No segundo terceto seguindo a mesma estratégia dessacralizadora da figura de Dante - é óbvio, sob a ótica sempre lúdica -, seria a possibilidade de o grande vate se deparar com um ambiente também lúbrico. Nessa estrofe, o autor do poema consegue reunir sob o signo da hipótese de natureza lúdica, um lexema elevado contrastando criativamente com um exemplo de aliteração – “abarcaria” uma bacante, num sintagma que remete, deslocadamente no espaço da estrofe, ao lexema “divino”, o qual conduziria satiricamente ao título da obra-prima de Dante, A divina comédia. A poesia pode até ser inspiração às vezes, mas é irrecusável a condição de que sua fatura depende de pressupostos técnico-formais, de construção trabalhada com o instrumental da lógica, do conhecimento, do efeitos técnico-linguístico-literários e da emoção para surtir o efeito estético.

                              A combinação dos lexemas “inferninho” e “zona”, de natureza, de nível rebaixado, e, portanto, carnavalizado, completaria a intenção geral da sátira ao empregar estes dois lexemas nas concepções que a eles atribuímos, maximizando ainda mais o alvo caricatural de uma obra séria e canônica. Como se pode ver, tudo na peça poética transcorre num universo do hipotético e do divertissement., da possibilidade, ou seja, de uma capacidade criativa ou habilidade técnica que os autores possuem para subverter o imaginário do imaginário, o simulacro do simulacro e muito desta transformação se consegue a partir do recurso do intertexto. Por isso, o pastiche, a paródia, a apropriação, a metaliteratura tanto se tem praticado em tempos pós-modernos da escrita ficcional, poética, dramatúrgica etc, dando-nos a impressão de que a literatura, do ponto de vista de originalidade de temas e de formas de realização está se esgotando ou enfrenta uma crise., positiva ou negativa, ainda não podemos prever com certeza, de criatividade ou de transformação dos meios de produção literária no Ocidente, pelo menos.
                             No terceiro terceto, a interrogação-exclamação do eu poético centrará sua atenção na figura do poeta barroco Gregório de Matos Guerra    (1629-1692) personalidade indispensável ao contexto literário-ideológico da obra Das bocadas infernéticas.[5]  Comporta acentuar um pormenor que não se deve minimizar na relação entre o poeta Luiz Filho e seus rememorados autores citados: o tom informal, familiar, desauratizado lhe serviu como oportunidade de prestar uma homenagem, seja por preferências do poeta piauiense, seja porque, segundo ele mesmo me informou, exerceram alguma influência sobre a sua poética. Esse procedimento nos lembra as conhecidas homenagens de Manuel Bandeira a autores por ele admirados, que lhe foram motivos de imitação, de apropriação e de paráfrase, num trabalho de recriação que em Bandeira lhe era um traço de sua produção literária, segundo já referi em outros ensaios meus.
                           Há que considerar-se no poema o emprego de vários lexemas associados ou deslocados dos contextos histórico-literários, Ao utilizar este recurso, forçoso é sublinhar que Luiz Filho, assim como outros poetas de todos os tempos, emprega a intertextualidade, seja pela presença daqueles lexemas, como “empório, “gorra”, no sentido de “barrete”, seja pela própria menção do nome do autor, seja finalmente pelo sentido, tema, tom do texto, aqui erótico ou licencioso da estrofe. No caso específico de Gregório de Matos, esta lubricidade não deixa de associar-se ambiguamente ao refrão do poema e, por ser justamente uma refrão, intensifica semanticamente o tom geral debochado do poema, possivelmente suscitando no eleitor risos ou reprovação, duas reações que não importam no que tange à qualidade poética inusitada do texto.
                          O quarto terceto alude ao grande lírico Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), autor do apreciado e conhecido Marília de Dirceu e reputado pelos estudiosos como o autor das Cartas Chilenas (1845), aliás, incompletas.[6] 
                         Tendo sido acusado de ser mais um membro da Inconfidência Mineira, foi a julgamento. De Minas foi levado para o Rio de Janeiro, onde esteve preso até 1792. Em seguida, foi deportado para Moçambique. No processo movido contra ele, defendeu-se brilhantemente e com argumentos firmes e convincentes, de tal sorte que impressionaram os julgadores ao afirmar que nenhuma participação teve no movimento dos inconfidentes liderado por Tiradentes. Sua lírica é considerada da mais alta valia estética neoclássica.
                        A estrofe, que imprime um tom de amável intimidade com a figura do árcade, como, de resto, em quase toda a extensão do poema, se submete ao eu poético mediante a indagação interrogativo-exclamativa própria a uma construção hipotética dirigida ao leitor ou receptor. Indaga-se aí da possibilidade de o célebre árcade, no meio da pressão de seus julgadores, cometer um ato extremo, um suicídio, como acontecera efetivamente com outro árcade acusado de inconfidente, o poeta Cláudio Manuel da Costa, autor de Obras (1768) Vila Rica (1837), O Parnaso Obsequioso. [7]
                     O quinto terceto, trilhando o mesmo procedimento de arquitetura do poema, traz à baila uma dimensão menos divulgada do escritor Bernardo Guimarães (1845-1898) mais conhecido como ficcionista, menos como poeta.. O prosador, porém, desde os bancos acadêmicos na Faculdade de Direito de São Paulo, junto com os companheiros de turma, Aureliano Lessa e Álvaro de Azevedo, já dera sinais de inclinação ao humorismo quando , com aqueles autores, funda a Sociedade Epicureia, regada em suas reuniões a bestialógicos que, segundo José Paulo Paes, produziram “curiosos disparates rimados de humor algo surrealista, posto que de fatura mecânica que tiveram voga na segunda geração romântica.” [8]
                   Seus versos humorísticos, tidos pelo crítico José Veríssimo como superiores aos de Gregório de Matos, tiveram melhor acabamento estético com as obras Dilúvio de Papel, Elixir do Pajé, sátiras, segundo José Paulo Paes,[9] de natureza fescenina e “inspiradas” em Os timbiras, de Gonçalves Dias. A estrofe em consideração, conforme se pode notar, guarda ressonâncias inequívocas com fragmentos alusivos à obra de Bernardo,   O Elixir do Pajé: : ”tá armado"e lexemas como “Pajé,” “pachorra.”

