3.2- NO HOSPITAL DAS LETRAS: O REPTO DE AFRÂNIO COUTINHO  

   Afrânio Coutinho,  ao classificar os  textos reunidos  na obra  No hospital  das letras [1] de “panfleto,” dá o  tom  do tipo de discurso que intenta  imprimir a obra. Ele  próprio declara que  foi  buscá-lo na obra homônima de Francisco  Manuel de Melo (1608-1666), famoso  escritor     português  do  período setecentista que,  não obstante ter  falecido  aos cinquenta e oito anos, deixou uma  prodigiosa e multifacetada   obra.

   De resto,  Coutinho  fez uma leve alteração  no  título da  obra  de D. Francisco  Manuel  de Melo, que é  Hospital  das letras, acrescentado-lhe no  início  a contração   “No”     inexistente  no título  do autor  luso.

  D. Francisco  Manuel de Melo  foi  um intelectual  prolífico de vida  acidentada e aventureira, que,  por sinal, na condição  de degredado, viveu  três anos  no Brasil,  no estado da Bahia, punido, ao que tudo  indica,  por um  suposto assassínio de um  dos mordomos  do conde de Vila Nova de Portimão. Melo  foi  julgado  e condenado,  recebendo  “desterro  perpétuo” a ser cumprido na África e, depois,  após ser-lhe comutada a pena,  veio ser   degredado  no Brasil,  no estado  da Bahia, em 1655, e aqui  permaneceu até o final do degredo[2].

  Num  memorial dirigido ao  rei D.João IV,  escrito  em linguagem  magistral, elogiado  até  pelo  célebre  historiador  e  romancista Alexandre Herculano, Melo pediu ao rei  que  por ele intercedesse, mas de nada  lhe valeu seu esforço. Segundo  o historiador  Joaquim  Ferreira,[3] o rei  D. João  IV não confiava  na “lealdade  de Melo, e nem mesmo uma “carta  de clemência”  do   rei  Luís XIV dirigida  ao monarca luso surtiu  efeito. Melo  amargou  a prisão por seis anos até  embarcar  para o Brasil. Afirma-se – inclusive  esta é a  opinião  do escritor Camilo Castelo Branco - que sua  prisão   se deveu  a um  affair  que Melo  teve com a  esposa  do conde, e este, por  vindima,   acusou Melo de  ter sido  o assassino  do mordomo, de nome Francisco Cardoso.

  Segundo salienta Maria Lourdes  Belchior,  professora da Universidade  de Lisboa e autora  do verbete sobre  Francisco   Manuel de Melo   incluído no Dicionário  de literatura dirigido  por Jacinto Prado Coelho, Manuel de Melo  fez “uma crítica   de costumes.”[4], naturalmente se referindo a uma das quatro  partes  que  constituem  a obra  Apólogos  dialogais,designadas  por ele  como  “esquisitas”, as quais se  intitulam Relógios  falantes,  Visita  das fontes,  Hospital das  letras e Escritório  avarento. No entanto  a sua  obra geral não  se restringiu só a isso.    

  Foi poeta, prosador, historiador, dramaturgo,  memorialista,    arguto crítico  literário, o que o tornou, na  opinião de Rebelo  da Silva,  citado no referido verbete,  um dos “primeiros eruditos  de seu  tempo e talvez  o prosador mais  substancial da língua  portuguesa.” [5]

  Não é, portanto,  gratuita a escolha do autor português e do título No hospital  das letras de Coutinho,  alusivo a uma das obras  de Melo, seja  por este ser  igualmente um crítico literário, seja  porque a obra Hospital das letras, em conjugação  com  Visita  da fonte – convém  assinalarmos  para sermos mais coerentes e precisos  -  mantém traços e  pretensões comuns com o livro  de Coutinho. 

  Obviamente guardadas as devidas  proporções de tempo e de alcance  geral: crítica   acerba contra  escritores  medíocres, importância dada  à obra de Aristóteles, de Platão e Sêneca, preocupações   teóricas  com  conceitos  de  poesia,   de  linguagem, da decadência  intelectual  da  época,   da falta de talento, do espírito   rebelado  contra  o meio  literário, os gramáticos anacrônicos, a natureza  de libelo, algumas  apreciações  desafavoráveis  contra  escritores   de  reconhecido   valor, e o tom moralista e didático de que se revestem  alguns  textos.[6]

  Tanto  no Hospital  das letras de Melo quanto  No hospital  das letras  de Coutinho – urge  considerar -  o lexema  “hospital”  aponta para  campos semânticos  relacionados  a doença, a cura,  a reabilitação,  a melhoria   do  ambiente literário e a desejos de aprimoramento  e de  reformulações  de  novos valores estéticos no campo da literatura,  considerados  quer em julgamentos   coerentes, quer  em  julgamentos   errôneos.

