Nordestinense sem mestre

[Bráulio Tavares]

A fala nordestina é cheia de sutilezas, muitas delas compendiadas no indispensável Dicionário do Nordeste de Fred Navarro (Recife, CEPE Editora). Uma das minhas distrações é recolher exemplos durante minhas leituras.
 
RISCAR – Chegar de repente, às pressas.  “Eu já estava desistindo de esperar, e ia chamar um táxi, mas quando deu sete e meia ele riscou com o carro lá em frente, falou que tinha ficado preso num engarrafamento”.
 

Ela aí chamou o rei

Ligeiramente mostrou,

O rei também conheceu

Bastante se alegrou,

Bem na porta do palácio

O seu cavalo riscou.

 

Do seu cavalo apeou

Para no palácio entrar

Já o rei e a rainha

Vieram lhe encontrar

Levaram ele nos braços

Para a saudade matar.

 

(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”)

 
 
AMOLEGAR -- Apalpar com as pontas dos dedos, pressionando-as de leve para experimentar a textura ou a resistência de algo.  "Êi, dona!  Só amolegue as frutas se fôr comprar, senão estraga."  "Ela se faz de santa, mas o namorado passa a noite amolegando os peitos dela."
 

CLARABELA - (...) Você deite aqui no banco, que eu vou lhe dar uma massagem nas costas!

SIMÃO - Uma massagem?  O que é isso?

CLARABELA - Você se deita aqui, eu pego você por trás, vou amolegando assim, vou amolegando mais, devagar, bem devagar como quem prepara massa!  Agrado, esfrego, amolego: a dor, num instante, passa!”

(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato II)

 

Uma ligeira variante do gesto é registrada nesta sextilha do poeta Manoel Xudu:
 

João Batista tem repente

eu ouço sentindo medo

que só mocó que avista

um caçador no rochedo

de espingarda no rosto

já amulegando o dedo.

(em Poemas, Prosas e Glosas, de Zé Laurentino, pág. 57)

 
Por extensão, significa também "amolecer", inclusive no sentido figurado:
 

O Padre Gama nos fala de meninos que conheceu sempre "empapelados e envidraçados"; e tratados com tantas "cautelas de sol, de chuva, de sereno, e de tudo, que os pobres adquirem uma constituição debil, e tão impressionavel que qualquer ar os constipa, qualquer solzinho lhes causa febre, qualquer comida lhes produz indigestão, qualquer passeio os fadiga, e molesta".  Amolegado por tantos mimos e resguardos das mães e das negras, era natural que muito menino crescesse amarelo: a mesma palidez das irmãs e da mãe enclausuradas nas casas-grandes.

(Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, pag. 426)

 
 
ESTOPOR – Doença imaginária que aparece em ameaças, pragas, imprecações, comparações exageradas, etc.  Visívelmente, uma corruptela de "estupor".  Frequentemente se usa a forma intensificada "estopor balaio".
 

Policarpo – (...) Porque eu gosto de cantar, gosto de malandragem.  Agora a mulé não deixa, não.  A minha mulé é uma disgraça.  É uma cobra cascavé.  É um istôpô balaio.

(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 207)

 

 
GOGA -- Jactância; vanglória; presunção. (Pron.: góga)  “Fulano é muito metido a besta, mas qualquer dia eu vou acabar com a goga dele.”  “Deixe de goga e de falar que é valente, que eu já vi você pular uma janela com medo duma faca.”   Vem certamente de “gogó”, “garganta”. 
 

Os Pereira também forneciam homens-de-espingarda.  Por dinheiro, por prestígio, mediante troca de favores e, não raro, por goga.  Para serem falados e temidos.  Todo grande coronel agiu assim.

(Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado, pag. 17)

 

Godoy, que saíra da Bahia há mais de uma semana, ainda não tinha tentado agarrar o boi Mandingueiro. Foi chegando e apostando duas dúzias de cachaças que ia transformar esse tal de Mandingueiro num simples espalha-merda.  E tanto acreditou na façanha prometida, que resolveu beber a aposta adiantada, contando goga e farol a cada gole emborcado.

(Nei Leandro de Castro, As pelejas de Ojuara, pag. 199)

 
 
RODAGEM -- Estrada asfaltada. "Pra ir na casa dele você vira aqui à direita, vai em frente, atravessa a rodagem, do outro lado você continua até um ferro-velho que fica perto de uma vacaria, ele mora vizinho."  A origem da expressão deve ser a denominação do DNER, "Departamento Nacional de Estradas de Rodagem", a quem cabia asfaltar estradas.
 

