NO HOSPITAL DAS LETRAS, 2º CAPÍTULO, SEÇÃO 3 DO MEU ESTUDO DE PÓS-DOUTORADO (UFRJ, FACULDADE DE LETRAS, 2014) 3014)), DE TÍTULO : AFRÂNIO COUTINHO E ÁlVARO LINS: DOIS CRÍTICOS E UMA POLÊMICA
Por Cunha e Silva Filho Em: 17/06/2022, às 18H10
3.2- NO HOSPITAL DAS LETRAS: O REPTO DE AFRÂNIO COUTINHO
Afrânio Coutinho, ao classificar os textos reunidos na obra No hospital das letras [1] de “panfleto,” dá o tom do tipo de discurso que intenta imprimir a obra. Ele próprio declara que foi buscá-lo na obra homônima de Francisco Manuel de Melo (1608-1666), famoso escritor português do período setecentista que, não obstante ter falecido aos cinquenta e oito anos, deixou uma prodigiosa e multifacetada obra.
De resto, Coutinho fez uma leve alteração no título da obra de D. Francisco Manuel de Melo, que é Hospital das letras, acrescentado-lhe no início a contração “No” inexistente no título do autor luso.
D. Francisco Manuel de Melo foi um intelectual prolífico de vida acidentada e aventureira, que, por sinal, na condição de degredado, viveu três anos no Brasil, no estado da Bahia, punido, ao que tudo indica, por um suposto assassínio de um dos mordomos do conde de Vila Nova de Portimão. Melo foi julgado e condenado, recebendo “desterro perpétuo” a ser cumprido na África e, depois, após ser-lhe comutada a pena, veio ser degredado no Brasil, no estado da Bahia, em 1655, e aqui permaneceu até o final do degredo[2].
Num memorial dirigido ao rei D.João IV, escrito em linguagem magistral, elogiado até pelo célebre historiador e romancista Alexandre Herculano, Melo pediu ao rei que por ele intercedesse, mas de nada lhe valeu seu esforço. Segundo o historiador Joaquim Ferreira,[3] o rei D. João IV não confiava na “lealdade de Melo, e nem mesmo uma “carta de clemência” do rei Luís XIV dirigida ao monarca luso surtiu efeito. Melo amargou a prisão por seis anos até embarcar para o Brasil. Afirma-se – inclusive esta é a opinião do escritor Camilo Castelo Branco - que sua prisão se deveu a um affair que Melo teve com a esposa do conde, e este, por vindima, acusou Melo de ter sido o assassino do mordomo, de nome Francisco Cardoso.
Segundo salienta Maria Lourdes Belchior, professora da Universidade de Lisboa e autora do verbete sobre Francisco Manuel de Melo incluído no Dicionário de literatura dirigido por Jacinto Prado Coelho, Manuel de Melo fez “uma crítica de costumes.”[4], naturalmente se referindo a uma das quatro partes que constituem a obra Apólogos dialogais,designadas por ele como “esquisitas”, as quais se intitulam Relógios falantes, Visita das fontes, Hospital das letras e Escritório avarento. No entanto a sua obra geral não se restringiu só a isso.
Foi poeta, prosador, historiador, dramaturgo, memorialista, arguto crítico literário, o que o tornou, na opinião de Rebelo da Silva, citado no referido verbete, um dos “primeiros eruditos de seu tempo e talvez o prosador mais substancial da língua portuguesa.” [5]
Não é, portanto, gratuita a escolha do autor português e do título No hospital das letras de Coutinho, alusivo a uma das obras de Melo, seja por este ser igualmente um crítico literário, seja porque a obra Hospital das letras, em conjugação com Visita da fonte – convém assinalarmos para sermos mais coerentes e precisos - mantém traços e pretensões comuns com o livro de Coutinho.