  A  importância do pensamento   crítico de Melo, tendo em vista  a obra  Hospital das letras, segundo   argutamente   afirma   a  professora  Maria  Lourdes Belchior, guarda afinidades   de situações   no que tange  a algumas visões  do pensamento  crítico enfrentadas  por  Coutinho. São  palavras  dela: “Esta  obra, aliás,  é indispensável  para o conhecimento das correntes literárias do tempo  e dos juízos feitos sobre autores e obras,  maiores e menores.”[7]

  Desta  forma,  temas e questões assemelhados entre Melo e Coutinho sinalizam  propósitos de cunho  polêmico e  de natureza  panfletária, i.e., não é difícil deduzir que Coutinho  provavelmente fosse um admirador da obra de Melo, não só pela grandeza de sua  produção literária em vários  gêneros, conforme  já  frisamos, mas  sobretudo  porque Os apólogos  dialogais constituíram, na visão dos  historiadores   portugueses de maior conceito, um dos monumentos  da literatura  lusa, ou  para corroborarmos  a  opinião  do historiador  Feliciano  Ramos, “.. uma das obras-primas  da literatura clássica.”[8]

                          O hospital das letras de Melo inclui estudos de autores diversos que mereceram  do historiador  português,  Feliciano  Ramos,  o seguinte comentário: “Há que destacar ainda  o equilíbrio  crítico que Melo denota no Hospital das  Letras, o quarto dos Apólogos  dialogais. Não envelheceram as  apreciações formuladas sobre Tito Lívio, Gil Vicente, Luis de Camões, Rodrigues  Lobo e outros”[9]

È nesse aspecto que aquele  texto de Melo diverge de No hospital das letras de Coutinho, conjunto de  panfletos acerca da vida intelectual  brasileira,  em geral, em tom polêmico, por vezes,  com  virulência no tratamento  dos temas  abordados. Por exemplo, no  último  texto,  de título  “O Impostor,   Coutinho faz um desenho mordaz de Lins que nos  traz à lembrança aquele período  da polêmica acirrada  travada  entre o  Sílvio Romero das   Zeverissimações ineptas da crítica e o  crítico  José Veríssimo, numa tal semelhança  de situação que valeria  a pena aqui  citar a seguinte  reflexão de Brito Broca acerca  do  assunto:

A polêmica do tipo camiliano  que encontrou  em Carlos de Laet um dos seus maiores  adeptos entre nós, já estava um tanto fora de moda por volta de 1909, quando Sílvio Romero desfechou contra  José Veríssimo o  violentíssimo ataque das Zeverisssimações   ineptas da crítica. Tínhamos aqui de novo  agressão  mais no terreno  pessoal do que no das ideias, em termos  rudes e brutais, com um  requinte de plebeísmo a que nunca chegara  Camilo nem mesmo  Laet [10]

            

  Na polêmica entre Álvaro Lins e Afrânio Coutinho, diante da citação acima,  não há como  furtar-nos a um reconhecer   efetivamente situações ou semelhanças em  alguns  pontos comuns que resultaram na refrega entre  ambos   guardando  - é óbvio – as diferenças de época, de motivações  básicas e da circunstância de que entre Romero e Veríssimo já tinha havido relações  amistosas, fato que não aconteceu  com  Lins e Coutinho. Vejamos  a seguinte citação  que nos  faz Brito Broca  relatada na sua  excelente e prazerosa  obra A vida literária no Brasil -1900, que torna bem  aproximativa   a natureza das duas  polêmicas e, ainda por cima,  de dois críticos  famosos:

Sílvio  Romero e José Veríssimo já haviam sido outrora amigos; mas possuíam diferenças de temperamento muito sensíveis para poderem entender-se por muito tempo. O primeiro era um emocional, deixando-se facilmente dominar pelas paixões; de uma largueza de vista extraordinária quando  generalizava, cedia, por vezes,  às influências  sentimentais nos momentos em que  individualizava. Nutria admirações fanáticas e ojeriza também extremadas[11].