Viera a pé, e não a cavalo.

Andava a pé, mas de sapato.

     A pé, pela rodagem,

     E em roupas de cidade.

(João Cabral de Melo Neto, “’Claros Varones’”, Serial, in Obras Completas, pag. 305)

 

Tem nega boa

da rodagem e Zé Pinheiro,

tem os cabras do Ligeiro

tudo armado de punhal...

(Jackson do Pandeiro, Forró de Zé Lagoa, de Rosil Cavalcanti)

 

O país e o estado que tem um pau com 20 metros de diâmetro, quer dizer, grossura, que a rodagem passa por dentro dele é nos Estados Unidos da América do Norte e na Califórnia o americano pegou, abriu este pau no meio encimentou por dentro e por fora, todos os transportes coletivos e transportes de cargas passam por dentro dele.  Este pau chama-se Secóia.

(José Américo II, Uma Vitória Dentro de Uma Derrota que Não Tive.  Esta Derrota Foi a Vitória do Meu Livro, Campina Grande, ed. do autor, pag. 77)

 
Uma brincadeira comum no Nordeste é pessoas de um Estado ou cidade atribuírem aos vizinhos deturpações engraçadas de títulos de filmes ou de músicas.  Em João Pessoa se diz que, em Campina Grande, a música de Erasmo Carlos “Sentado à beira do caminho” virou “De coca (=cócoras)  no aceiro da rodagem”.
 
 
NAQUELE TEMPO, ERA DINHEIRO MUITO -- Frase frequente na conversa de pessoas mais velhas, quando começam a referir quantias em moedas que já sumiram.  “Depois disso, meu avô vendeu a fazenda por cem contos de réis...  Naquele tempo, era dinheiro muito!”   “Dinheiro muito” carrega muito mais ênfase do que “muito dinheiro”. 
 

Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fazenda com uma carta do chefe.  Deixou o clavinote encostado a um dos juazeiros do fim do pátio, e de longe ia varrendo o chão com a aba do chapéu de couro.  Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva soletrou o papel que o homem lhe deu e mandou Amaro laçar uma novilha.  O cabra jantou, recebeu uma nota de vinte mil-réis, que naquele tempo era muito dinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo o bicho.

(Graciliano Ramos, Angústia, pag. 25).

 
 
JUNTAR-SE – Amigar-se, amancebar-se, viver maritalmente.  "Depois que a mulher morreu, ele se juntou com a dona do botequim, e agora é que não sai mesmo de lá."  Existe o adjetivo "junto/a" que funciona quase como um estado civil oficial.  "Coitada de Comadre Dodô.  A filha mais velha casou mas ficou viúva; a outra é vitalina, e a mais nova é junta".
 

Baltazar (...) – Aquela menina é sua irmã?

Terezinha – É minha filha.

Baltazar – E a senhora é casada?

Terezinha – Não senhor.

Baltazar – E a senhora é junta?

Terezinha – Não senhor.

Baltazar – A senhora é viúva?

Terezinha – Não senhor.

Baltazar – E que diabo é isso?  Uma senhora que nem é casada nem junta?

Terezinha – É porque eu me casei e adepois que eu me casei o marido deixou-me.  Me abandonou-me.

(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 182)

 
 
PÔPA -- A sacudidela brusca de um animal de montaria, acompanhada por uma tentativa de escoicear.  “O cavalo ficou dando pôpa no meio do terreiro, não tinha quem chegasse perto”.  Talvez tenha origem no termo náutico, "popa", que se refere à parte traseira da embarcação.
 
O uso mais generalizado acabou sendo o uso figurado, ou seja, a reação irritada de alguém: “Rapaz, minha mãe deu a maior pôpa comigo por causa da hora que eu cheguei ontem de noite”.  De um modo geral, “dar pôpa” equivale a “dar patadas”.  Existe o adjetivo “popeiro”: “Fulano é um ótimo professor, só é muito popeiro, é preciso ter paciência com as brutalidades dele.”   
 

Valentão do Mundo disse:

isso para mim é sopa;

o monstro fêz caracol

rodou e deu uma popa

saiu um fogo azulado

que quase lhe queima a roupa.

(Severino Milanês da Silva, Estória do Valentão do Mundo)