Mercedes Sosa, a Cigarra Negra

Faleceu hoje, domingo, 4.10.2009, em Buenos Aires, de causas naturais, a grande cantora argentina La Negra, alcunha recebida em razão da cor de seus cabelos. Nesta mensagem, Mercedes Sosa é também chamada, respeitosamente, de La Cigarra Negra [a letra da música "Como La Cigarra", que ela interpretou, está reproduzida ao final].

A seguir, homenagem à memória de La Negra.

O Brasil é verde em música de Armando Tejada Gómes y César Isella, "Canción con todos", que Mercedes Sosa cantou:

"Canción con todos (tradução)
Mercedes Sosa
Composição: Armando Tejada Gómez y César Isella

Saio a caminhar
Pela cintura cósmica do sul
Piso na região
Mais vegetal do tempo e da luz
Sinto ao caminhar
Toda a pele da América em minha pele
E anda em meu sangue um rio
Que liberta em minha voz
Seu caudal

Sol do alto Peru
Rosto Bolívia, Estanho e solidão
Um verde Brasil beija a meu Chile
Cobre e Mineral
Subo desde o sul
Rumo a entranha América e total
Pura raíz de um grito
Destinado a crescer
E a estourar

Todas as vozes, todas
Todas as mãos, todas
Todo o sangue pode
Ser canção no vento

Canta comigo, canta
Irmão americano
Liberte tua esperança
Com um grito na voz"

(http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/11/211806/p1).

La Negra Mercedes Sosa interpretando "Canción con todos":

http://www.youtube.com/watch?v=_kJaMi0OVf0.

Fala-se muito de fábulas e de animais, nesta coluna. Assim, não é estranho que se transcreva, por ocasião do falecimento de Mercedes Sosa, o artigo, escrito há quase dois anos, no qual o jornalista Vitor Hugo Soares (Blog do Noblat) fala com admiração sobre La Negra: "(...) 'Cantando al sol,/ como la cigarra/ después de um año/ bajo la tierra/ igual que sobreviviente/ Que vuelve de la guerra'. Desta vez, o mergulho de Mercedes foi mais longo do que uma simples estação. Aparentemente também, muito mais dolorido para a sua alma sensível (...)".

Segue-se o artigo.

 

"Ela (Mercedes Sosa) e elas

 

                                                                                                                                                  Vitor Hugo Soares

Miro a Cordilheira dos Andes e os altiplanos do México, enquanto no Atlântico Sul o tucano Fernando Henrique Cardoso sai do silêncio temporário e abre o bico em nova arrelia contra o seu sucessor no Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva, ao sugerir que o governante petista detesta a educação, 'a começar pela própria'. O novo bafafá já se propaga pelos blogs - a começar por este do Noblat -, com a dura resposta do ministro petista Tarso Genro, e a briga, nem sempre em tons exemplares, promete ser das boas.
 

Acontece que ando meio saturado dos freqüentes ataques de ciumeira dessa relação tumultuada de amor e ódio entre  FHC e Lula. Desvio a atenção para o suplemento cultural da edição 'on-line' do jornal chileno “La Tercera”. Ali encontro uma  notícia que espero há quase 10 anos: a cantora argentina Mercedes Sosa superou finalmente a enfermidade que a obrigou a um longo afastamento dos palcos e volta a espalhar pela América Latina, o seu canto inimitável, na série de apresentações pelo continente iniciada ontem na Cidade do México.
 

Em seu giro , Mercedes apresenta o espetáculo 'Gracias a la Vida', considerado pela crítica como um canto de louvor e entusiasmo renovado de quem sai de depressivo e prolongado fundo de poço. A amiga de Milton Nascimento e dos estudantes pode soltar o vozeirão outra vez em 'Como la cigarra', para mim uma de suas mais emblemáticas e comoventes canções.
 

'Tantas veces me mataron, tantas veces me mori,/ Sin embargo estoy aqui, resucitando'. Imagino à distância essa música se espalhando pela noite da capital mexicana neste final de semana, como tantas vezes vi os garotos e adultos de Buenos Aires fazerem na saída de teatros e casas de discos, quando a artista estava no auge. E como eu próprio me vi fazendo nos anos 70, em meu primeiro show com a argentina de Tucuman, em histórica noite no Teatro Castro Alves, em Salvador.
 

“Cantando al sol, como la cigarra/ después de um año bajo la tierra/ igual que sobreviviente/ Que vuelve de la guerra”. Desta vez, o mergulho de Mercedes  foi mais longo do que uma simples estação. Aparentemente também, muito mais dolorido para a sua alma sensível.

