Luís Filipe Thomaz disserta sobre os contos clássicos indianos
Por Flávio Bittencourt Em: 10/03/2010, às 13H51
Luís Filipe Thomaz disserta sobre os contos clássicos indianos
O Kamasutra, o Panchatantra, o Hitopodesa, o Kathasaritsagara, entre outros, são exemplos relevantes da antiga literatura em sânscrito.
(http://cantodaweb.blogspot.com/2009/11/hoje-22-de-novembro-faz-41-anos-que-os.html,
onde se pode ler:
"O álbum [Álbum branco] foi concebido na época em que os Beatles estavam em meio à meditação de Maharishi Mahesh Yogi - famoso guru indiano que encantou George Harrison e os outros integrantes com suas meditações. É nesse período que John Lennon afirma que suas melhores canções foram escritas. Porém, após um tempo, os rapazes de Liverpool acabaram decepcionando-se com Maharishi e abandonaram ele e a Índia. Motivos são vários, mas é certo que Maharishi não gostava que seus mais famosos discípulos usassem drogas; e Lennon certamente ficou chocado com o suposto assédio sexual de Maharishi em Mia Farrow".)
(http://cariricaturas.blogspot.com/2009/11/sathya-sai-baba.html,
onde se lê:
"Baghavan Sri Sathya Sai Baba, pseudônimo de Sathya Narayana Raju é um guru indiano. É considerado por muitos como um Avatar (encarnação numa forma humana de um ser divino). O próprio Sai diz ser a segunda de uma tríplice encarnação: teria sido Shirdi Sai Baba, e futuramente será Prema Sai Baba. Nasceu em 23 de novembro de 1926, numa pequena vila no sul da Índia, chamada Puttaparthi, no estado de Andhra Pradesh. Ele reside lá ainda hoje, recebendo milhares de visitantes do mundo inteiro em sua comunidade espiritual (ashram), chamada Prasanthi Nilayam, que significa "Morada da Paz Suprema" (shanti=paz, pra=suprema, nilayam=morada)" (CLAUDE BLOC e SOCORRO MOREIRA)
(http://www.britannica.com/psychedelic/photohtml/opsyroc058p4.html,
onde consta:
"Members of the Beatles with their guru, Maharishi Mahesh Yogi; (left to right) John Lennon, Mike Love of the Beach Boys, the Maharishi, George Harrison, actress Mia Farrow, Donovan, Paul McCartney, and actress Jane Asher, at one time McCartney's fiancé")
Mia Farrow e o galanteador Maharishi Mahesh Yogi,
famoso guru indiano que infelizmente morreu no
ano retrasado (2008)
(http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2008/02/05/AR2008020502752.html)
Maharishi Mahesh Yogi (1918 - 2008)
(http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2008/02/06/morre_guru_dos_beatles_maharishi_yogi-425489404.asp)
"O nosso homem do Oriente é um historiador da casta dos 'antigos'.
Entrar em casa de Luís Filipe Reis Thomaz - 65 anos, historiador do Oriente, reformado da Faculdade de Letras de Lisboa -, é como penetrar num museu desarrumado sem etiquetas. Cada objecto tem história, um percurso - quase sempre longínquo -, e um grande significado afectivo para o único habitante humano de uma vivenda vulgar junto à Parede, guardada por dois cães rafeiros.
"Gosto muito de mostrar as minhas coisinhas a terceiros", comenta ao DN este eremita urbano, monárquico, rodeado de fotos de familiares falecidos, tendo em destaque as imagens da família real portuguesa. "Os meus avós despediam-se deles [dos reis] todas as noites", conta na visita à cave, e aos dois andares 'divididos'; por bibliotecas temáticas. Mostra-nos uma sala, decorada com mobília antiga, como se o tempo tivesse parado, "aqui só estão livros sobre o cristianismo oriental". Quando o seu tio-avô Américo Thomaz foi presidente, deu-lhe muitos livros. 'Dizia-me, 'vai lá a Belém que tenho livros para ti...' Também ia à biblioteca do Patriarcado, ou pedia emprestado ao Alçada Baptista.' ".
(LEONOR FIGUEIREDO, "Um Fernão Mendes Pinto do século XXI",
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Lisboa (Portugal), 16 de fevereiro de 2008,
http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=1002733)
Para a atriz Mia Farrow, de Los Angeles (Califórnia, EUA), respeitosamente,
ao historiador português Luís Filipe Thomaz, aposentado da Faculdade de Letras de Lisboa
(docente na Universidade Católica, onde leciona Civilização Indiana e Cristianismo Oriental,
tendo sido o primeiro professor em Portugal de História da Civilização Asiática),
a Leonor Figueiredo, jornalista portuguesa que competentemente nos apresenta,
no Diário de Notícias, de Lisboa, Dr. L. F. Thomaz, à saudosa memória do "guru dos Beatles"
Maharishi Mahesh Yogi e ao venerável
guru Sathya Sai Baba, de Puttaparthi (Andhra Pradesh, Índia), homenageando
A MILENAR CULTURA DA ÍNDIA
10.3.2010 - O famoso guru indiano "de The Beatles" não resistiu à beleza (interior e exterior) da grande atriz Mia Farrow - A milenar cultura indiana sempre foi muito pesquisada, no Ocidente, por orientalistas, teólogos, geógrafos, sociólogos, antropólogos, historiadores, teóricos da literatura, aficcionados por música, literatura, artes plásticas e cinema indianos, esotéricos de diversos matizes e curiosos cultos. Quando, todavia, o conjunto de Liverpool The Beatles viajou para lá, adotando certo guru (Maharishi Mahesh Yogi) que decepcionou o conjunto musical e sua entourage [o guru indiano, que tinha senso estético apurado e coração frágil, encantou-se por Mia Farrow], o assunto discutido no artigo abaixo transcrito, de autoria do pesquisador português Luís Filipe Thomaz, entrou no circuito assim denominado pop, com todo o respeito por aquela notável Civilização. com a qual só temos a aprender. Demorou-se a publicar aqui algo sobre a cultura indiana porque, como uma telenovela da TV Globo estava em voga, pensar-se-ia que só se teria falado aqui sobre essa antiquíssima temática porque todos falavam na Índia. Qual o quê! Com novela ou sem novela, VALE A PENA CONHECER A MILENAR CIVILIZAÇÃO INDIANA! F. A. L. Bittencourt ([email protected])
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FOTO DE CENA: Mia Farrow A TRABALHAR, IMAGEM REPRODUZIDA NESTA COLUNA "RECONTANDO...":
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"Contos Clássicos Indianos
Desde o início da humanidade, os contos e as histórias têm sido meios de partilhar instrução e divertimento entre os homens. As histórias foram concebidas para ilustrar e exemplificar princípios para a conduta humana. Depois de séculos, estas histórias foram finalmente registadas em letra impressa. Estão divididas em quatro grupos: Sânscrito ou Hindu, Árabe ou Persa, Ocidental ou Europeu e o Americano. De todos eles, o grupo Sânscrito ou Hindu é o mais antigo e provavelmente serviu de base para as histórias do grupo Árabe ou Persa, que por sua vez serviu de fonte para muitos dos contadores de histórias europeus. Esta colecção de Contos Clássicos Indianos, por Anaryan, narra e analisa os exemplos relevantes da antiga literatura em sânscrito, como o Kamasutra, o Panchatantra, o Hitopodesa, o Kathasaritsagara, entre outros". |
"TEXTO INTRODUTÓRIO LUÍS FILIPE THOMAZ Não foi má ideia a de traduzir em português esta vetusta colectânea de contos indianos... É certo que os eruditos apreciariam sem dúvida mais um trabalho original, directamente traduzido do sânscrito ou do pali; mas o óptimo é inimigo do bom, e traduzir tantos textos do original daria um trabalho insano, que não sei quem entre nós poderia empreender. Melhor é pôr desde já à disposição do público interessado – que é, graças a Deus, cada vez mais numeroso – um volume com que cada um possa formar uma ideia, ainda que assaz geral, do conteúdo e carácter das obras mais representativas da antiga novelística indiana. O enredo de cada conto nada perde com ser traduzido e mesmo retraduzido; basta que se faça, como se fez, uma cuidadosa revisão à versão dos termos técnicos ou por qualquer forma carregados de valor cultural acrescentado. O estilo, esse perde-se necessariamente, já que não há língua moderna da Europa – nem quiçá da própria Ásia – em que se possa imitar a estrutura da prosa sanscrítica, com as suas longas frases, os seus típicos alamkaras (tropos, figuras de retórica), os seus compostos intermináveis, a sua predilecção pelas proposições nominais. Quem as queira devidamente apreciar terá de queimar as pestanas e aprender a língua... Seja como for, isso será sobretudo necessário a quem queira saborear o kavya, ou poesia cortesã, de que os poemas de Kalidasa sempre foram considerados o expoente inigualável; os contos e novelas primam mais pela sua trama e pelo seu pendor sentencioso e didáctico, e esses preservam-se suficientemente numa tradução cuidadosa. Uma curiosa característica da novelística indiana é a peculiar trama narrativa, em que os contos, cujas personagens contam contos entre si, se encaixam uns nos outros como jogos de bonecas russas, mantendo constantemente em suspenso o leitor – pois há sempre em cada livro da colectânea uma história pendente, à espera de que os seus personagens se calem para poder acabar. Essa técnica de narração foi mais tarde imitada pelos árabes, nomeadamente nas bem conhecidas Mil e uma noutes. O moralismo é outra das características quase constantes da novelística indiana. Os contos são as mais das vezes entendidos como "histórias de proveito e exemplo", para retomar a expressão do nosso velho Gonçalo Fernandes de Trancoso; bastas vezes apresentam-se como fábulas ou parábolas, a ilustrar o ensinamento moral contido no aforismo que os abre e lhes serve de mote, e que em regra se repete no final como lição a retirar da história, tal como o epimythion das fábulas de Esopo. Talvez não tenha assim sido desde o princípio, e muitas histórias tenham começado por ser meras narrativas, em que o autor, mais ou menos individual, tenha dado largas à sua fantasia para sua satisfação pessoal e distracção do auditor – ou, quando começou a predominar a forma escrita, do eventual leitor. Contudo o carácter clerical de quase toda a cultura indiana – onde o saber continuou por largos séculos a ser apanágio dos brâmanes e dos monges budistas, pelo menos enquanto prevaleceu o budismo – levou a que muitas narrativas, provavelmente pré-existentes, tenham sido reutilizadas para fins religiosos ou morais, e foi nessa forma clericalizada que as mais delas chegaram até nós. O mesmo sucedeu, aliás, à própria epopeia, que de celebração de façanhas de guerra, caras à classe militar dos cxatrias, se transformou ora em narrativa edificante ora em enciclopédia mitológica, em que os feitos dos deuses e das encarnações divinas eclipsam quase inteiramente os dos simples mortais. Foi nessa forma, digamos, bramanizada que o Mahabharata e o Ramayana chegaram a nossos dias. Para retomar a expressão feliz de Lin Yü Tang – um autor chinês, nutrido da cultura muito mais laical do Celeste Império, na realidade bem terrestre – pode definir-se a índia como a land and a people intoxicated with God, já que a omnipresença do sagrado excede aí o que se pode observar entre qualquer outro povo, à excepção quiçá do do antigo Egipto, que Heródoto, que da índia conhecia pouco, definira outrora como "o mais religioso dos povos". Não escapará ao leitor atento desta antologia a presença quase constante dos deuses na narração, mesmo nos contos de inspiração budista. É verdade que o budismo, pelo menos o budismo antigo, dito Hinayana ou do "Pequeno Veículo", não atribui aos deuses qualquer papel na conquista do nirvana ou beatitude eterna, e que nos sutras ou sermões de Buda o seu papel é pouco mais que decorativo, quase como o que os deuses greco-romanas desempenham n'Os Lusíadas; mas ainda aí o Absoluto está presente, sob a forma impessoal de lei eterna do universo, a que as pessoas e as cousas estão sujeitas, e a intenção do contista é, na sua essência, edificante. Não se conclua, porém, daqui que toda a literatura da Índia seja moralista. Por um lado a cultura tradicional tende a contrapor ao conceito de dharma, que se pode traduzir por "lei" ou por "dever", o de artha, traduzível por "conveniência" - e é meramente o modo de alcançar a conveniência prática, levando a água ao seu moinho independentemente de considerações morais, o que muitas fábulas e apólogos pretendem ensinar. Por outro lado, talvez como compensação psicológica à esmagadora presença do sagrado na arte, na literatura e no quotidiano do indivíduo, alguns autores enveredam decididamente por uma espécie de amoralismo ou neutralidade ética, que aparenta a sua narração ao género picaresco da literatura hispânica. O caso mais típico é quiçá o Dasakumaracarita ou "história dos dez príncipes" de que se achará aqui traduzida uma das aventuras; descontada a falta de mesura no pendor para o inverosímil, o inesperado das situações, o encadeamento imprevisível dos episódios e a como que impassibilidade ética e emocional do herói da história recordam-nos irresistivelmente o Lazarillo de Tormes ou algo no mesmo género. Notar-se-á igualmente, sobretudo nas narrativas mais antigas que abrem a colectânea, a frequência com que ocorrem personagens animais. Em maior ou menor medida, as histórias de animais existem, provavelmente, em todas as literaturas, sejam orais sejam escritas; mas certamente em nenhuma revestem a importância que têm nas da Índia. Quer-nos parecer que essa ocorrência não é fortuita, antes nos parece relacionada com a doutrina do sãsara ou transmigração das almas, comum ao hinduísmo, ao jainismo e ao budismo: o homem não é, na sua essência, distinto dos outros animais e todo o ser agora humano é susceptível de já ter sido, ou de vir ainda a ser, numa existência passada ou no futuro, um animal. Não admira, pois, que aos animais, universalmente tidos como símbolos de certos caracteres psicológicos ou morais, sejam com tanta frequência atribuídas nas literaturas da Índia formas de agir e de pensar tipicamente humanas. Seja como for, de toda a literatura indiana foram as histórias em que animais figuram caricaturalmente as qualidades e defeitos dos humanos as que, antes dos tempos modernos, mais larga difusão lograram em toda a Eurásia, da Península Ibérica e da Escandinávia à Coreia e ao Japão, como adiante veremos. Não se espantará, por isso, o leitor, de achar entre as historietas aqui vertidas o protótipo indiano do auto vicentino de Mofina Mendes, como Guilherme de Vasconcelos Abreu, o introdutor do ensino do sânscrito em Portugal, mostrou há já um século, num pequeno mas luminoso ensaio: Os Contos, Apólogos e Fábulas da Índia: influência indirecta no Auto da Mofina Méndez de Gil Vicente, publicado em 1902 pela Imprensa Nacional. Existem fábulas, as mais das vezes protagonizadas por animais falantes, em numerosas literaturas orais, nomeadamente em África; e as da Índia começaram certamente por correr de boca em boca, como contos folclóricos, antes de serem reinterpretadas e reduzidas à forma escrita em que as conhecemos hoje. Em forma escrita aparecem já fábulas na Suméria pelo menos desde o século XVIII A. C.; foi através das suas versões acádicas que elas influenciaram a literatura grega, que as atribui a Esopo, um autor mais ou menos mítico, e por conduto desta a latina e suas descendentes. É possível que directamente, ou através do grego – conhecido na Índia desde a conquista do Panjabe e do Cinde por Alexandre Magno, em 326 A. C. – essas fábulas mesopotâmicas tenham tido alguma influência sobre a literatura indiana; só estudos especializados, tema a tema, o poderão determinar, e não nos cabe aqui especular sobre o assunto. Basta recordar que a mais antiga colectânea conhecida de fábulas indianas está redígida em pali, uma língua vulgar ainda assaz próxima do sânscrito, em que está redigido o cânone de escrituras da escola budista mais conservadora, o Theravada ou "ensino dos anciãos", escola que se perpetuou em Ceilão, de onde a partir do século XI ganhou progressivamente a Birmânia, o Sião, os Laos e o Camboja. As fábulas aparecem aí insertas, ao lado de outros textos literários, no Khuddaka Nikaya, a quinta e última secção do Sutta-pitaka, que por seu turno constitui a segunda parte do Tripitaka ("os três cestos" ou três colecções de textos que no seu conjunto constituem o cânone budista). O Sutta-pitaka consiste essencialmente em sermões atribuídos ao próprio Buda, que em parte revestem a forma de aforismos ou estâncias em verso; é para ilustrar, como exemplo, a doutrina expressa nesses aforismos que intervêm as 547 fábulas em prosa, de que algumas têm paralelos no Mahabharata, no Ramayana ou nos Puranas (narrações mitológicas hindus). Na forma em que nos chegaram deverão datar dos primeiros séculos da nossa era, mas sabemos que algumas corriam já por 380 A. C., quando se reuniu em VaiçaIi o 2° concílio budista. São conhecidas por Jatakas, palavra que significa "nascimentos", pois são supostas terem-se passado com o Buda, ou por Ele sido narradas, no decurso das suas existências anteriores. Assim, sem embargo de não serem, como são as máximas em verso, reputadas parte do texto canônico, transmitiram-se com ele, tão longe quanto o budismo alcançou: não admira que ocorram histórias dos Jatakas traduzidas em chinês numa espécie de enciclopédia compilada em 668 A. D., sob a dinastia T'ang, nem que apareçam algumas figuradas em baixos relevos do templo de Borobudur, em Java central, que data do século IX, nos templos birmanos de Pagan, do século XIII, em templos simeses do século XIV, etc. Mais surpreendente ainda é a história da difusão dos fabulários indianos para ocidente. Não foi, desta vez, a colectânea dos Jatakas, mas uma outra, aparentemente redigida em sânscrito mas hoje perdida, que viajou até aos confins ocidentais da Eurásia. Era provavelmente de redacção budista e foi quiçá isso o que levou ao seu desaparecimento da Índia, quando o bramanismo veio a prevalecer; compunha-se de doze livros de que não resta hoje senão uma refeição bramânica em cinco apenas, o famoso Pancatantra ou "cinco livros", de que, como exemplo, se encontrarão aqui traduzidas umas quantas fábulas. O Pancatantra é, por assim dizer, um gato econdido com o rabo de fora, pois sob o verniz bramânico o sabor búdico da colectânea original ressalta claramente em vários passos, sem embargo de terem sido eliminados os contos que pareceram mais tendenciosos. Não sabemos como se chamava a recolha primitiva, talvez Karataka e Damanaka, nome dos dois chacais que são as personagens principais do livro primeiro e que deram o nome às versões siríaca e arábica. Seja como for a obra foi vertida em tibetano e em chinês e, a mando do rei sassânida Cosroés II Anushirvan (531-579) também em pahlavi ou médio-persa pelo seu médico Burzoe ou Barzoi, que para o efeito enviou à índia. Como o original sanscrítico, também esta versão persa se perdeu; mas conserva-se a versão siríaca feita logo a seguir, em 570 A. D., pelo periodeuta (visitador episcopal) Bud, intitulada Kalilag e Damnag, e uma versão árabe de 750 chamada Kalila e Dimna, devida a um tal 'Abd-Allah bin al-Mugaffa', de que se conhecem belos manuscritos medievais iluminados. Com a difusão do islão também esta versão arábica viajou para oriente, vindo por exemplo a ser tresladada em malaio, num arranjo que, no entanto, aparenta contaminação com o texto tâmul do Pañcatantra. Escusado seria dizer que todas estas traduções foram feitas com a ampla liberdade de que outrora se usava em casos tais, isto é, sem hesitar em introduzir amputações, modificações e acrescentos ao texto original, alguns destes retirados de outras fontes. A obra de Burzôe contém assim uma espécie de apêndice, de que as três primeiras narrativas são retiradas do livro XII do Mahabharata e as cinco seguintes de uma história do rei dos ratos e seus ministros, de que o original indiano se perdeu. Sobre o texto de Ibn al-Mugaffa' fizeram-se mais tarde adaptações em verso, uma nova tradução siríaca, versões, em prosa e em verso, em persa moderno, em turco e em mongol, e ainda, através de um manuscrito egípcio levado para a Abissínia, uma versão etiópica, mencionada num texto de 1582 mas hoje perdida. Uma das três ou quatro recensões turcas existentes – a de ‘Ali Chelebi, em prosa otomana de começos do século XVI, feita sobre uma versão persa e intitulada Humayun-name ou "livro imperial" – veio no século XVII a ser tresladada em castelhano e no seguinte em francês. Mas de há muito já que, através do texto árabe do Kalila e Dimna, as fábulas indianas haviam penetrado na Europa cristã, por três outras vias. Por um lado vertera-o em grego Simeão Seth, dignitário da corte bizantina e médico pessoal do imperador Romão III (r. 1028-1034), com o título de Stephanites kai Ichnelates, com que pretendeu traduzir o título Kalila wa Dimna que supunha arábico; essa versão grega foi ao depois tresladada em eslavão litúrgico, em alemão e por duas vezes em latim, com o título de Specimen Sapientiae Indorum Veterum, ou "espécime da sabedoria dos antigos índios". Mas entretanto a obra de Ibn al-Mugaffa‘ fora tresladada por duas vezes em hebraico, primeiro, no século XII, por um tal rabi Joel, depois, na centúria imediata, por Jacob ben Eleazer, em prosa rimada, com maior liberdade que a de Joel em relação ao original. Cerca de 1250 fora também, quiçá a mando de Afonso X, o Sábio, traduzida assaz fielmente em castelhano, a partir de uma recensão árabe muito próxima da que utilizara Joel – texto que chegou até nós num manuscrito do Escurial. Desse texto se serviu D. João Manuel, neto de Fernando III de Leão e Castela ou S. Fernando e sogro do nosso D. Pedro I, no seu Conde Lucanor, que existia na biblioteca del-rei D. Duarte e foi uma das vias por que os fabulários indianos chegaram ao conhecimento de Gil Vicente. Foi, contudo, a versão hebraica de Joel a que conheceu maior sucesso, graças à sua tradução em latim, feita entre 1263 e 1278 pelo judeu convertido João de Cápua para o cardeal Ursino. Dessa recensão derivam no século XV uma versão alemã e uma nova versão castelhana, uma italiana feita sobre esta, outra tirada em 1552 do texto latino por Donni, a versão inglesa desta, uma em holandês outra em dinamarquês feitas sobre a alemã, e várias em francês, em que se inspiraria La Fontaine. A outra via por que a "história do mofino brâmane e da escudela de farinha", protótipo da Mofina Mendes, pode ter chegado ao conhecimento de Gil Vicente é, evidentemente, o texto de João de Cápua. Dã-se por vezes a esse fabulário o título de Fábulas de Bidpai ou de Pilpai, o que parece ser uma deformação do sânscrito vidyapati, "senhor da sabedoria". O fabulário indiano de Karataka e Damanaka veio assim a ter cerca de 200 versões em mais de 50 línguas, três quartos das quais estranhas à Índia. Apenas uma outra narrativa indiana, a vida do próprio Buda, conheceria uma difusão comparável. Não nos ocuparemos dela aqui; basta notar que por uma via semelhante – versão em persa, depois em árabe, georgiano, grego, latim e enfim romance – chegou também ao Portugal medievo, vindo a versão trecentista de Frei Hilário da Lourinhã, Vida do Honrado Infante Josaphate, filho de] Rey Avenir, conservada num manuscrito alcobacense, a ser publicada em 1963 por Margarida Corrêa de Lacerda, professora de sânscrito no então Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, hoje aposentada mas ainda assaz activa. Só que o Buda sofreu, com a translação, uma notável metamorfose, vindo a transformar-se em santo cristão, venerado tanto pela igreja grega como pela latina, e comemorado no Martirológio Romano a 27 de Novembro. Mas não foi essa a única metamorfose que sofreu: na primeira versão persa, hoje perdida, virara aparentemente mestre maniqueu, e no Bilawharr e Budhasaf árabe e persa moderno, protótipo do Barlaão e Josafate cristão, senão um santo muçulmano pelo menos um crente em Deus e na imortalidade da alma. Entretanto, na própria índia, as histórias de Karataka e Damanaka seguiam o seu destino: no Caxemira surgira, talvez no século IV ou V da nossa era, uma primeira adaptação, reputada a mais próxima do original, a Tantrakhyayika, com um punhado de histórias originais, como é o caso da do chacal azul, que o leitor achará aqui traduzida, da versão do Hitopadesa; seguira-se-lhe o Pañcatantra, já nosso conhecido, com 73 fábulas atribuídas ao brâmane Visnusarman; haviam também surgido diversas versões jainistas, em prácrito e em línguas vernáculas do sul da índia; no Bengala fora finalmente redigido em sânscrito, entre o século IX e o XIV, o Hitopadesa ou "instrução útil", atribuído ora a Narayana ora a Visnusarman, de que o manuscrito mais antigo data de 1373 A. D. Foi integralmente vertido em português por Monsenhor Sebastião Rodolpho Dalgado, com o título Hitopadexa ou instrucção útil e editado pela Antiga Casa Bertrand em 1897. Divide-se em quatro livros, com um total de 43 fábulas, de que 25 são retiradas do Pañcatantra. Mais tardio que este, apresenta os traços um tanto decadentes da literatura sanscrítica medieval: exagero do pendor gnômico e mistura desconcertante de prosa e verso, com sentenças morais poéticas a interromper a cada passo a narração. Os versos gnômicos são, na sua maioria, usurpados ao Kamandakiya Nitisara, inspirado no Arthasastra ou tratado de arte política atribuído a Kautilya ou Canakya, que teria sido conselheiro do rei Candragupta da dinastia Maurya (r. 322-297 A. C.). Os textos que se seguem na presente antologia são relativamente independentes deste ciclo e não têm as mais das vezes animais por personagens. A intenção dessas colectâneas de contos é, em geral, mais recreativa e menos moralizante, embora algumas se apresentem, tal como os fabulários, como "espelhos de príncipes" ou manuais de educação para a actividade política. No Kathasaritsagara ou "oceano dos rios de contos", sem embargo de recapitular algumas histórias dos Jatakas - como a do rei Sibi que deu o seu corpo para resgatar uma pomba, apanhada por um falcão' – e os três primeiros livros do Pañcatantra, é a intenção recreativa que parece predominar Trata-se de uma volumosa colecção de contos compilada c. 1070 no Caxemira pelo poeta Somadeva, subdividida em 18 livros como o Mahabharata ou em 124 "vagas" (tarangas), como seria de esperar de um oceano, compreendendo ao todo cerca de 350 narrativas, num total de 24.000 versos. Foi, provavelmente, a fonte de inspiração das bem conhecidas Mil e Uma Noutes, e é uma fonte importante para o estudo dos costumes e da vida quotidiana na época em que foi redigido. O pendor didático apaga-se ainda mais no Dasakumaracarita de Dandin, datável da segunda metade do século VII ou primeira do VIII, a que aludimos já; como adiantámos então, aparenta-se, pelo seu estilo irreverente e pela sua indiferença moral, à literatura picaresca. Esse carácter é bem ilustrado pela narrativa seleccionada aqui, a história de Apaharavarman. As demais histórias desta antologia giram, de uma maneira ou doutra, em torno do rei Vikrama, Vikramasena, Trivikramasena ou Vikramaditya de Ujjayini, personagem histórica envolta em lenda, àcerca do qual se gerou um ciclo narrativo, mutatis mutandis comparável aos de Alexandre e do rei Artur no Ocidente. Essas histórias aparecem, com variantes, nas mais diversas versões, mas a sua substância é a mesma. Duas séries são particularmente célebres: as 25 histórias do vampiro ou Vetalapañcavimsati – de que se acharão abaixo o enredo vertebral e algumas narrativas – e os 32 contos do trono de Vikrama, ou Simhasanadvatrimsika, contadas por outras tantas estátuas falantes que o ornavam. As do vampiro não têm como pretexto, como as dos fabulários, uma sentença ou máxima moral, mas um enigma, que o. sábio rei resolve em cada caso, assim perdendo a oportunidade de sepultar o cadáver a que o vampiro se acoitara, que não podia ser