LITERATURA É SENTIMENTO, O RESTO É TÉCNICA
Por Cunha e Silva Filho Em: 21/12/2021, às 11H25
domingo, 24 de julho de 2016
SESSÃO NOSTLAGIA:
LITERATURA É SENTIMENTO, O RESTO É TÉCNICA
Cunha e Silva Filho
Os poemas inspirados, a ficção fluente e espontânea têm, sim, seu valor. Literatura não é só um produto cerebral Não é técnica apenas. É transfusão do espírito encarnado pela palavra ou pelo Verbo, pois a obra literária, assim como a obra artística em geral, tem algo de divino, de pacto com a Criação, quer seja entendida como o relato bíblico de Adão e Eva ( agora, reavaliado pelo Papa Francisco, numa posição que descontentou parte do cardinalato, gerando controvérsias), quer seja entendida cientificamente.
Não importa. Quem disse que o cerebral não implica o elemento da inspiração, do sopro de vida inflamando a técnica? Quem disse que a criação literária hoje está de costas para a inspiração só porque essa percepção remonta ao Romantismo? Alguém já afirmou que esse movimento literário permeia todos os outros, tanto pretéritos quanto posteriores a ele.
Existe um tanto de pudor incompreensível atualmente de confessar que ser romântico é passadismo de saudosistas, de quem vê a criação literária como algo que caiu dos Céus. Quer dizer, o homem dito moderno ou pós-moderno tem medo de ser romântico, de ser nostálgico quando a sociedade e suas construções culturais estão sempre voltando a tempos decorridos.
A televisão é prova disso, já que, nas suas programações, há recorrências a relembranças de filmes, shows, apresentações musicais, entrevistas, as quais recortam fatias do passado. A hipertrofia do presente seria insuportável. O esquecimento voluntário é uma forma de destruição do porvir. Já imaginaram um presente e um futuro sem passado? Já imaginaram um civilização sem a sua história e os seus feitos e fastos?
Os mecanismos psíquicos, no meu juízo, carecem de reequilíbrios constantes que somente a memória histórica, social, cultural é capaz de regular, de harmonizar o nosso mundo interior. A história da humanidade, perdendo a memória, se aniquilaria. Tornar-nos-ia semelhantes aos que são acometidos pelo mal de Alzheimer. Ou seja, a linguagem é a manifestação mais cabal da existência, sem a qual nós todos seríamos fatalmente aniquilados. O mundo sem linguagem seria a morte da humanidade.
Retomemos o fio da meada deste artigo.Ao dizer que o sentimento é basilar, no que tange às formas artísticas, estou pensando em gêneros literários que mais se avizinham da questão do sentimento transformado em obra literária independentemente de que sejam antigas ou pós-modernas ou outras classificações ainda mais recentes, como a ficção que já chamam de “pós-pós-moderna,” segundo li, não faz tanto tempo, numa pesquisa empreendida por alunos de pós-graduação da UFRJ e sob, se não me engano, a supervisão do professor e ficcionista Godofredo de Oliveira Neto.
Quando aludo a essa obras que se aproximam muito do sentimento do “eu,’ da confissão, do memorialismo, da autobiografia, da biografia (em que o sentimento do “eu” se transfere para a responsabilidade de um outro autor, de um ghost writer, ou não), do diário.
Estou levantando a questão de alguém desejar narrar a sua vida, ou parte dela – um decisão de foro íntimo que tem os seus percalços e as suas alegrias ou tristezas.
Não é a vaidade nem o exibicionismo pessoal que animam algum escritor a contar passagens da sua própria vida. Antes, presumo que seja um chamamento intelectual que nos impulsiona, em determinada fase de nossa vida, em geral, o amanhecer da velhice ou mesmo no ocaso da idade provecta.
O ensaísta e historiador Massaud Moisés ( Dicionário de termos literários. 6. ed. São Paulo: Cultrix,1992) analisando o conceito de autobiografia, refere ao sentimento narcisista (eu diria na sua significação positiva, que é natural nesse gênero). Todavia, se na autobiografia existe “o extravasamento do eu” (idem, ibidem, p. 50), isso não se confundiria absolutamente com um sentimento subalterno do cabotinismo, do autoelogio, os quais só apequenariam o valor da autobiografia.
De outra parte, se a autobiografia se centra na figura do autor, ela também se concretiza graças à inescapável interferência da época do autor, ou seja, graças a realidades históricas sociais, culturais, políticas do tempo do narrador, assim como acontece com as memórias.Se há subjetividade do autor, há igualmente amplificações com sub-relatos de pessoas do convívio do autor ou de circunstâncias várias no seu percurso existencial, de tal sorte que, no conjunto, a obra se torna um retrato da vida ou de aspectos consideráveis da existência humana.
A qualidade literária da autobiografia, das memórias, da biografia e do diário é um outro componente desse tipo de escrita íntima. Seu valor vai depender do talento e do instrumental da linguagem, da técnica e dos processos de transformação da história individual, enquanto realidade empírica, em transfiguração obedecendo a fatores composicionais que a elevem ao estatuto de texto literário.
Eis por que Massaud Moisés fala de "processo literário" na escrita autobiográfica, i.e., ela se vale ou tem que se valer de protocolos relacionados ao estilo e narrativa (ibidem) e a modelos vigorantes na época.
Nenhum autor nesses gêneros centrados primordialmente na subjetividade autoral - acredito -, dificilmente negligenciam autores consagrados nessa forma literária. Literatura é um constante diálogo entre contemporâneos como também um diálogo com a tradição.visando, em ambos os casos, a novas perspectivas e avanços em direção ao futuro.
Claramente haverá as adaptações pessoais e fatores originais na construção da escrita autobiográfica e nas memórias ou biografias, assim como nos diários. Da mesma forma, haverá preferências pelos aspectos da vida pessoal do autor, sejam tristes ou alegres. Determinados ingredientes devem estar presentes na feitura da autobiografia e da memórias a fim de que elas atraiam leitor aos relatos apresentados, tais como evitar-se a monotonia, a objetividade e, em troca, empregar-se o humor, o fato pitoresco, as situações embaraçosas, a fim de manterem o canal comunicativo ativo por parte do leitor.
Pessoas que não gostam de se expor não escreverão jamais memórias, autobiografias, diários. Por isso, esses gêneros são propícios àqueles que têm a coragem para a atividade da escrita e dos processos composicionais que, se bem harmonizados, se tornam lições de vida, ao revelarem seus sentimentos com a esperança de que sirvam de exemplo ou para transmitirem, pelo sortilégio da palavra e sentido lírico do texto, uma visão da condição humana, no sentido do resgate responsável de si e de seus contemporâneos. É monumento e documento. Serve à história cultural de um país e sobretudo valoriza a literatura quando desta se serve para produzir - reforço - sentimentos, beleza, verdades, emoções, vivências e conhecimento.
Cumpre, ademais, um papel relevante no campo das sociabilidades como testemunho e voz atuante. Por se exporem é que autores há em nossa literatura que foram criticados por exageros nos julgamentos de pessoas que com eles cruzaram na vida. É o caso dos livros de memórias de Humberto de Campos (1886-1934) e sobretudo do livro Sombras que sofrem (1934), que são crônicas, sendo o autor muito criticado à época da sua publicação, ao contrário do livro de memórias de Álvaro Moreira (1888-1964), Das amargas ...não (1954).