LITERATURA  É PRA RICOS?

CUNHA E SILVA FILHO

         Eu queria saber se  pobre, analfabeto  e negro  se dariam bem  com  o mundo literário moderno  ou  pós-moderno.  Aqui faço exceção a  clássicos  autores    históricos brasileiros dos quais  alguns    chegaram ao estrelato, até  no exterior,  nos países   ditos civilizados,  como  Machado de Assis (1839-1908), José do Patrocínio (1853-1905),  Cruz e Souza (1861-1898) Lima Barreto (1881-1922),   entre outros.

         Estou pensando num  poeta presunçoso  que, proferindo uma conferência, num seminário de literatura numa  universidade   sobre  poesia  e permitindo que a audiência  pudesse lhe   fazer perguntas,  respondeu   à minha indagação: “Poesia  é elitista?” Ao que  me respondeu: “Sim,  é  e tem que ser elitista”. Estranhei  a resposta do dito cujo. Mas me deixei abalar, até hoje,   profundamente  com a sua resposta.

         Essa pergunta também  também lhes faço agora,  leitor. O que me dirá? Tenho  ou não razão  de romoer  a pergunta de tantos anos martelando  na  cabeça  já  cansada e nos olhos  igualmente cansados das leituras  já feita há tantos anos? Antonio Candido (1918-2017),  em  ensaio célebre sobre o direito  à literatura já  pensou  profundamente   sobre essa questão e  concluiu  que só  pela educação   a problemática (com solucionática ?)  seria   amenizada e teria  alguns frutos.

       Aqueles  escritores  citados acima não teriam  a sorte que  tiveram de se  tornarem  conhecidos e respeitados  pelos seus pare se vivessem  nos dias de hoje de milhaares de escritores, ansiosos todos  por reconhecimento.. O meio literário atual, além de  duro como  um rocha, como   também injusto  e excludente,  por vezes  escolhe  um  livro de uma autor  ou autora  de origem humilde não tanto  pelo   valor lidimamente  literário da obra em si, mas  principalmente  porque,   no tempo  em que foi descoberta,  eles, os detentores  do “Aceito” ou  “Não aceito” previam  que daria certo publicamente  a sua  edição   por  novidade de tema  explorado, ou por saber  de antemão  que  o mercado editorial  lhes seria benéfico  financeiramente pela surpresa  de um  escritor completamente desconhecido e  pela questão  crucial  de ser  infelizmente  pobre.

       Alguns editores criam   ícones por razões inconfessáveis   e ao mesmo tempo derrubam  ícones por razões diversas.  Para eles.  o que importa  é a vendagem,   fato imediato,  o lucro  certo e líquido. Bons autores que  vão  procurar  bater  em  outras portas ou paguem   em qualquer   editora  por suas  produções,  boas  ou  ruins.    

        Não  é só  no campo da literatura que  esse fenômeno midiático  ocorre, posto que  o número dos afortunados  que cai  no gosto  do “nihil obstat”  do que seja  bom ou ruim sobretudo  no universo  literário, depende do   poder  discricionário do  que deve  ou  não ser  publicado  e  ascendido  às culminâncias   de uma obra  de peso, de valor,  para eles,  mercantilista. E o lucro é o que efetivamente mais conta  nesse jogo de espelhos invertidos. É aqui  igualmente que a obra se insere no circuito literário.

        Machado, de origem humilde,  deve ter passado  por maus bocados por ser mulato, e  assim como Lima Barreto, por ser  igualmente mulato e por exalar suor  e cheiro de  bebida  alcóolica. A biografia  de ambos,  por exemplo,  evidencia  esse lado  de amargura  explícita,  como  em  Lima e  implícita, como  em Machado. Ambos foram exemplos de   obstinação, seja  pelo  brilho da inteligência,  seja  pela força  poderosa  do legado literário  de cada  um  deles.

         No primeiro,  houve mobilidade  crescente,  no segundo  houve aceitação constrangida  e refreada  pelo real valor  estético da obra  deixada, sendo que também  sofrera,   da parte da crítica castiça e gramatical, a pecha de escritor  “negligente” com a língua,  quando se sabe que,  no tocante à questão do estilo,  Lima  nada tinha de relaxado no vernáculo.

         Seus  indevidamente   considerados  erros de   uso da  língua portuguesa deliberadamente  se situavam  numa nova forma de  dar   expressão  de usos da linguagem  literária,  fugindo do academicismo,  do  normativismo,  das incoerências  entre  a fala  de uma personagem   popular e o discurso hegemônico  de um  narrador   antiquado   e purista   já definido   em tempos  atuais, como   um narrador  ou  um personagem, como praticante  de um  “texto sequestrador” (Donald Schüller)   da  linguagem dos dominados, ou seja, do  “texto sequetrado”(Donald Schüller),conforme  era  a prática  na ficção brasileira   até ao período  literário  denominado  Parnasianismo.   

        Muito  pelo   contrário.  Lima  Barreto já nascera  precursor  do que ia surgindo, com o discurso narrativo  no horizonte da literatura brasileira  com  o advento  do  Pré-Modernismo, para ser  simplesmente  didático.