Obviamente guardadas as devidas proporções de tempo e de alcance geral: crítica acerba contra escritores medíocres, importância dada à obra de Aristóteles, de Platão e Sêneca, preocupações teóricas com conceitos de poesia, de linguagem, da decadência intelectual da época, da falta de talento, do espírito rebelado contra o meio literário, os gramáticos anacrônicos, a natureza de libelo, algumas apreciações desafavoráveis contra escritores de reconhecido valor, e o tom moralista e didático de que se revestem alguns textos.[6]
Tanto no Hospital das letras de Melo quanto No hospital das letras de Coutinho – urge considerar - o lexema “hospital” aponta para campos semânticos relacionados a doença, a cura, a reabilitação, a melhoria do ambiente literário e a desejos de aprimoramento e de reformulações de novos valores estéticos no campo da literatura, considerados quer em julgamentos coerentes, quer em julgamentos errôneos.
A importância do pensamento crítico de Melo, tendo em vista a obra Hospital das letras, segundo argutamente afirma a professora Maria Lourdes Belchior, guarda afinidades de situações no que tange a algumas visões do pensamento crítico enfrentadas por Coutinho. São palavras dela: “Esta obra, aliás, é indispensável para o conhecimento das correntes literárias do tempo e dos juízos feitos sobre autores e obras, maiores e menores.”[7]
Desta forma, temas e questões assemelhados entre Melo e Coutinho sinalizam propósitos de cunho polêmico e de natureza panfletária, i.e., não é difícil deduzir que Coutinho provavelmente fosse um admirador da obra de Melo, não só pela grandeza de sua produção literária em vários gêneros, conforme já frisamos, mas sobretudo porque Os apólogos dialogais constituíram, na visão dos historiadores portugueses de maior conceito, um dos monumentos da literatura lusa, ou para corroborarmos a opinião do historiador Feliciano Ramos, “.. uma das obras-primas da literatura clássica.”[8]
O hospital das letras de Melo inclui estudos de autores diversos que mereceram do historiador português, Feliciano Ramos, o seguinte comentário: “Há que destacar ainda o equilíbrio crítico que Melo denota no Hospital das Letras, o quarto dos Apólogos dialogais. Não envelheceram as apreciações formuladas sobre Tito Lívio, Gil Vicente, Luis de Camões, Rodrigues Lobo e outros”[9]
È nesse aspecto que aquele texto de Melo diverge de No hospital das letras de Coutinho, conjunto de panfletos acerca da vida intelectual brasileira, em geral, em tom polêmico, por vezes, com virulência no tratamento dos temas abordados. Por exemplo, no último texto, de título “O Impostor, Coutinho faz um desenho mordaz de Lins que nos traz à lembrança aquele período da polêmica acirrada travada entre o Sílvio Romero das Zeverissimações ineptas da crítica e o crítico José Veríssimo, numa tal semelhança de situação que valeria a pena aqui citar a seguinte reflexão de Brito Broca acerca do assunto:
A polêmica do tipo camiliano que encontrou em Carlos de Laet um dos seus maiores adeptos entre nós, já estava um tanto fora de moda por volta de 1909, quando Sílvio Romero desfechou contra José Veríssimo o violentíssimo ataque das Zeverisssimações ineptas da crítica. Tínhamos aqui de novo agressão mais no terreno pessoal do que no das ideias, em termos rudes e brutais, com um requinte de plebeísmo a que nunca chegara Camilo nem mesmo Laet [10]
Na polêmica entre Álvaro Lins e Afrânio Coutinho, diante da citação acima, não há como furtar-nos a um reconhecer efetivamente situações ou semelhanças em alguns pontos comuns que resultaram na refrega entre ambos guardando - é óbvio – as diferenças de época, de motivações básicas e da circunstância de que entre Romero e Veríssimo já tinha havido relações amistosas, fato que não aconteceu com Lins e Coutinho. Vejamos a seguinte citação que nos faz Brito Broca relatada na sua excelente e prazerosa obra A vida literária no Brasil -1900, que torna bem aproximativa a natureza das duas polêmicas e, ainda por cima, de dois críticos famosos:
Sílvio Romero e José Veríssimo já haviam sido outrora amigos; mas possuíam diferenças de temperamento muito sensíveis para poderem entender-se por muito tempo. O primeiro era um emocional, deixando-se facilmente dominar pelas paixões; de uma largueza de vista extraordinária quando generalizava, cedia, por vezes, às influências sentimentais nos momentos em que individualizava. Nutria admirações fanáticas e ojeriza também extremadas[11].