Nos últimas décadas ouvi muito e vi de perto algumas vezes está que é uma das minhas cantoras preferidas. A última vez que estive próximo dela foi há cerca de dois anos, em Buenos Aires, quando Mercedes compareceu a uma apresentação do espetáculo em que o cantor e compositor Victor Heredia  celebrava 30 anos de carreira em um teatro de Corrientes, no coração da capital portenha. Foi uma noite inesquecível, até mesmo pelo que deixou de acontecer, como a prevista canja da cantora.
 

Na platéia, Mercedes demonstrava profundo abatimento físico e parecia extremamente deprimida. Não subiu ao palco. Heredia pediu desculpas ao público e explicou que ela estava  'muito gripada e afônica', impedida de cantar. Agradeceu a presença da cantora no teatro, mesmo doente, e a casa quase vem abaixo de aplausos. Guardei comigo a impressão de que, no corpo e na mente da artista, se escondiam bem mais que um simples resfriado. E conservei a esperança de que, fosse o que fosse, seria passageiro.
 

Em sua ressurreição, constato agora com alegria que Mercedes Sosa não só voltou à superfície como manteve o prumo. De longe, a impressão é de que ela segue íntegra e fiel ao que sempre foi ao longo de toda a carreira. Quinta-feira, na véspera da primeira das três apresentações que fará no México – a última será neste domingo em Guadalajara –, convocou jornalistas para uma entrevista coletiva e aproveitou para fazer uma convocação política às conterrâneas da revolucionária Fryda Kallo: “As mulheres deste país devem sair a ganhar eleições, porque sabem o que custa manter a casa e manter o trabalho”.
 

Aos 72 anos, a intérprete que fez de “Coração de Estudante” um hino também da América Latina, chama a atenção para o bom momento das mulheres na política atual. Citou fenômenos como as mandatárias do Chile, Michelle Bachelet; da Alemanha, Ângela Merkel, e de sua conterrânea Cristina Kirchner, que tomará posse na Argentina nos próximos dias. Até ontem, pelo menos, Mercedes Sosa parecia desconhecer que o presidente Lula começa a colocar na fila dos nomes fortes à sua sucessão - o da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef.
 

Em sua passagem pela Cidade do México, a caminho de Santiago do Chile e de outras cidades da América Latina onde levará o show Gracias a la Vida, Mercedes Sosa rende um tributo especial aos estudantes mortos em 1968, no trágico massacre na Praça das Três Culturas de Tlatelolco, ocorrido em 2 de outubro de 1968, dias antes do início dos Jogos Olímpicos do México. Segundo grupos de direito humanos, o massacre deixou uns 300 mortos, a maioria estudantes, como registrou na época a premiada repórter Oriana Falacci nas reportagens que produziu dentro do olho do terremoto.
 

A cantora argentina fala da enfermidade, que a obrigou a recolher-se por longa temporada: 'Cheguei a estar muito grave, em 97 os médicos entravam e saiam de minha casa sem saber o que eu tinha'. Mas aproveita para desmentir a quem anda espalhando por aí que este seja o seu giro de retirada dos palcos: 'Nada disso', reage. Bemvinda, Mercedes! Siempre" (Vitor Hugo Soares, Blog do Noblat, 24.11.2007, http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=81705).

 

Um bom pensamento à alma de Haydée Mercedes Sosa,

La Negra, ouvindo-se "Canción con todos" na voz de um

coral latinoamericano, com cantores segurando, ao fim da

interpretação, pequenas bandeiras, cada uma delas de um 

país da Latinoamérica [gravação em Paris, França, junho de

2003]:

http://www.youtube.com/watch?v=Y4mY3UXM0I0&feature=related.

 

Mercedes Sosa morreu,

A Cigarra Negra  vive!

Flávio Bittencourt, 4.10.2009, Brasília

 

"Como La Cigarra

Mercedes Sosa

Composição: María Elena Walsh

Tantas veces me mataron,
tantas veces me morí,
sin embargo estoy aquí
resucitando.
Gracias doy a la desgracia
y a la mano con puñal,
porque me mató tan mal,
y seguí cantando.

Cantando al sol,
como la cigarra,
después de un año
bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.

Tantas veces me borraron,
tantas desaparecí,
a mi propio entierro fui,
solo y llorando.
Hice un nudo del pañuelo,
pero me olvidé después
que no era la única vez
y seguí cantando.

Cantando al sol,
como la cigarra,
después de un año
bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.

Tantas veces te mataron,
tantas resucitarás
cuántas noches pasarás
desesperando.
Y a la hora del naufragio
y a la de la oscuridad
alguien te rescatará,
para ir cantando.

Cantando al sol,
como la cigarra,
después de un año
bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra"

(http://letras.terra.com.br/mercedes-sosa/63295/).