             

 

  É preciso  enfatizar  uma circunstância relacionada  à composição  de No hospital das Letras, ou seja,  evidenciar que esta obra  está  intimamente associada,  na maior parte dos temas  debatidos a uma  obra,  por muitos  ângulos,  fundamental  ao  pensamento  crítico-historiográfico de Coutinho, Correntes cruzadas,  publicado em  1953.

  Em Correntes cruzadas, Coutinho reúne o que chama de “crônicas. Vem precedido  de um longo e  bem  elaborado   prefácio ou  introdução, em que traça os principais   pontos  de seus  objetivos não só em  referência  às suas  ideias  polêmicas  envolvendo   questões atinentes à defesa  de seu  pensamento   crítico-teórico  que  o levaram até  à  polêmica,    como ainda  à situação,    ao seu  ver,  caótica, estéril  e  desatualizada   do meio   intelectual   brasileiro,  do ensino de literatura e das urgentes  demandas  de uma   nova   forma  de   operar em  áreas  da teoria literária, da crítica literária,  da  historia literária no ensino secundário   no  ensino superior  de Letras.[12]    

  Para ele,  o grande salto de qualidade do ensino  universitário de letras no país somente se  concretizaria com  mudanças efetivas e inovadoras nos currículos  das disciplinas língua  portuguesa e literatura – cuja separação era  por ele defendida em artigos e livros.  As mudanças  do ensino superior  de letras deveriam se estender obviamente para  as de comportamento   discente e docente., i.e.,  Coutinho  almejava  com  denodo e  espírito   de verdadeira  vocação pedagógica  essas transformações, e assim  o fez durante  toda a vida   

  Coutinho é, antes de tudo,  um crítico-pedagogo,  um crítico  educador, um  renovador  de padrões  de ensino e de educação. Sua obra crítica,  já dissemos alhures,  está vincada dessa preocupação  de atualizar   o ensino em geral e, em especial,  os estudos literários.

   Para  atingir seus  objetivos, não poupará   esforços no sentido  de  mostrar  novos caminhos  através dos quais  a crítica  literária,  o ensaio  literário,  a história  literária e especificamente o ensino da literatura  possam ser  instrumentalizados   por modelos de técnica e de  enfoques  hauridos  nas fontes  mais  originais   da tradição  universal.

                          Daí ser seu  alvo  principal  a atualização   do saber  literário  entre nós que liberte  formas  antiquadas   de ensino  e de crítica  dissociados  do  estudo sério,  profundo,  produtivo, como se  desejasse  aproximar  o pensamento   literário  brasileiro  o máximo  possível  dos níveis  avançados   da literatura   ocidental estudada  e ensinada nos  grandes  centros   do mundo, seja nos Estados Unidos, seja na Europa.  A citação seguinte  dá a medida  certa  desses  objetivos   a serem  colimados :   

 O melhoramento da literatura  no  Brasil não resultará de arranjos na vida de alguns   intelectuais, mas de medidas de ensino literário; o enriquecimento de nossas  bibliotecas com  instrumentos de estudo e pesquisa, de modo a  tornar acessíveis as grandes fontes da cultura a fim de que não continuemos atrasados cinquenta e cem anos...”[13]

  Entretanto,  conforme   assinalamos  anteriormente, em  No hospital das  letras Coutinho, a acurada análise que traça  da situação   da vida literária  brasileira em  muitos  aspectos possui  o seu tanto  de  obra  saneadora  e  identificadora  dos males  por que  atravessara  a vida literária  brasileira, esclarecedoras   observações acerca  dos  males,  do estado  de   inércia e do clima  arrivista   que permeava  os anos   visados  pelo autor..   

   Desde o primeiro capítulo,  intitulado intencionalmente de “A comédia da vida literária” podemos  antecipar  o que  o livro   nos revelaria  da vida literária  nacional e da  visão  acerba de crítica    que Coutinho   passaria a nos  transmitir  com a coragem   que  o caracterizou ao longo de sua  vida  intelectual. Ponderações  como a seguinte  apontam  para  o tipo de vida literária  dominante  nos anos  1940, 1950 e  1960 aproximadamente: “A vida literária é, no Brasil, muito mais importante do que a própria literatura.”[14] (grifos nossos). É desse macro-núcleo  temático  que evoluem as suas  análises  favoráveis ou  negativas.

