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[Dílson Lages]

Do amigo escritor Ronaldo Cagiano, chega-me e-mail acusando recebimento de livro recém-lançado: é mais que  um agradecimento cortês; um acaso das boas surpresas desenhadas pelo destino. Acasos nos tomam às vezes tão sucessivamente que não sabemos explicar se  havia na encruzilhada do caminho um anjo bom apontando a direção a seguir ou a mais certeira intuição, esparramada no céu, pronta para dizer onde firmar os pés.

Transito em Minas, a estudo, e por que não, para diminuir o tamanho do domingo, também a passeio, exatamente em semana na qual o amigo escritor  mineiro deixa o ofício do pão de cada dia; o escritor que vive na epiderme, mesmo em habitando outros chãos, vive o inconsciente de Cataguases, para onde o destino, e não sei se o acaso, leva-o nas férias de que parece desfrutar. Leva o destino também, na mochila do poeta-contista, O morro da casa-grande.
 
É por acaso, ou por causa dos livros, que o fim de tarde se desdobra em nova companhia, depois de longo dia de reflexões sobre os descaminhos das palavras em sua expressão metalingüística de vozes bem-digeridas ou de indigestas teorias, que servem para tudo e ao mesmo tempo para nada... Pois é na tarde de teorias, que ri, escondidinho sobre a mesa de livros expostos uma obra brilhante em formato e projeto gráfico inusitados – Pequeno dicionário de solidões.
 
Besouros se espalham sobre o ventilador no vermelho do papel. As folhas se revestem de azul. É ele que vou levar, e ponho, largada sobre a mesa, novela cuja história recém-descoberta, deixara em mim impressão de novos aprendizados. Abro a capa, como se abrisse uma caixinha de presentes, porque a capa não é apenas uma capa, mas um pasta, digo melhor, uma capa que é pasta, bem assemelhada a essas pastas em que guardamos o que não queremos perder, com o elástico preto a dar voltas em torno da outra extremidade e a impedir a queda das palavras sobre alguma mesa, sobre algum chão.
 
Abro-o e fecho-o, vejo a dimensão dos textos e os tateio o sentido, lendo baixinho um parágrafo e as impressões de leitura, as quais se sente pelo ritmo da voz. Fecho o livro e o acaso. O nome do autor, o nome quase escondido no tamanho da obra, na impressão do acaso; o nome, pequeno, para o autor sabidamente grande  – Ronaldo Cagiano.
 
É ele que leio – é ele que li, para minha euforia  – em meio ao acaso dos textos-bússolas aquilo marcado num de seus e-mails: “Minas não termina”. Em seu livro redescubro a lição da tarde na história da cidade: como organismo vivo do corpo social. A cidade. Também a lição. São João Del Rei-Tiradentes, na vivência de um passeio concreto, e os personagens vivos de Cataguases se agigantando nas serras protetoras. As serras protegendo a viagem do domingo, acaso como se, paradoxalmente, esperando estivesse por mais um passageiro do trem veloz, do trem-vida, em movimento oposto às bitolas únicas da Maria fumaça em que me acomodo.
 
Nas paginas das solidões, amalgamadas por Cagiano, traço rabiscos de anotações. Viajo por um texto sutil, leve e inesperado – como os acasos que me tomaram de súbito os derradeiros dias. Contos que buscam situar, esteticamente, a cidade do ponto de vista físico, social e psicológico, seja Cataguases – a terra natal –, seja Brasília, sejam outros espaços. Viajo, em companhia de Kafka ressuscitado e de outros escritores, pelas sensações e detalhes de “uma cidade pequena, mas avançando em suas rupturas”. Geografias acidentadas e costumes que o tempo guardou.
 
Aparecem-me as sombras da leitura nas imagens dos templos e ladeiras. Na ponte de pedra de São João Del-rei, nas mãos que vão acenando quando, bucólica, a paisagem se movimenta no compasso do cheiro de combustão e passado, nos trilhos e vagões lotados de almas e carnes. Tirandentes é a tranquilidade guardada entre paredões de uma serra que esconde as perfeições da natureza. Charretes em cavalgada. Ruas e casas na elegância sutil do século XVIII.
 
Se Ouro Preto conservou a suntuosidade e a luta sufocante pela liberdade, entranhadas nas nuvens balançando os templos, Tiradentes quis parar o tempo e sobrepor a natureza a todos os ditames. Se o trem de Ouro Preto é o imprevisível das alturas e a incerteza de uma paisagem de túneis e cachoeiras, em Tiradentes, os trilhos seguem as curvas do rio, o gado, a fazenda e a serenidade parada nas árvores.
 
Minas, como disse Cagiano, “não termina”. Não terminam sobretudo, as riquezas naturais e históricas. Mas, para descansar os olhos ou passar a página do dia, fecho o livro e as viagens, como o poeta-contista Ronaldo Cagiano, “com a ânsia estética de mudar o mundo”, de fazer da palavra “um eterno libelo contra o mundo que nos coube”.
 
(Na foto, Dílson Lages no adro da Igreja de Santo Antônio, em Tiradentes-MG)