[Washington Ramos]

     Literatura é criação, ficção, elaboração de linguagem conotativa etc. Autoajuda é uma maneira própria que muita gente usa para superar problemas e dificuldades da vida, sobretudo os de caráter emocional e de relações humanas. Como todo mundo tem problemas, surgiram, então, os livros de autoajuda, que, uns bons e outros ruins, vendem muito. Outra causa do crescimento de sua venda é que hoje muita gente não acredita mais nas religiões cristãs, principalmente depois que vieram à tona as safadezas que alguns padres e pastores fizeram com crianças e não foram punidos. Por isso muitos pularam para outros credos e para a autoajuda.

     Literatura e autoajuda não são a mesma coisa, são diferentes; mas não são inimigas nem inconciliáveis. Pelo contrário, têm uma grande proximidade. A autoajuda é uma espécie de filha bastarda da literatura, a prima pobre que ficou rica. Poetas, ficcionistas e seus leitores olham para ela com ar de desprezo e superioridade.

     Para confirmar a semelhança entre obras literárias e livros de autoajuda, consideremos alguns textos literários e alguns autores. Comecemos pela Bíblia, monumento seminal que congrega não só aconselhamento, leis, bênçãos e maldições, como também uma riquíssima linguagem plenamente literária ( Comerás o pão com o suor de teu rosto. É metonímia? Metáfora? Sinédoque? É tudo isso junto? Sei lá! Sei que é tão criativo, que é muito difícil de classificar.). É grande o número de ficcionistas e poetas que criaram textos a partir da Bíblia como Thomas Mann e Camões. Ela continua a ser um manancial para a literatura. O belo romance Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, agraciado com o prêmio S. Paulo de Literatura em 2009, tem trechos dela. É desnecessário mencionar que muitos livros de autoajuda se baseiam em frases bíblicas. É, portanto, uma vertente comum para os dois tipos de livro que estamos comentando.

     E o que dizer de Gil Vicente com seus autos moralizantes? A intenção dele era exatamente criticar os maus costumes, levar ao ridículo o velho que se apaixona por uma adolescente e o rico mesquinho que pensa que vai para o céu, para citar só esses dois casos. E qual é a forma de seus textos? É a poesia, são versos recheados de alegorias. Não é um casamento perfeito entre criação literária e a autoajuda?

     E o que dizer de Eça de Queiroz com O Primo Basílio? O propósito é moralizante também. É retratar o comportamento ocioso de Luísa e suas leituras românticas como algo pernicioso e degradante. Esse engajamento moralista não era exclusivo de Eça, não. A maioria dos escritores do Realismo e do Naturalismo o praticavam também. Quase todos valorizavam muito a nudez da verdade e a opunham às obras românticas, tidas por eles como nocivas e tolas. Até mesmo nosso querido Machado de Assis se deixou contaminar por isso em alguns textos como Um apólogo.

     E que tal estes versos do mais revolucionário heterônimo de Fernando Pessoa, o perturbado Álvaro de Campos?

          Mestre, meu mestre!

          A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

          Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

          Natural como um dia mostrando tudo,

          Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

 

     O inquieto Álvaro de Campos não aprendeu, mas o leitor pode aprender que o segundo verso desse fragmento pode ser usado como um lema para se enfrentar a luta feroz do dia a dia, para não se deixar arrastar por decepções e ofensas que podem levar qualquer um de nós a vinganças mesquinhas ou à depressão.

     Na literatura brasileira, temos, dentre muitos outros casos, o poema Morte e Vida Severina (Auto de Natal pernambucano), de João Cabral de Melo Neto, em que, no meio de rimas, métrica e metáforas, há uma edificante mensagem de valorização da vida com o nascimento de uma criança evitando o suicídio de um homem em plena véspera de Natal. Antes, esse homem teve uma conversa com seu José em que se ressalta que o importante é viver, apesar de todas as dificuldades. É pura literatura entranhada de autoajuda.

     Não quero que meus poucos leitores me compreendam mal. Eu não estou dizendo que toda obra literária tem intenção ou conteúdo moralizante e de aconselhamento. Não! De jeito nenhum! O que estou dizendo é que existe uma relação de proximidade entre literatura e auto ajuda, que pode surgir ou não na poesia e na ficção. Não é uma questão de tem que ser, mas de possibilidade. Há livros sem nada a ver com autoajuda e de conteúdo imoral e violento, mas de uma beleza estética ímpar. O Ateneu e O Bom Crioulo abordam temas imorais para a época em que foram publicados e são excelentes obras. A extrema violência presente em O Cortiço não o desmerece.

     Há um aspecto hilário neste assunto que estamos debulhando. É o fato de Charles Bukowski, o velho safado da literatura norte-americana, também ter escrito poemas com toques de autoajuda. Pelo que conheço de sua obra, que tem muitas depravações, nunca imaginei que ele fosse capaz disso. Quem quiser confirmar, é só dar uma olhada no YouTube. Lá estão vários poemas seus recitados.

     Literatura e autoajuda são muito diferentes entre si, mas são primas-irmãs. Será que faz muito sentido glorificar uma e denegrir a outra?