   Discutindo os  desacertos da vida literária do seu  tempo, Coutinho disso se aproveita para compor  um  “panfleto” o mais  abrangente  possível em temas  e situações  do que  podemos   definir como a política literária do baixo “clero” nacional. a qual,  por isso,  não se cinge apenas a atingir o modelo crítico de então,  o Impressionismo, mas também lançar setas ferinas contra uma série de  mazelas  no campo   intelectual, quer da vida literária, quer  do ensino da literatura, quer da crítica literária e da teoria  literária até então  não devidamente  formulada como  um corpus   teórico   que  seria  obrigatório  conhecer e aprofundar.

   Seu desiderato  era  sanear  a  politicagem  literária, sentimento  que está  encerrado  no  na própria escolha do  título  do  livro onde os lexemas “hospital” e “letras”  semanticamente  apontam  para  o lugar  de “cura,” de “tratamento,  de reabilitação  de uma  vida literária   cheia de males, improvisações,  mandonismo  e imperfeições flagrantes.

  Para isso, não  poupa  por vezes  transmitir  suas  opiniões  em linguagem  desabrida, recorrendo mesmo  a  palavras,  não de baixo calão, mas  dispensáveis a um  livro  de artigos-ensaios.como são  ilustrativos  os vocábulos  “chacrinha, “cafajetismo,” “palhaçada,” “picaretagem”, “vigaristas” etc. Todavia, a seu espírito   visceralmente polêmico,  inconformado  diante de nossos  deficiências  culturais,  isso  tudo  não poderia   passar  incólume.         

   Daí a sua  maneira  beligerante  de  se contrapor  à estagnação de estudos literários e de uma vida literária  feita  amiúde de grupinhos, de camaradagem, de interesses  políticos subalternos, de favores,  de tráfico de influência,   de mistura com  um  arremedo      de vida intelectual.

  Qualquer desvio de conduta nos nossos  “mores” literários foi alvo    da crítica  contundente de Coutinho por longos  anos. Por isso,  chamara de “comédia da vida literária” ao primeiro  capítulo  de sua  obra. Obviamente,  nem  sempre  alguns   pontos de vista  expendidos  por ele  são  justificáveis, porquanto  num  panfleto,   como na  polêmica  acalorada,   os contendores  cometem  muitos erros e exageros, hipertrofiam  os defeitos  dos  seus êmulos, exageram na caricatura e se movem  pela  paixão       a ponto de  afirmar  exageros  e, ao final,  se tornarem   com frequência  parciais   e passionais. 

  A polêmica – cumpre-nos repisar neste capítulo -,   tem  essa dimensão  menor, esse lado  burlesco,   em que o polemista  perde-se   nos seus  sofismas e na sua capacidade  de    emitir   ideias  com equilíbrio e isenção.Contudo,  em No hospital  das letras,  sem dúvida há  juízos  ponderados,  equilibrados,  voltados  para  a moralização  de nossa vida  cultural e o que Coutinho  achava de ruim  nela se afirma como  denúncia  necessária, a nosso  ver,  tendo em vista  o  objetivo  de mostrar ao leitor daqueles anos do século  passado    como  não  deveria ser a vida  literária  no país.

  Quer  dizer,  Coutinho  combateu ferozmente as frivolidades do homem de letras sem qualificação, ou como ele  define,  do pseudo-intelectual,  dos arrivistas,  dos  “profiteurs”,  das mediocridades,  cuja meta era  galgar   posições  relevantes  na  vida  intelectual  nacional, ainda que  fosse  por  meios  pouco  escrupulosos.

  Lutou  com veemência  contra as falácias  perpetradas por  aquelas   nulidades, lutou contra  a fanfarronice,  a malandragem   da  subliteratura, a ausência de seriedade nos   estudos  literários e  no preparo  constante  exigido  por quem   se dedica  à produção  literária  de qualidade. Coutinho verberou  os malefícios  decorrentes de nossa  descontinuidade   no desenvolvimento  da  literatura brasileira  e dos estudos   literários, os quais   segundo ele,   sempre   lhe pareciam  estar  num  recomeço estéril  por falta  de  continuidade, de metas,  de projetos,  de  melhoramento  e de atualização.

  Para ele,  o país   carecia de valorizar devidamente os que realmente  produziam algo  de  alto  nível no campo  literário, e nos estudos   teóricos embasados  em técnicas,  metodologias, bibliografia   atualizada e  em estudos   sintonizados  com   o que  de mais avançado   se ensinava  e se  transmitia  nos países  adiantados, tal como ele  viu  na sua permanência  em solo   norte-americano, nas suas melhores  universidades onde figuras eminentes  da Europa  ali  lecionaram.