levado ao lugar da cremação senão em perfeito silêncio; e tudo recomeça do princípio... Este quarteirão de historietas ocorre em diversas versões sanscríticas, inclusíve no Kathasaritsagara, em numerosas línguas modernas da índia e em adaptações tibetana e kalmuk. O original da Simhasanadvatrimsika, também conhecida por Vikramacarita, perdeu-se; mas subsistem cinco versões posteriores, uma das quais em verso, e foi de uma delas que se extraíram os contos aqui traduzidos. Outra série, assaz popular também, não está representada nesta antologia: trata-se do Sukasaptati ou "70 histórias do papagaio", contadas pela dita ave à sua proprietária, a esposa de um mercador ausente, para evitar que esta se deixasse tomar de amores por um vagabundo sedutor durante a ausência do esposo. Data provavelmente do século XII e foi adaptada em persa por Ziya'u'dDin Nakhshabi, falecido em 1350, com o título de Tuti-namè, adaptação que chegou até nós em belíssimos manuscritos iluminados. Ao leitor ocidental desconcertará talvez o inverosímil de alguns enredos, a facilidade com que ocorre o incrível, intervém o maravilhoso, se dá largas à fantasia ou se resvala para o onírico. Isso é próprio de todas as culturas não marcadas pelo positivismo avassalador que nos tempos mais recentes se apossou da cultura europeia – pois se remontarmos à literatura medieval, por exemplo ao ciclo do rei Artur, toparemos com uma semelhante inflação do fantástico. O desenvolvimento da ciência tem prestado ao Ocidente bons serviços, mas deixou-lhe em troca como herança uma mentalidade por assim dizer hemiplégica, em que só o analisável, o verosímil, o racional parecem ter valor. A literatura indiana faz-lhe bem, já que o desintoxica. Na Índia a hipertrofia do fabuloso encontrou um terreno de cultura favorável numa filosofia marcada por um nítido pendor para o idealismo, em que o mundo tal como se nos apresenta aos sentidos corporais e à própria mente é tido por maya, ou ilusão cósmica, mera aparência a ocultar a única e genuína realidade de todas as cousas, o Absoluto, indizível, indivisível, impalpável, inefável. É verdade que esse pendor idealista não é tão acentuado em certas escolas como em outras: de uma maneira geral as filosofias budistas, particularmente as do "Grande Veículo" ou Mahayana, revelam-se mais idealistas, convertendo o desprezo ético do mundo em negação metafísica; dessa perspectiva, o pensamento torna-se mais real que a realidade e as cousas reduzem-se a pura fantasmagoria - como sucede na escola Yogacara, que pretende, pela concentração espiritual, reencontrar a realidade última de tudo quanto existe, o pensamento. Em parte por reacção contra o niilismo latente da filosofia búdica, o pensamento hindu tendeu desde então para uma mais clara afirmação do mundo, para uma epistemologia mais empirista e para uma metafísica de cunho mais realista; mas mesmo aí são inúmeras as posições e as escolas, e não cabe aqui entrar em pormenores. Seja como for, é de, um certo idealismo, mais ou menos presente em filigrana por detrás na narrativa, que decorre aquela relativização das leis da natureza que esbate as fronteiras entre impossível e possível, entre real e irreal e até, por vezes, como sucede no tantrismo, entre moral e imoral. Em menor ou maior grau intui-se a influência de tais concepções em quase toda a literatura indiana de ficção. Seria, contudo, um erro imaginar que é meramente o "homem indiano" e a sua cultura que se espelham na sua novelística. Para além dele está o Homem, com maiúscula, de que todos, seja qual for o espaço ou o tempo em que tenhamos vivido, somos um mero exemplar. Talvez nada ilustre tão bem a sua essência divina – que as Upanixades afirmaram com vigor desde I milénio A. C. – como a sua capacidade de criar. E é essa que está na origem da literatura universal, de que as narrativas que aqui temos não são senão modesta amostra...". (Luís Filipe F. R. Thomaz) |
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