a melhor posicionamento na hierarquia social; (iii) a premissa de que a manutenção de posição ou de ganho de posição social se faz por via do jogo de poder; (iv) a premissa de que o desejo por poder, que se confunde com o desejo de sobrevivência, está no âmago da ação do indivíduo ao longo da sua vida; (v) a premissa de que existe, para cada tempo histórico, critérios pontuais de avaliação socialquanto a dimensão poder do personagem-objeto de um estudo; (vi) a premissa de que haja, ao menos potencialmente, meios de reprodução posicional repassados, ou repassáveis, pelos pais ou família, ou protetores, ao personagem-objeto; (vii) a premissa de que os critérios de hierarquização social se transformam no tempo histórico, mediante as mutações bem-sucedidas provocadas pela dinâmica dos jogos de poder; (viii) a premissa de que é possível que as narrativas genealógicas que o personagem-objeto estabeleça de si sejam aceitas socialmente como verazes; (ix) a premissa de que os descendentes,a contar de um personagem-objeto, tendam a remeter ao alcançado pelo mesmo personagem-objeto; e (x) a premissa de que as narrativas não-verdadeiras ou verdadeiras, por parte de personagens-objeto, impactam a narrativa socialmente acatada e, assim, tida como verdade. 

Penso que a Sociologia Genealógica possa desvendar o ser humano para ele mesmo, em linha com as demais ciências sociais.   

 

Entretextos - Um dos alvos de sua escritura é a sistematização de como se formam os nomes na cultura brasileira e portuguesa. Entre os modos de sobrenomeação elencados, o que o senhor destacaria para que se entenda o padrão mais usual para a escolha dos sobrenomes em nossa cultura?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- O padrão variou muito durante os quase mil anos que distam da fundação do Condado Portucalense, no final do século 11. Hoje, desde 1940, é legalmente obrigatória, no Brasil, a imposição de um nome inteiro (nome mais sobrenome) ao recém-nascido. A regra é de se ter primeiro o sobrenome da mãe e, por fim, o sobrenome do pai. Porém não é difícil para o nomeado, quando adulto, obter uma alteração do seu nome e sobrenome, com alguma justificativa consistente para o juiz competente.

A sistematização histórica de como se foi alterando a tomada de sobrenomes serve mais para se ver como foi, era e hoje é. Trata-se de uma variação muito luso-brasileira, que culturas, comoa francesa e a inglesa, não experimentaram. Entre franceses e ingleses, a regra geral do passado remoto e da contemporaneidade é de o nome mais o sobrenome do pai.   

 

Entretextos - Para finalizar, transformo em indagação o título de um dos tópicos de “Homo Genealogicus”: em genealogia, “vale tudo o que for de proveito para ascender?” Como interpretar as anotações em torno desse tema?

            Gilberto de Abreu Sodré Carvalho -- Sim: “vale tudo o que for de proveito para ascender”. Por quê? Primeiro, em razão de a Sociologia Genealógica não ser uma ciência prescritiva, como o é a Filosofia Moral, a Região ou o Direito.

Penso que aqueles que não usam de todos os meios para ascender não o fazem por uma avaliação apenas moral, mas porque ponderam que o estratagema espúrio não daria certo, em algum momento. No mínimo, porque a consciência ética introjetada não desculparia o transgressor e logo poria tudo a perder para ele. Pode também ocorrer de a pessoa sentir-se inábil para a desonestidade.

O móvel da vida individual humana é de sobreviver ativamente, ou seja, ir para além da vida percebida a cada tempo. A consciência ou a razão humana é uma visão de perspectiva sobre o passado e o que pode ser o futuro, dentro de nossas restrições morais, ou das possibilidades (e habilidades) subjetivas de sermos imorais ou desonestos com sucesso.

Qualquer movimento ascensional de alguém – limpo ou desonesto - pode ser frustrado logo adiante, por erro de cálculo, ou pela ação ou reação dos outros, ou do Estado-juiz (como se observa nos dias atuais no Brasil). Todavia, sempre, nós humanos vamos disputar por poder e pelos meios para alcançá-lo. Isso está no nosso DNA da sobrevivência. Se assim não for, estaremos no “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley.