Luiz Filho de Oliveira: "Envite aos vates assinalados a jogar  o chiste abaixo assinado"(4)

  

 

Qualquer  obra pressupõe obras* antecedentes,contemporâneas e consequentes (Fábio Lucas,  in: Razão e emoção literária )                                                 

 

 

 

Cunha e Silva Filho

 

 

 

          Na sétima estrofe, ao pôr ludicamente em dúvida a capacidade crítica de Juó Bananère (1892-1933),[11] pela irradiação operada no próprio signo do pseudônimo do “alegre e parodista” poeta, no dizer de Otto Maria Carpeaux,[12]  o eu  poético remete o leitor ao estilo de um dialeto ítalo-português-macarrônico, muito apreciado pelos leitores de sua  época. Seu alvo crítico aponta para os aspectos linguístico-estilísitcos anti-parnasianista de Olavo Bilac  e para uma reflexão interpretativa da condição do imigrante  paulista de extração burguesa mas de hábitos  vinculados  à Europa, Londres,  por exemplo, com a sua indumentária típica mimetizada pelo novo  imigrante em  ascensão social e pelas próprias instituições nacionais.[13] Da mesma forma que nas estrofes  precedentes e dentro do que  mencionei anteriormente sobre o lado erótico que permeia quase o  poema na sua inteireza, o eu  poético não mede seus  limites  de  sustentar-se no emprego hipertrofiado erótico-escatológico.

Alguém teria dúvida de que Juó  Bananère não  usaria seu pensamento mordente  a fim de levar sua linguagem ao limite de suas capacidade criativa na persona do eu  poético infenso aos cânones vigentes do  impassível e heráldico Parnasianismo?

 Bananère já dava indícios de espírito subversor dos padrões literários de então. Seu caminho  o empurrava seguramente para  as novas  formas  de liberdade  da poesia e de outros gêneros literários a eclodir plenamente e com  espírito  agressivo e demolidor  na Semana de Arte Moderna realizada no Theatro Municipal de São Paulo -  evento  emblemático do Modernismo de 1922. Bananère,  não  custa afirmar,  não  aderiu diretamente ao movimento Modernista, que, ainda em vida,  acompanhou,  porém,  conforme  anota Valter Wey, “.. preparou-lhe o terreno, através de suas  sátiras desmoralizadoras.” Na imprensa  paulista  “... gozou de enorme popularidade no tempo...”, acrescenta  esse autor.[14]

 

Na  oitava  estrofe, entra em cena a figura polêmica, multifacetada,   e contraditória de Oswald de Andrade (1890-1954) sob a perspectiva interrogativo-exclamativa de uma incomum condição de “pastor” de “ovelha chamorra,”

Num ambiente periférico, a dúvida sobre essa condição anacrônica que  remontaria aos  poeta árcades brasileiros, cultores de um pastoralismo,  pregando  os lemas do “Inutilia  truncat” e da “Aurea mediocritas,”  apoiados ideologicamente no Iluminismo, no fundo histórico da Grécia  Antiga e da Arcádia, com a sua criação de academias espalhadas por toda a parte e com ramificações cronológicas que vêm  até os nossos dias,  com as suas  correspondentes adaptações e atualizações exigidas   pela contemporaneidade, o nome de Oswald de Andrade nada tem a ver com esses antigos   poetas  vivendo os ócios  em meio a uma  Natureza artificial e decalcada em  seus espaços físicos  em parte voltados, no século  XVIII,  para a Europa, tanto do modelo   lusitano quanto  bem remotamente,  dos velhos  tempos dos  bardos sonhando com a inocência e a bem-aventurança da Hélade.

 Oswald é vanguardista, demolidor  do passado  literário, nos temas e  principalmente nas formas  de gênero e expressão  literária. Esse “enfant terrible” do Modernismo da primeira fase serve,  na estrofe,  como  um  satírico  contraponto, um desvio  de normas,  e neste aspecto  instaura,  no  espaço da estrofe, a sua condição  acentuadamente  lúdica, brincalhona,  humorística, atuando tematicamente  como   acidente de percurso.

 Por esta  razão,  os lexemas-chave “pastor,”  “arrebalde” (variante da forma mais moderna “arrabalde”) e o sintagma  citado  “ovelha  chamorra”, i.e., “ovelha  tosquiada”, “tosada,” mas podendo significar  também “espoliada”, “esbulhada”  se chocam semanticamente com o enunciado dos versos da estrofe.[15] Quer dizer,  entre a serenidade de um pastoralismo  alienante, situa-se  a irreverência prosaica da “gritaria” anti-passadista oswaldiana, contaminada por uma  vivência agitada e urbana de um escritor de vida abastada e de influências vanguardistas  europeias, auto-contraditórias na busca de renovação  e  novas  experimentalismos  poéticos, tanto quanto o fez na prosa, nem sempre coerentes com  algumas de suas produções anteriores, vazias de  lirismo.[16] Por tudo isso,   a enunciação poética da estrofe  somente  convalida os mecanismos de natureza  surreal no que  tange à ideia proposta  pelo eu  poético.

Na nona estrofe, já no período modernista a pergunta que se faz tem como  alvo do eu  poético o conhecido  humorista, poeta  tradutor,, fabulista e homem de pensamento, Millôr Fernandes, falecido no ano passado. Satírico, independente, demolidor de falsos  valores nacionais, Millôr merece releitura e estudos  de envergadura  intelectual  digna de sua produção pouco  conhecida  mesmo  por  especialistas da  literatura  brasileira. A interrogação-exclamação, agora,  tem  o seu tanto  de melancolia, de sentido de perda irreparável que os admiradores em geral têm quando não mais  podem  contar com uma  voz que “clama no deserto,” tem peso  intelectual e conteúdo moral diante das desgraças  enfrentadas por longos  anos da história  política  brasileira.

Alcançamos a décima  estrofe, na qual a figura de Luís Fernando Veríssimo, conhecido cronista contemporâneo, filho do  grande ficcionista  Érico Veríssimo (1905-1975). Luís Veríssimo nada tem com a literatura  paterna, cujo  nome propositalmente se menciona na estrofe. São dois escritores que tiveram  trajetórias  completamente  diversas, e bem assim  outras opções de falarem sobre os homens, a História e a vida. O filho Veríssimo  optou mais pela leveza  de temas relacionados às paixões dele,  o cinema, o jazz, ou por temas mais amenos, porém com muito  humor e paixão pela vida, pelas viagens. Daí talvez se explique o  uso do lexema “modorra” não gratuitamente   inserido  na estrofe. Isso,  em parte,   elucide, em linhas gerais, o temperamento de escritor de Luís Fernando  Veríssimo.

Na penúltima  estrofe, encontramos  citado o  poeta  Chacal,  pertencentes às gerações de poetas sob o rótulo  geral de contemporaneidade. Nem sempre,  com é o caso desta   estrofe, a expressão “tal de” conota desapreço ou ironia. Ao contrário,   o tom  do verso “um vate marginal”, onde o sintagma antitético confirma  o ludismo ao fundir  um lexema de acepção antiquada e ao mesmo  tempo solene e o lexema “marginal”, i.e., um  poeta  situado fora do esquema das normas editoriais com o selo de alguma  editora famosa. Ambíguo no  sentido, marginal se refere àqueles poetas e mesmo  ficcionistas,  caso de Plínio Marcos (1935-1999),  que publicavam suas  produções em edições particulares, em geral preparadas pelo  próprio  autor e vendida, seja nas ruas, seja n os bares,  ou em outros lugares não sofisticados.

Chacal – é preciso  cronologicamente  delimitar  melhor -  faz parte da geração marginal dos anos 70, melhor  dizendo,  à “geração  mimeografo”  que,  segundo Antonio Sérgio e Wander Miranda,  sai  da “clandestinidade editorial para  atingir um público mais amplo, sobretudo  através da importante antologia 26 Poetas Hoje, de 1976, organizada  Heloísa Buarque de Holanda.[17]

A pergunta do  eu  poético  põe o leitor entre a  possibilidade de o  poeta satisfazer a curiosidade e o  desejo  de trilhar  o caminho da liberdade de linguagem sem os interditos e as normas  vigorantes na tradição  poética  com a dúvida da resposta  em suspenso, quer da parte do eu  poético, quer do desejo do leitor.