               O sexto terceto, na mesma linha intertextual, humorística e de composição, insere outro poeta pouco estudado, Luís Gama (1830-1882).
              Filho de mãe africana e livre e pai fidalgo, Luís Gama  [10] foi, desde menino, um lutador e sofredor. Esteve por oito anos no cativeiro, sendo livre, porque, a despeito disso, o pai o vendera como escravo. Fez-se sozinho, com os próprios esforços, foi um vitorioso no final. Aguerrido como sempre foi, obteve a liberdade provando ser um escravo livre. Sua vida é uma epopeia de batalhas pessoais e de conquistas. Mercê de seu esforço próprio de se tornar um homem independente, fez-se jornalista combativo, estudou Direito sozinho e se dispôs a defender seus “irmãos de cor”. Atingiu a condição de líder abolicionista e republicano, ao lado de outros nomes proeminentes da vida literária, tais como Raul Pompeia, Raimundo Correia,  Valentim Magalhães, Lúcio de Mendonça Silva Jardim. 
              Militou na imprensa de cunho humorístico fundando jornais em São Paulo, jornais devida efêmera, porém que publicaram seus primeiros poemas satíricos, mais tarde enfeixados em livros. Sofreu influência do grande Gregório de Matos e de F. Xavier de Novais. Com suas Trovas, chasqueou da sociedade provinciana de seu tempo. Neste sentido, sua visão de raça revelou-se avançada, a se ver pela sua crítica mordaz contra as pretensões de “barões escravocratas” de se julgarem brancos puros.
             Para o que convém aos comentários deste estudo, no plano estratégico de composição lúdica através do recurso da intertextualidade, veja-se que Luiz Filho, pela boca do eu poético, faz referência ao título do poema “Quem sou?”, o qual ficou popularizado mais com o nome de “A Bodarrada” Todo o campo semântico da estrofe irradia a sua sátira através dos lexemas que lhe realçam o intento de achincalhamento, da licenciosidade, presentes em quase todo o poema em exame: “bodarrada,” “prazer” (como forma verbal), “cachorras”, na acepção de “mulher devassa.” (Continua)


 

NOTAS:

 

  

 [6] Cf. CANDIDO, Antonio e CASTELO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira – 1. Das origens ao Romantismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971 Ver p. 188-189. .

[5]Aliás,  veja o leitor  que, nesse paratexto do título,   é sintomática a formação   do neologismo,  aglutinação do lexema “infernética”, na forma adjetiva,   combinando inferno + internet, não disfarçando, desse modo,   a intenção subversora  do pendor  de Luiz Filho para jogar com novos sentidos  atribuídos a um lexema que, no exemplo presente, acena  tanto  para a  tradição  literária (Barroco) quanto para a contemporaneidade em que os meios de expressão  escrita estão tão  ligados  aos meios da mídia virtual, a Internet. do  título  Das bocadas infernéticsa,  tirado e  derivado da antonomásia “Boca do Inferno”, pela qual ficou  conhecido Gregório de Matos, consegue o  autor extrair  sua verve  de bom efeito  humorístico-satírico.

 

[7]Idem, ibidem, p. 136-137.

[8] PAES, José Paulo e MOISÉS, Massaud (Orgs.).  Pequeno dicionário de literatura brasileira.  2. ed. ver. e ampliada.  São Paulo: Editora Cultrix,  1980, Ver verbete às páginas 181-183.

[9] Idem, ibidem,  

[10] Idem, p. 172.