        Ele apenas  se insurgiu estilisticamente  aos  padrões classicizantes,  do  Parnasianismo   à Coelho Neto, à Rui  Barbosa (1849-1923) já  datado,  razão  pela qual  só foi mais   bem  entendido  posteriormente  pela  críticos   que o estudaram   através de   novas  óticas  de abordagens  do  texto  literário. Sua marca de literariedade, seus temas, seus  personagens,  sua visão crítica   contundente contra  o ambiente  político-social de sua época já o definiam  como um escritor  avançado  para os seus contemporâneos. Os progressistas, no campo da estética,  em  geral, são suscetíveis de  estranhamento, de   interpretações   erradas  e  cediças.

        O  elitismo  editorial   é semelhante à mobilidade social.  Alguns  happy few  são  por ele acolhidos,  outros   caem  no anonimato   definitivo. E é assim  que  se forma  o circuito  literário. O  Brasil  tem  a péssima mania de  títulos  nobiliárquicos, de  “brasões enfatuados da nossa sociedade” (expressão  uma vez  empregada, numa missiva,   pelo  meu  ilustre pai)   preconceituosa  e  hipócrita,  cheia de  vã sabedoria   e pernóstica, valorizando só bens  postos  do colunismo  social e literário  e  desprezando  os não   incensadores  de  gloríolas  efêmeras.

     Assim como  existe o elitismo  editorial,   há,  da mesma forma,  o elitismo   da vida literária,   do colunismo     borbulhante  dos  oportunistas  dos pseudo-valores,  tão bem   descritos  num  livro   pouco lido,   que  é No hospital das letras (1963),  de  Afrânio Coutinho (2011-2000). Outro  nicho,  com as devidas  exceções  de praxe, são os redutos da universidade  públicas, ou as das afamadas  particulares. Quem não  forma  grupelhos nesses recintos,  não tem  vez nem voz.

       Só a muito custo   beneficiam  alguns denodados    afoitos que,   por serem  franco-atiradores,  ali  tentam penetrar,   contudo, mesmo assim,  com  uma  batalha   destemida  e, ao final e cabo,  decepcionante, rumo à desilusão, visto que os  óbices, os inimigos cordiais,  são  enormes e implacáveis, pois nesses feudos, convivem,   em competição silenciosa e corrosiva à procura insana  do estrelismo  dominante e malsão. 

       Outros  feudos  se incrustam  nas chamadas academias  de letras   espalhadas  pelos quatro cantos  do país, onde medram,   com  as poucas  exceções de sempre,   os medíocres  praticantes de felonias  literárias   e sabe Deus como  conseguiram  se eleger  para esses  “seletos”  sodalícios   improdutivos.

      Está faltando  um   ersatz de um autor  do livro   Zeros à esquerda  (1947),  do  demolidor   de medíocre,  que  foi  Agripino Grieco (1888-1973), O livro  nem sei  se  ainda é  lido  por alguma   admirador  de sebos.

     Suponho que o cerne desta crônica,  quero  deixar bem   claro,  não se dirige  aos profissionais   das letras  que  agregaram valores  e aprimoramento  à produção  literária  e cultural   brasileira. O sentido desta crônica  se  dirige  ao bas-fond  supostamente   elitista,    que  se coloca acima do bem e do mal  e ditam   ordens  mercantilistas  àqueles atores  que  não  são  incensados  por um   número de leitores, senhores   todo-poderosos  do que erve  aos seus  altos projetos  literários  de viés  mercantilista e ideológicos.

      Este espaço do editorialismo  serve  e é servido  por  cumplicidades  tácitas  e por razões jamais   devidamente   esclarecidas,   porquanto  são  decisões gestadas  e tomadas  nos subterrâneos da vida editorial   nacional.  Esse meu  pensamento  vai  ao encontro do que  Monteiro  Lobato (1882-1948)  pensava da vida literária  brasileira. Nem queira sabe, leitor,  do que  o autor de Urupês( 1918)  pensava de vida literária e de  alguns autores em terras tupiniquins.  

      Não se pense que um autor  da noite  pro dia,   tendo virado    celebridade, possa,   ao longo de sua vida futura  ser   continuamente incensado. São  estrelas cadentes  que  logo logo  serão  sepultadas  e cairão  no limbo,  onde jazem  figuras  muito mais  grandiosas  em qualidade  de  produção  literária. E isso  acontece nos  vários gêneros literários, desde os  ensaísticos até os  gêneros  mais   em evidência diante do público volúvel e insaciável de novidades: contos,  romances,  novelas,   peças teatrais,    poesia,  memórias,   etc.   

       Vivemos a era  do descartável,  do   efêmero, da banalização de tudo,  até da morte, do imediato esquecido, da descontinuidade e  do apagamento. Nos tornamos seres destinados   ao anonimato, ao  olvido. A palavra mágica  ou  melhor,  o abracadraba, como  diria  um  excelente ensaísta, em livro de viagem à Europa,  Cassiano Nunes(1921-2007), outro esquecido, é “personalidade”,  e esta,   da mesma maneira,    se acha hoje  relegada ao descarte, em favor  do  individualismo   grosseiro, malfazejo e ególatra das sociedades super-afluentes    e indiferenciadas nos erros  e defeitos   que se tornaram  moeda corrente da contemporaneidade