[Mária do Rosário Pedreira]

Na capa, há uma burqa azul-clara pendurada num gancho numa parede de uma divisão aparentemente vazia. Se não me engano, trata-se de uma embaixada abandonada no Afeganistão, talvez a francesa, e ninguém sabe o que fazia lá aquela vestimenta, a menos que um dos funcionários diplomáticos tivesse um caso secreto com uma afegã. De qualquer modo, a coscuvilhice não é para aqui chamada, mas a burqa é importante porque, em Maldito Seja Dostoiévski, de Atiq Rahimi – o livro que aqui me traz hoje –, há uma mulher misteriosa que o narrador viu de costas vestida de azul-claro num dia muito especial e que reaparece de vez em quando ao longo da narrativa, seja nos sonhos, seja na realidade do terrível quotidiano do pobre Rassul, mas sempre a fugir. E o dia da sua primeira aparição foi especial porquê? Bem, Rassul queria livrar a namorada de uma patroa autoritária que a escravizava, mas, quando já tinha o machado bem a jeito junto do pescoço da velha, lembrou-se de Crime e Castigo, de Dostoiévski – e a coisa saiu-lhe para o torto. Só que, no Afeganistão presente, ler os russos cai mal – e tê-los na «estante» é um problema suplementar para quem já estava metido numa alhada das grandes. Diferente de quase tudo quanto li até hoje e francamente desconcertante, este romance do afegão que escreve em francês e já ganhou o Goncourt é, segundo a crítica, o ponto mais alto da sua carreira.