É preciso enfatizar uma circunstância relacionada à composição de No hospital das Letras, ou seja, evidenciar que esta obra está intimamente associada, na maior parte dos temas debatidos a uma obra, por muitos ângulos, fundamental ao pensamento crítico-historiográfico de Coutinho, Correntes cruzadas, publicado em 1953.
Em Correntes cruzadas, Coutinho reúne o que chama de “crônicas. Vem precedido de um longo e bem elaborado prefácio ou introdução, em que traça os principais pontos de seus objetivos não só em referência às suas ideias polêmicas envolvendo questões atinentes à defesa de seu pensamento crítico-teórico que o levaram até à polêmica, como ainda à situação, ao seu ver, caótica, estéril e desatualizada do meio intelectual brasileiro, do ensino de literatura e das urgentes demandas de uma nova forma de operar em áreas da teoria literária, da crítica literária, da historia literária no ensino secundário no ensino superior de Letras.[12]
Para ele, o grande salto de qualidade do ensino universitário de letras no país somente se concretizaria com mudanças efetivas e inovadoras nos currículos das disciplinas língua portuguesa e literatura – cuja separação era por ele defendida em artigos e livros. As mudanças do ensino superior de letras deveriam se estender obviamente para as de comportamento discente e docente., i.e., Coutinho almejava com denodo e espírito de verdadeira vocação pedagógica essas transformações, e assim o fez durante toda a vida
Coutinho é, antes de tudo, um crítico-pedagogo, um crítico educador, um renovador de padrões de ensino e de educação. Sua obra crítica, já dissemos alhures, está vincada dessa preocupação de atualizar o ensino em geral e, em especial, os estudos literários.
Para atingir seus objetivos, não poupará esforços no sentido de mostrar novos caminhos através dos quais a crítica literária, o ensaio literário, a história literária e especificamente o ensino da literatura possam ser instrumentalizados por modelos de técnica e de enfoques hauridos nas fontes mais originais da tradição universal.
Daí ser seu alvo principal a atualização do saber literário entre nós que liberte formas antiquadas de ensino e de crítica dissociados do estudo sério, profundo, produtivo, como se desejasse aproximar o pensamento literário brasileiro o máximo possível dos níveis avançados da literatura ocidental estudada e ensinada nos grandes centros do mundo, seja nos Estados Unidos, seja na Europa. A citação seguinte dá a medida certa desses objetivos a serem colimados :
O melhoramento da literatura no Brasil não resultará de arranjos na vida de alguns intelectuais, mas de medidas de ensino literário; o enriquecimento de nossas bibliotecas com instrumentos de estudo e pesquisa, de modo a tornar acessíveis as grandes fontes da cultura a fim de que não continuemos atrasados cinquenta e cem anos...”[13]
Entretanto, conforme assinalamos anteriormente, em No hospital das letras Coutinho, a acurada análise que traça da situação da vida literária brasileira em muitos aspectos possui o seu tanto de obra saneadora e identificadora dos males por que atravessara a vida literária brasileira, esclarecedoras observações acerca dos males, do estado de inércia e do clima arrivista que permeava os anos visados pelo autor..
Desde o primeiro capítulo, intitulado intencionalmente de “A comédia da vida literária” podemos antecipar o que o livro nos revelaria da vida literária nacional e da visão acerba de crítica que Coutinho passaria a nos transmitir com a coragem que o caracterizou ao longo de sua vida intelectual. Ponderações como a seguinte apontam para o tipo de vida literária dominante nos anos 1940, 1950 e 1960 aproximadamente: “A vida literária é, no Brasil, muito mais importante do que a própria literatura.”[14] (grifos nossos). É desse macro-núcleo temático que evoluem as suas análises favoráveis ou negativas.
Discutindo os desacertos da vida literária do seu tempo, Coutinho disso se aproveita para compor um “panfleto” o mais abrangente possível em temas e situações do que podemos definir como a política literária do baixo “clero” nacional. a qual, por isso, não se cinge apenas a atingir o modelo crítico de então, o Impressionismo, mas também lançar setas ferinas contra uma série de mazelas no campo intelectual, quer da vida literária, quer do ensino da literatura, quer da crítica literária e da teoria literária até então não devidamente formulada como um corpus teórico que seria obrigatório conhecer e aprofundar.
Seu desiderato era sanear a politicagem literária, sentimento que está encerrado no na própria escolha do título do livro onde os lexemas “hospital” e “letras” semanticamente apontam para o lugar de “cura,” de “tratamento, de reabilitação de uma vida literária cheia de males, improvisações, mandonismo e imperfeições flagrantes.
Para isso, não poupa por vezes transmitir suas opiniões em linguagem desabrida, recorrendo mesmo a palavras, não de baixo calão, mas dispensáveis a um livro de artigos-ensaios.como são ilustrativos os vocábulos “chacrinha, “cafajetismo,” “palhaçada,” “picaretagem”, “vigaristas” etc. Todavia, a seu espírito visceralmente polêmico, inconformado diante de nossos deficiências culturais, isso tudo não poderia passar incólume.
Daí a sua maneira beligerante de se contrapor à estagnação de estudos literários e de uma vida literária feita amiúde de grupinhos, de camaradagem, de interesses políticos subalternos, de favores, de tráfico de influência, de mistura com um arremedo de vida intelectual.
Qualquer desvio de conduta nos nossos “mores” literários foi alvo da crítica contundente de Coutinho por longos anos. Por isso, chamara de “comédia da vida literária” ao primeiro capítulo de sua obra. Obviamente, nem sempre alguns pontos de vista expendidos por ele são justificáveis, porquanto num panfleto, como na polêmica acalorada, os contendores cometem muitos erros e exageros, hipertrofiam os defeitos dos seus êmulos, exageram na caricatura e se movem pela paixão a ponto de afirmar exageros e, ao final, se tornarem com frequência parciais e passionais.
A polêmica – cumpre-nos repisar neste capítulo -, tem essa dimensão menor, esse lado burlesco, em que o polemista perde-se nos seus sofismas e na sua capacidade de emitir ideias com equilíbrio e isenção.Contudo, em No hospital das letras, sem dúvida há juízos ponderados, equilibrados, voltados para a moralização de nossa vida cultural e o que Coutinho achava de ruim nela se afirma como denúncia necessária, a nosso ver, tendo em vista o objetivo de mostrar ao leitor daqueles anos do século passado como não deveria ser a vida literária no país.
Quer dizer, Coutinho combateu ferozmente as frivolidades do homem de letras sem qualificação, ou como ele define, do pseudo-intelectual, dos arrivistas, dos “profiteurs”, das mediocridades, cuja meta era galgar posições relevantes na vida intelectual nacional, ainda que fosse por meios pouco escrupulosos.
Lutou com veemência contra as falácias perpetradas por aquelas nulidades, lutou contra a fanfarronice, a malandragem da subliteratura, a ausência de seriedade nos estudos literários e no preparo constante exigido por quem se dedica à produção literária de qualidade. Coutinho verberou os malefícios decorrentes de nossa descontinuidade no desenvolvimento da literatura brasileira e dos estudos literários, os quais segundo ele, sempre lhe pareciam estar num recomeço estéril por falta de continuidade, de metas, de projetos, de melhoramento e de atualização.
Para ele, o país carecia de valorizar devidamente os que realmente produziam algo de alto nível no campo literário, e nos estudos teóricos embasados em técnicas, metodologias, bibliografia atualizada e em estudos sintonizados com o que de mais avançado se ensinava e se transmitia nos países adiantados, tal como ele viu na sua permanência em solo norte-americano, nas suas melhores universidades onde figuras eminentes da Europa ali lecionaram.