  A abrangência de seu panfleto resumia-se no  combate sem trégua às deficiências de nossa   cultura, de nosso  ensino,  da necessidades de aperfeiçoamento  de  nossas   Faculdades de Filosofia e, particularmente,  dos seus cursos de Letras

  Na sua luta contra a  estagnação literária  e espírito  crítico  ainda  apegado  ao  impressionismo, entre  tantas outras mazelas, Coutinho   se refere aos chamados   prêmios  literários  concedidos a escritores em concurso  com todos  os vícios e desmandos  de seus julgadores, onde não havia  por vezes   a mínima lisura, mas o  domínio deletério do capadócios   e cabotinos da vida literária deblaterado  por ele com  muito vigor como podemos   perceber da citação  seguinte:

         É fácil comprovar sempre os resultados da cobiça na disputa nojenta em torno dos  prêmios. Candidatos a um prêmio que são, ao mesmo tempo, juízes no outro; barganhas; cálculos; acordos; bate-bocas; cavações; transigências; faltas de critério e idoneidade pra  julgamento; de tudo o que a literatura  está ausente[15] . 

            

  É nesse diapasão de crítica ferina acerca das nossas   imperfeições  culturais que Coutinho desenvolve seus  comentários e reflexões, suas análises da vida literária brasileira. Fustiga, sim,   os nossos  defeitos culturais, mas apresentou  soluções de melhoramentos. Não ri -  como   se faz na comédia, segundo   o conceito de Sêneca, para  castigar  os costumes, antes  castiga  para  corrigir  as mazelas,  então dominantes  na vida literária,   feitas por  suas figuras em evidência, i.e.,   fantoches  posando  de escritores. Seus ataques ferinos desbancam as “bombochatas” (termo  empregado  por ele) de nosso  cenário  literário de fancaria.

. Não  se utilizou, a não ser no  último capítulo  de No hospital das letras, do estilo satírico  camiliano ou  do modo brincalhão-carnavalizado  de Agripino Grieco que,  por sinal,  é duramente  criticado  por Coutinho num artigo em defesa de Machado de Assis.[16]                    

  O que  expusemos até aqui, por assim dizer,   constitui o cerne  da visão  de Coutinho acerca da vida literária no período que se propôs analisar. Seu objetivo foi  dissecar, através do tom  polêmico, o mapa  humano  da deplorável   realidade de  parte  considerável  de quem  se definia como  escritor no interregno recortado  por Coutinho.

  O autor age no livro  como doutrinador de suas ideias, divulgando  o seu pensamento  crítico, sua visão aberta do fenômeno  literário,  pondo sempre  como  condição   fundamental  o  valor estético da obra  literária. Revela-se, assim  cumpre reafirmar - um pedagogo do ensino da literatura, o qual  para ele deveria  passar  do amadorismo (provavelmente naquela  mesma acepção usada  por Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) [17] para   uma fase  madura  de disciplina  a ser  lecionada  com método, base científica  e rigor  de pesquisa,  de análise  e interpretação, de revisão bibliográfica (a que sempre deu inestimável  importância em toda a sua obra) e de uma  nova  abordagem   a que  denominou Nova Crítica, aspecto que  aprofundaremos ainda  neste  estudo. 

  Compõe-se No hospital das letras  de 37  pequenos  capítulos, todos  girando  em   torno   de temas correlatos desvelando  os bastidores e os desvãos da vida intelectual  brasileira. O panfleto, pela sua amplitude de assuntos levantados, em resumo,  visa  a discutir a falsidade de nosso  hábitos de estudos,  o pseudo-intelectualismo, o ensino de literatura ultrapassado e ineficiente, os erros de nosso  ensino  superior de letras, a introdução de novas abordagens   crítico-interpretativas,   a história  literária feita em geral sem critérios e metodologias que  priorizassem   a obra literária e não  a vida literária.

  Coutinho, apesar da maneira em geral  com  que ataca de forma desassombrada  as mazelas  da nossa vida  e vícios  literários, escreve   excelentes  passagens dignas  de   meditação pela justeza  e  domínio  dos temas  ventilados, como,  por exemplo,  a bela  página  que é o artigo “Ascese do Isolamento,”[18] uma espécie de nobre  desabafo  memorialístico pelo que  passa o  verdadeiro escritor que  não se submete às igrejinhas do “imperialismo  da vida literária”[19] e à ilusão efêmera  de  glórias  “de pés de barro.” O escritor  honesto,  estudioso,   não faz parte  desses grupinhos   que só visam  ao lucro  financeiro  ou  publicitário.

