O abolicionismo

[Cruz e Sousa]

"A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição - a do escravagismo.

 

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.

 

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.

 

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.

 

Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.

 

Não se pense que com a libertação do escravo virá o estado de desorganização, de desmembramento no corpo ainda não unitário do país.

 

Em toda revolução, ou preparação de terreno, para um progresso político seguro, em todo desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou político têm de haver, certamente, razoáveis choques, necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas constantes revoluções do solo, pelos cataclismos, pelos fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações novas. O desequilíbrio ou o choque que houve não pode ser provavelmente sensível, fatal para a nação. Às forças governistas competem firmar existência de trabalho do homem tornado repentinamente livre, criando métodos intuitivos e práticos de ensino primários, colônias rurais, estabelecimentos fabris etc.

 

A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.

 

Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.

 

De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito isso não custa e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo.

Texto publicado originalmente em 1877, no periódico Regeneração