Chegado à última  estrofe,  o eu  poético invoca, no mesmo tom  interrogativo-exclamativo, o ser físico do poeta, simbolizado com  maiúscula, numa   provável  maneira  de querer  uma resposta  final e acolhedora do poeta que, no país, deu  início  a essa tendência, diria,  marginal,  porque  alicerçada nos componentes da crítica,  do escárnio, do humor e da liberdade criadora -  único caminho descoberto para qualquer  forma  temático—linguístico-literária de fazer  poesia em todos os tempos. Chamo a atenção para o fato de que as duas pontuações, além do  peso  retórico, malogrado ou não,  se formula como uma das chaves  fundamentais na análise e  interpretação do poema.

Esta invocação final, ao “Boca do Inferno” recobre-se de uma  intenção de natureza  epistemológica. Sua base é teórica e prática ao mesmo  tempo. Aprofunda, ademais, a questão crucial da criação literária e artística e, no tocante a este estudo,  dos fundamentos  do gênero poético, questão inesgotável do prisma  teórico.

 

                        Palavras finais

 

 

O “envite” aos poetas do “time” proposto pelo  eu  poético não  apenas camufla um chiste que  explicita as preferências de autores do  poeta Luiz Filho de Oliveira , mas também  é abertura a uma convocação à liberdade plena – reforço -  da palavra, da língua, da poesia e da literatura em geral em espaço e tempo  historicamente definidos. Tal lexema, além do sentido de “convite”,  registra ainda  as acepções de  “não se acovardar  ante as ameaças (de outrem)”  “maior parada (no jogo),[18] significados  sintomaticamente gravitando em torno  da  realidade lúdica  do   poema,     .

O   ludismo na fatura do  poema examinado – tantas vezes  reiterado no desenvolvimento  desta análise -  posto  que aparentemente desabusado no uso do léxico de semântica erótico-chula, não deixa de ser máscara de seriedade  implícita e derivada  de um compromisso  com a  poesia de Luiz Filho de Oliveira.



 * Ao reunir as quatro partes deste estudo,  esta  epígrafe constará da primeira página do conjunto. 

 

NOTAS:

 

[11] O poeta Juó Bananère, do qual, pela primeira vez, tive conhecimento num  livro didático, Língua portuguesa, de Válter Wey (São Paulo,Companhia Editora Nacional.  3ª série do Curso Colegial. 6 ed., 1963,.   em muitas histórias literárias de que dispomos não é sequer mencionado, o que é uma  lacuna  imperdoável da parte de  historiadores brasileiros.

 

[12] Cf.  em CARPEAUX,  Oto Maria. Pequena bibliografia  crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro:  Edições de Ouro, s/d. Nova edição com apêndice de Assis Brasil.330-331.

 

[13]STEGAGNO-PICCHIO,  Luciana. História da literatura brasileira. Trad. de Pérola de Carvalho e Alice Kyoko. 2 ed. ver. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p.440.

 

[14] WEY, Valter. Op. cit., p. 220.

 

[15] BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo  dicionário de  língua  portuguesa.  1. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,  1977, p. 312.

 

[16] MOISÉS, Massaud.  História da literatura brasileira Vol. V. Modernismo (1922—Atualidade). São Paulo: Editora Cultrix, p. 77-86.

 

[17] BUENO, Antônio e MELO MIRANDA, Wander. Moderno, pós-moderno e a nova   poesia brasileira. In: CASTRO, Sílvio.(Org.). História da literatura brasileira. Vol. 3 Lisboa: Publicações Alfa,  1999, p. 454. Recomendo ao leitor que leia o capítulo na  íntegra, Capítulo 50, p. 443-466.

[18] Lexema acessado na Internet através do Dicionário Priberam da língua  portuguesa. Acesso em 30/01/203.