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Fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente.
João Guimarães Rosa
Era uma noite quente. Opressiva. Os lençóis colavam-se ao corpo, tornando a cama um lugar desconfortável, incômodo.
- Esse maldito calor não me deixa dormir – pensou inquieto.
Sentindo sede, decidiu levantar. No escuro, e em silêncio, foi até a cozinha. As paredes da casa escaldavam. O ar pesado só aumentava a sua indisposição.
- É esse maldito calor! – voltou a pensar.
Na cozinha abriu a geladeira buscando a garrafa de água gelada. Bebeu direto do gargalo, um grande gole. Um sentimento de culpa fez com que olhasse em volta:
- Mário, pelo amor de Deus, deixa de ser porco, pega um copo!! – parecia estar ouvindo Ângela.
Sorriu. Que bobagem a sua. Era madrugada e Ângela estava dormindo como um anjo no quarto. Com uma expressão de desafio bebeu, direto da garrafa, mais um longo gole de água gelada.
Um barulho vindo da sala interrompeu esse momento de rebeldia. Ao contrário do que imaginara, Ângela tinha despertado e já o estava procurando. Nervoso, limpou a boca da garrafa, devolvendo-a a geladeira. Não queria deixar provas do “seu crime”.
Ainda no escuro foi até a sala para descobrir a origem do ruído. Ela estava vazia. Suando, resolveu abrir uma janela. Quando olhou para fora, viu um céu absolutamente negro, sem uma única estrela.
- Vem temporal por aí. Também, com esse calor, só podia – concluiu, lembrando-se de todos os compromissos do dia seguinte. Odiava ter de sair com chuva.
Um ruído chamou, novamente, a sua atenção.
- Só pode ser o gato! Aquele bicho vive rondando, agindo como se fosse o dono da casa! – pensou com raiva.
No entanto, ao virar-se para dentro da sala, viu, em vez do gato, um homem sentado na sua poltrona preferida. Em silêncio, ele o olhava. Mário sentiu o coração bater mais rápido.  
- Meu Deus! É um ladrão! – concluiu em um segundo.– E se ele estiver armado? –  E sem querer olhou na direção dos quartos. – Ângela?!
O desconhecido, finalmente, saindo da sua imobilidade, apontou para a outra poltrona, indicando que ele se sentasse. Apavorado, Mário obedeceu.
- Calma, Mário. Não te preocupa com a Ângela. Ela não acorda tão cedo – disse o homem.
- O que você quer? Se for um assalto, já vou dizendo que aqui tem muito pouco para ser roubado, mas pode levar tudo, só não machuca ninguém – declarou, controlando a muito custo o medo e sem perceber que o homem o havia chamado pelo nome.
- Não sou ladrão e não tenho a intenção de ferir ninguém. Estava apenas passando e resolvi entrar. Só quero conversar – explicou o estranho.
- Conversar?! Sobre o quê, se nem te conheço? E a essa hora da noite? – desesperou-se Mario com o absurdo da situação.
- Sabe, a vida é curta, muito curta, mas a gente só percebe isso quando não se tem mais tempo para ela – disse com calma o homem.
Mário ouviu sem acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Só podia ser uma brincadeira de mau gosto. Estava com um estranho – quem sabe um assassino psicopata – na sala da sua casa, em plena madrugada, querendo “filosofar”.
Enquanto isso, o desconhecido, num movimento inconsciente, levou a mão direita à boca, mas no caminho interrompeu o gesto.
- Tens um cigarro? Há tempo não fumo. Gostaria de fumar.
- Não, aqui em casa ninguém fuma – respondeu seco.
- Fazem bem. O cigarro é uma maldição. Tentei largar várias vezes, mas nunca consegui. Era um dos meus vícios.
- Era? – perguntou Mário, sem querer.
- Sim, era. Agora não fumo mais, mas gosto de ficar perto de pessoas que fumam. Sentir o cheiro. Fumar por tabela. Sabe como é? Porém, até isso se tornou difícil. Quase não encontro gente disposta a compartilhar um cigarrinho.
- O fumo faz mal para a saúde – balbuciou Mario.
- Houve uma época que eu não tinha medo de nada – disse o homem, ignorando o comentário. – Tudo era presente, o futuro não existia. Fumar, trepar, ir a festas, beber. Eu fazia de tudo um pouco. O tempo não existia para mim. Eu era o senhor do tempo! – falou com animação. – Mas, o tempo existe e um dia cobra o preço. E não adianta fugir, a gente tem de pagar. Veja o meu caso, eu paguei, não tive outro jeito. Paguei.
- Pagou o quê? Para quem? Não estou conseguindo entender o rumo dessa conversa.
- Puxa Mário e eu achando que estava sendo claro. Estou falando da vida, Mário. Da vida! Da minha vida, da tua vida, da vida de todos! É tão bom viver! Tão bom... Não sabes como. O problema é que passamos a maior parte do tempo correndo atrás do desconhecido, do inatingível e quando nos damos por conta, tudo se acabou.
- Que conversa mais idiota! – irritou-se Mário. – Afinal, qual o significado desse papo de botequim?
- Papo de botequim? Quanta falta de sensibilidade! A Ângela tem razão quando diz que não compreendes as coisas simples da vida. Que pena, Mário. Pensa em tudo que estás perdendo sendo tão certinho.
- Não coloca a Ângela no meio dessa conversa! Ela não tem nada a ver com essa loucura!
- Está bem, nada de Ângela. Mas vê se te esforça um pouco para entender o que estou dizendo, senão, vai ficar difícil.
- Me esforçar? Para entender o quê? – revidou Mário, dominado por uma raiva que há muito tempo não sentia.
- Calma. Calma. Não quis ofender, é que...
O homem de repente parou e olhando através de Mário, disse sério:
- Como falei antes é o tempo. O nosso acabou. Tenho de ir. Procura, no entanto, pensar um pouco no que conversamos. Pensa na vida e em como ela pode ser boa. E, mais uma coisa, aceita esse meu último conselho: não bebe mais direto da garrafa, usa um copo.
Espantado, Mário viu o desconhecido desaparecer. Nesse momento alguém o sacudiu de forma violenta. Quando abriu os olhos, se deparou com Ângela olhando-o incrédula.
- Pelo amor de Deus Mário! O que fazes aqui na cozinha a essa hora da madrugada? Aconteceu alguma coisa?
Mario aturdido olhou em volta. Estava na cozinha. Como é que fora parar ali?
- Está tudo bem. Mas, Ângela, escuta, havia um homem na sala e ele...
- Homem? Na sala? – interrompeu Ângela furiosa. – Mario o que tem nessa garrafa?  
- Nada! – disse Mario nervoso. – Escuta Ângela, o homem estava aqui na sala e...
- Chega Mario! – ela voltou a interromper – Vai para cama dormir que daqui a pouco amanhece e todos precisam trabalhar.
- Mas... – tentou novamente Mario.
- Nada de “mas” – cortou furiosa. – E pela enésima vez: NÃO TOMA ÁGUA NO GARGALO DA GARRAFA, SEU PORCO!

Nesse momento, Mario percebeu que ainda estava com a garrafa de água na mão. E sem nenhum copo.