LIVRO DE CABECEIRA

     Aquele que a gente lê mais de uma vez e está sempre relendo alguns trechos, aquele do qual a gente tem mais de uma edição e não está no mesmo lugar na estante, mas perambula por vários locais de nossa casa. Aquele que vai fundo e de com força em nossa emoção. Esse é o famoso livro de cabeceira. Multiplica-se em nossa vida, pois um bom leitor não tem só um livro de cabeceira, mas vários. Se for um grande apreciador de poesia, então é que aumenta mesmo o número de livros de cabeceira.

     Em meu caso, tenho vários livros de cabeceira. A Bíblia é um deles, embora eu não seja muito religioso. Vejo-a mais como uma obra poética, ficcional e uma fonte de inspiração para a criação literária do que como uma fundamentação mística. Alguns trechos das cartas de São Paulo são verdadeiros poemas em prosa. A armadilha que o profeta Natã elaborou para desmoralizar  o rei Davi é uma alegoria surpreendente. Cântico dos Cânticos é um poema lírico-amoroso com toques de erotismo. São muitos os trechos e passagens bíblicas que se aproximam mais da ficção e da poesia do que de preceitos religiosos. Ademais, várias histórias da Bíblia têm sido aproveitadas por muitos escritores, como Camões no soneto sobre Raquel e Jacó, e Luiz Vilela no romance Perdição. Livro de Cabeceira é também o nome de uma página na web em que autores dizem qual é seu livro preferido. Carlos Heitor Cony, Mílton Hatoum, Fernanda Torres, Mário Sérgio Cortella, Ignácio de Loyla Brandão e outros famosos aparecem lá, dando seu testemunho. Nenhum, porém, cita a Bíblia nem muito menos meu livro de cabaceira, é claro. Todos indicam obras célebres de escritores brasileiros e estrangeiros como Vidas Secas, Memórias de um sargento de mílicias, Os Maias...

     Meu livro de cabeceira não é uma obra famosa. Seu autor não está entre os grandes escritores brasileiros. Mas é um dos que mais me tocam. Trata-se de O tempo consequente, livro de poesia de H. Dobal, poeta piauiense. O primeiro poema desse livro canta os verdes campos onde nasci, no interior da cidade de Campo Maior. Refere-se também à fartura do leite e às lendas construídas pelo inverno, melhor estação do ano para quem é um nordestino da gema.

     Meu principal livro de cabeceira só pode ser mesmo uma obra em versos, porque tem rima, ritmo, melodia. Porque tem emoção filtrada, porque é melhor para acalentar naqueles momentos de pré-sono.

     O tempo consequente fala fundo em mim porque celebra a região onde eu costumava passar as férias quando já morava em Teresina. Andava descalço por aquelas campinas, comendo frutas silvestres como carnaúba e cruli, banhando no Jenipapo e no Surubim, tomando leite mugido de manhã cedinho... Seus versos são o que sobrou das delícias daquele tempo, hoje quase totalmente destruídas.

     Gosto deles e reconheço a enorme importância de grandes livros como Odisseia, D. Quixote, Crime e Castigo, D. Casmurro e tantos outros,  já devidamente enaltecidos e até transpostos para outras formas de arte como o cinema e a ópera. Mas nenhum me toca mais fundo do que O tempo consequente.

     É o que está em primeiro lugar em minha cabeceira.