  O isolamento  que sofre desses   grupinhos, dessas ‘coteries’ assim  definidas  por Coutinho,  de camarilhas  literárias  que o desprezam e  o afastam,  não lhe dando,  nos primeiros anos de contato com a vida  intelectual  do Rio de Janeiro,  a mínima chance  de  ser  reconhecido,  de poder  participar  com seriedade  de uma vida literária   sadia  e  composta  de intelectuais   comprometidos  com  a produção  de qualidade e com  o  progresso de nossa  literatura.

  Como exemplos históricos de vítimas dessas mesquinharias  de grupelhos   detentores  de privilégios  e ascensão  na vida  literária, no século XIX,   Coutinho cita o  nome do próprio  Imperador  D. Pedro  II que  hostilizara   José de Alencar; no  século XX, são exemplos os escritores  Otávio de  Faria e Cornélio Pena.[20] A seguinte citação de Coutinho  não só  se ajusta   à situação dele próprio  como  crítico recém-chegado  à vida  literária carioca, mas também a de inúmeros  outros  escritores que não liam pela  cartilha  das igrejinhas da época, dos detentores do “imperialismo  literário,” expressão  usada  por Coutinho:

  Não há outra alternativa: ou contemporiza e se integra às suas malhas, então aufere as vantagens em termos de lucro financeiro e gloríola; ou resiste, isola-se, não dá confiança e ficará  sempre um marginal, olhado com  desconfiança, malquisto, hostilizado, sabotado, esquecido propositadamente, não reconhecido nos seus méritos e trabalhos.[21]

                           Consoante havíamos anunciado  anteriormente no presente capítulo,  o  derradeiro  artigo, “O Impostor,” destoa  totalmente  dos precedentes, i.e., até o artigo “Os parasitas da Literatura”[22] Explicaremos por quê. Nestes  textos de No hospital das letras, segundo já sublinhamos,  definidos  pelo  próprio  autor como  “panfleto,” existem  pontos de vista com os quais  concordamos e outros de que  discordamos. Isto é uma  postura natural de quem os analise e,  por outro lado,  não seria de nossa parte  correto   afirmar que estaria nos planos de Coutinho  achar que   seus textos   reunidos em  No hospital das letras  só encontrassem  ressonância  favorável  do leitor.

  Por  exemplo no tópico - literatura e política -  levantado  por Coutinho, ele  observa que, por exemplo,  professores  universitários  de letras,  ou escritores  em geral, deveriam  se restringir às suas  funções específicas,  ou seja,  às tarefas  relativas aos estudos literários,  sem  se intrometer  diretamente e nos embates  da  política.

  Esta  posição de Coutinho  pode, a princípio, parecer  absenteísta ao leitor de hoje no que tange ao posicionamento do crítico sobre   vida  política  brasileira ou  do mundo. No entanto,   com respaldo na obra Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura que, para o autor deste estudo, significa o melhor   ensaio no gênero, espécie de  biografia  intelectual  de Afrânio Coutinho, não obstante tenha seu  tanto  de louvor   afetivo, torna-se  pesquisa   decisiva para  situar  o pensamento do  crítico  baiano, o seu percurso  intelectual e parte considerável  de sua biografia.

   Os capítulos “Uma vocação,” “A experiência  jornalística” e “Jornalismo e literatura” da obra Afrânio Coutinho – uma filosofia da literatura“[23] são suficientes a fim de mostrarem o papel  saliente  de Coutinho na esfera da relação  entre  jornalismo, literatura e pensamento  político.

  Todo esse material  produzido em jornais e vistas  sobre questões  políticas,  filosóficas, religiosas,  históricas e literárias  em plena mocidade em Salvador, forma  uma farta documentação  ao pesquisador  que  aspire  a enveredar por  estudos  mais  específicos sobre o pensamento  político e literário de  Coutinho.