A abrangência de seu panfleto resumia-se no combate sem trégua às deficiências de nossa cultura, de nosso ensino, da necessidades de aperfeiçoamento de nossas Faculdades de Filosofia e, particularmente, dos seus cursos de Letras
Na sua luta contra a estagnação literária e espírito crítico ainda apegado ao impressionismo, entre tantas outras mazelas, Coutinho se refere aos chamados prêmios literários concedidos a escritores em concurso com todos os vícios e desmandos de seus julgadores, onde não havia por vezes a mínima lisura, mas o domínio deletério do capadócios e cabotinos da vida literária deblaterado por ele com muito vigor como podemos perceber da citação seguinte:
É fácil comprovar sempre os resultados da cobiça na disputa nojenta em torno dos prêmios. Candidatos a um prêmio que são, ao mesmo tempo, juízes no outro; barganhas; cálculos; acordos; bate-bocas; cavações; transigências; faltas de critério e idoneidade pra julgamento; de tudo o que a literatura está ausente[15] .
É nesse diapasão de crítica ferina acerca das nossas imperfeições culturais que Coutinho desenvolve seus comentários e reflexões, suas análises da vida literária brasileira. Fustiga, sim, os nossos defeitos culturais, mas apresentou soluções de melhoramentos. Não ri - como se faz na comédia, segundo o conceito de Sêneca, para castigar os costumes, antes castiga para corrigir as mazelas, então dominantes na vida literária, feitas por suas figuras em evidência, i.e., fantoches posando de escritores. Seus ataques ferinos desbancam as “bombochatas” (termo empregado por ele) de nosso cenário literário de fancaria.
. Não se utilizou, a não ser no último capítulo de No hospital das letras, do estilo satírico camiliano ou do modo brincalhão-carnavalizado de Agripino Grieco que, por sinal, é duramente criticado por Coutinho num artigo em defesa de Machado de Assis.[16]
O que expusemos até aqui, por assim dizer, constitui o cerne da visão de Coutinho acerca da vida literária no período que se propôs analisar. Seu objetivo foi dissecar, através do tom polêmico, o mapa humano da deplorável realidade de parte considerável de quem se definia como escritor no interregno recortado por Coutinho.
O autor age no livro como doutrinador de suas ideias, divulgando o seu pensamento crítico, sua visão aberta do fenômeno literário, pondo sempre como condição fundamental o valor estético da obra literária. Revela-se, assim cumpre reafirmar - um pedagogo do ensino da literatura, o qual para ele deveria passar do amadorismo (provavelmente naquela mesma acepção usada por Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) [17] para uma fase madura de disciplina a ser lecionada com método, base científica e rigor de pesquisa, de análise e interpretação, de revisão bibliográfica (a que sempre deu inestimável importância em toda a sua obra) e de uma nova abordagem a que denominou Nova Crítica, aspecto que aprofundaremos ainda neste estudo.
Compõe-se No hospital das letras de 37 pequenos capítulos, todos girando em torno de temas correlatos desvelando os bastidores e os desvãos da vida intelectual brasileira. O panfleto, pela sua amplitude de assuntos levantados, em resumo, visa a discutir a falsidade de nosso hábitos de estudos, o pseudo-intelectualismo, o ensino de literatura ultrapassado e ineficiente, os erros de nosso ensino superior de letras, a introdução de novas abordagens crítico-interpretativas, a história literária feita em geral sem critérios e metodologias que priorizassem a obra literária e não a vida literária.
Coutinho, apesar da maneira em geral com que ataca de forma desassombrada as mazelas da nossa vida e vícios literários, escreve excelentes passagens dignas de meditação pela justeza e domínio dos temas ventilados, como, por exemplo, a bela página que é o artigo “Ascese do Isolamento,”[18] uma espécie de nobre desabafo memorialístico pelo que passa o verdadeiro escritor que não se submete às igrejinhas do “imperialismo da vida literária”[19] e à ilusão efêmera de glórias “de pés de barro.” O escritor honesto, estudioso, não faz parte desses grupinhos que só visam ao lucro financeiro ou publicitário.
O isolamento que sofre desses grupinhos, dessas ‘coteries’ assim definidas por Coutinho, de camarilhas literárias que o desprezam e o afastam, não lhe dando, nos primeiros anos de contato com a vida intelectual do Rio de Janeiro, a mínima chance de ser reconhecido, de poder participar com seriedade de uma vida literária sadia e composta de intelectuais comprometidos com a produção de qualidade e com o progresso de nossa literatura.
Como exemplos históricos de vítimas dessas mesquinharias de grupelhos detentores de privilégios e ascensão na vida literária, no século XIX, Coutinho cita o nome do próprio Imperador D. Pedro II que hostilizara José de Alencar; no século XX, são exemplos os escritores Otávio de Faria e Cornélio Pena.[20] A seguinte citação de Coutinho não só se ajusta à situação dele próprio como crítico recém-chegado à vida literária carioca, mas também a de inúmeros outros escritores que não liam pela cartilha das igrejinhas da época, dos detentores do “imperialismo literário,” expressão usada por Coutinho:
Não há outra alternativa: ou contemporiza e se integra às suas malhas, então aufere as vantagens em termos de lucro financeiro e gloríola; ou resiste, isola-se, não dá confiança e ficará sempre um marginal, olhado com desconfiança, malquisto, hostilizado, sabotado, esquecido propositadamente, não reconhecido nos seus méritos e trabalhos.[21]
Consoante havíamos anunciado anteriormente no presente capítulo, o derradeiro artigo, “O Impostor,” destoa totalmente dos precedentes, i.e., até o artigo “Os parasitas da Literatura”[22] Explicaremos por quê. Nestes textos de No hospital das letras, segundo já sublinhamos, definidos pelo próprio autor como “panfleto,” existem pontos de vista com os quais concordamos e outros de que discordamos. Isto é uma postura natural de quem os analise e, por outro lado, não seria de nossa parte correto afirmar que estaria nos planos de Coutinho achar que seus textos reunidos em No hospital das letras só encontrassem ressonância favorável do leitor.
Por exemplo no tópico - literatura e política - levantado por Coutinho, ele observa que, por exemplo, professores universitários de letras, ou escritores em geral, deveriam se restringir às suas funções específicas, ou seja, às tarefas relativas aos estudos literários, sem se intrometer diretamente e nos embates da política.
Esta posição de Coutinho pode, a princípio, parecer absenteísta ao leitor de hoje no que tange ao posicionamento do crítico sobre vida política brasileira ou do mundo. No entanto, com respaldo na obra Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura que, para o autor deste estudo, significa o melhor ensaio no gênero, espécie de biografia intelectual de Afrânio Coutinho, não obstante tenha seu tanto de louvor afetivo, torna-se pesquisa decisiva para situar o pensamento do crítico baiano, o seu percurso intelectual e parte considerável de sua biografia.
Os capítulos “Uma vocação,” “A experiência jornalística” e “Jornalismo e literatura” da obra Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura“[23] são suficientes a fim de mostrarem o papel saliente de Coutinho na esfera da relação entre jornalismo, literatura e pensamento político.
Todo esse material produzido em jornais e vistas sobre questões políticas, filosóficas, religiosas, históricas e literárias em plena mocidade em Salvador, forma uma farta documentação ao pesquisador que aspire a enveredar por estudos mais específicos sobre o pensamento político e literário de Coutinho.
Podemos adiantar, em síntese, o seguinte: Coutinho teve intensa atividade jornalística em Salvador nos anos de 1930, era católico, foi anti-integralista, passou por fase de hesitações que o levariam por algum tempo a pensar-se ateu, mas foi salvo por um retomada de linha de pensamento filosófico-religioso, de estofo católico, graças, a nosso ver, sobretudo a leituras do filósofo Jacques Maritain.
O que discutimos até aqui, constitui em nosso juízo, o cerne da visão de Coutinho acerca da vida literária no período que se propôs analisar. Seu objetivo foi dissecar, através do tom polêmico, o mapa humano de parte considerável da deplorável realidade brasileira de quem se definia como escritor no interregno recortado pelo crítico.
[1] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963. Vera “Introdução” de Coutinho, p. 25.
[2] FERREIRA, Joaquim. História da literatura portuguesa. 4. ed. ver. e atual. pelo autor. Porto: Domingos Barreira, 1971, p. 488-493.
[3] Idem, p.490.
[4] Ver verbete: MELO, D. Francisco Manuel de. In: PRADO COELHO, Jacinto do. (Dir.) Dicionário de literatura. Op.cit., p. 621.
[5] Idem, ibidem, p. 622-623.
[6] RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1950, p. 310-313.
[7] PRADO COELHO, Jacinto do (Dir.). Dicionário de literatura. Op. cit., p. 621.
[8] RAMOS, Feliciano. Op. cit., p. 313.
[9] Idem, p. 312.
[10] BROCA, Brito. A vida literária no Brasil- 1900. 3. ed. Rio de Janeiro: 1975, p. 199.
[11] BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1990, op. cit., p.199.
[12] COUTINHO, Afrânio. Op. cit., p. I-XXIII.
[13] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras, op. cit., p. 35.
[14] Idem, p. 27.
[15] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras, op. cit., p. 37.
[16] COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios.
[17] AMOROSO LIMA, Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira, op. cit., p. 148-149. A reflexão do grande crítico Alceu Amoroso Lima deu-se a propósito da constatação do que ele tinha da sua geração de críticos diante da inestimável contribuição de Afrânio Coutinho na mudança de rumo da crítica literária brasileira, com a sua crítica estética e a sua proposta do New Criticism. .Amoroso Lima inclui Coutinho na segunda geração modernista, mas sendo um dos “representantes mais significativos da crítica neo-modernista,” à qual se juntariam as gerações mais novas e “várias tendências,” com nomes como Eduardo Portela, Ledo Ivo, Oswaldino Marques, Antônio Houaiss, Franklin de Oliveira, Fausto Cunha, Heron de Alencar, Othon Moacyr Garcia, entre outros. Amoroso Lima inlcuiria, na segunda fase modernista, os críticos Otto Maria Carpeaux, Álvaro lins, Roberto Alvim Correia, Antonio Candido, Temístocles Linhares, Afrânio Coutinho, Augusto Meier, Eugênio Gomes. Estes, segudo ele, “(...) já anunciam a crítica neo-modernista (...)” de então, i.e., da segunda metade do século passado, data da publicação Essa inlcusão de críticos de certa maneira, mostra-se um tanto ambígua quanto a rotulações.Por outro lado, no exemplo de Coutinho, teríamos, assim, um crítico da “segunda geração modernista”, porém figurando como um “nome” central da crítica neo-modernista. o que deixa, assim, algo ambíguas as inclusões e seus rótulos. Na realidade, a nosso ver, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) aludia à sua própria geração, representante do “amadorismo” crítico, quer dizer, de figuras que não possuíam, em geral, uma formação técnica no cmapo literário, de críticos oriundos dos cursos de Letras em universidades, em cursos fora do país, não de bacharéis, por exemplo em direito ou de outras carreiras. A constatação do “amadorismo” de Amoroso Lima, em nosso juízo, soa mais como uma figura de retórica, em que um ilustre crítico, ele próprio, professor universitário de renome, se vê em relação aos mais novos, férteis em ideias e em disposição de mostras perspectivas estéticas que iam surgindo.
[18] COUTINHO, Afrânio. No hospital de letras, op. cit., p. 141-144.
[19] Idem, p. 142.
[20] Idem, p. 142-143.
[21] Ibidem.
[22] Idem, p. 175.
[23] BELÉM, Odilon. Op. cit., p. 17-112.