  Podemos  adiantar, em síntese,  o seguinte: Coutinho teve intensa  atividade  jornalística em Salvador nos anos de  1930, era católico, foi anti-integralista, passou por fase de  hesitações que o levariam por algum  tempo a pensar-se ateu, mas foi  salvo  por um  retomada   de linha  de pensamento filosófico-religioso,  de estofo  católico,  graças, a nosso ver, sobretudo  a leituras  do filósofo  Jacques Maritain.       

  O que  discutimos até aqui, constitui em nosso  juízo, o cerne  da visão  de Coutinho acerca da vida literária no período que se propôs analisar. Seu objetivo foi dissecar, através do tom  polêmico, o mapa  humano  de  parte  considerável da deplorável realidade  brasileira  de quem  se definia como  escritor no interregno recortado   pelo  crítico.

 

[1] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,  1963. Vera “Introdução” de Coutinho, p. 25.

[2] FERREIRA, Joaquim. História da literatura portuguesa. 4. ed. ver. e atual. pelo  autor. Porto: Domingos Barreira, 1971, p. 488-493.

[3] Idem, p.490.

[4] Ver verbete:  MELO, D. Francisco Manuel de.  In: PRADO COELHO, Jacinto do. (Dir.)  Dicionário de literatura. Op.cit., p.  621.

[5] Idem, ibidem, p. 622-623.

[6] RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1950, p. 310-313.

[7] PRADO COELHO, Jacinto do (Dir.). Dicionário de literatura. Op. cit.,   p. 621.

[8] RAMOS, Feliciano. Op. cit., p. 313.

[9] Idem, p. 312.

[10] BROCA,  Brito. A vida literária no Brasil- 1900. 3. ed. Rio de Janeiro: 1975, p. 199.

[11] BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1990,  op. cit., p.199.

[12] COUTINHO, Afrânio. Op. cit., p. I-XXIII.

[13] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras, op. cit., p. 35.

[14] Idem, p. 27.

[15] COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras, op. cit., p. 37.

[16] COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros  ensaios.

[17] AMOROSO LIMA, Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira,  op. cit., p. 148-149. A reflexão do grande crítico Alceu  Amoroso Lima deu-se a propósito da  constatação  do  que ele tinha da sua geração de críticos  diante   da inestimável contribuição de Afrânio Coutinho na mudança de rumo da crítica literária  brasileira, com a sua crítica estética e a sua proposta do New Criticism. .Amoroso Lima inclui Coutinho na segunda geração modernista, mas sendo um dos  “representantes  mais significativos da crítica neo-modernista,” à qual se juntariam as  gerações mais novas  e “várias tendências,” com nomes como  Eduardo Portela, Ledo Ivo, Oswaldino Marques, Antônio Houaiss, Franklin de Oliveira, Fausto Cunha, Heron de Alencar, Othon Moacyr Garcia, entre outros. Amoroso Lima inlcuiria, na segunda fase modernista, os críticos Otto Maria Carpeaux, Álvaro lins, Roberto Alvim Correia, Antonio Candido, Temístocles Linhares, Afrânio Coutinho, Augusto Meier, Eugênio Gomes. Estes,  segudo  ele, “(...)  já anunciam a crítica neo-modernista (...)”  de então, i.e., da segunda metade do século  passado, data da publicação  Essa inlcusão de críticos  de certa maneira, mostra-se um tanto ambígua quanto a rotulações.Por outro lado, no exemplo de Coutinho, teríamos,  assim, um crítico da “segunda geração  modernista”, porém figurando como um “nome” central da crítica  neo-modernista. o que deixa, assim,  algo ambíguas as inclusões  e seus rótulos. Na realidade,  a nosso ver,  Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) aludia à sua  própria geração,  representante do “amadorismo” crítico, quer  dizer,  de  figuras que não  possuíam, em geral,   uma formação  técnica  no cmapo literário, de críticos oriundos dos cursos  de    Letras em universidades, em cursos fora do país, não de bacharéis, por exemplo em direito ou de  outras carreiras. A constatação do “amadorismo” de  Amoroso Lima, em nosso  juízo, soa mais como uma  figura de retórica, em que um ilustre crítico, ele próprio, professor universitário de renome,   se vê em relação aos mais novos, férteis em ideias e em disposição de  mostras perspectivas  estéticas que iam surgindo.

[18] COUTINHO, Afrânio. No hospital de letras, op. cit., p. 141-144.

[19] Idem, p. 142.

[20] Idem, p. 142-143.

[21] Ibidem.

[22] Idem, p. 175.

[23] BELÉM, Odilon. Op. cit., p. 17-112.