Capa de Literatura do Piauí (de Ovídio Saraiva aos nossos dias), de Francisco Miguel de Moura
Capa de Literatura do Piauí (de Ovídio Saraiva aos nossos dias), de Francisco Miguel de Moura

O esforço em reconstruir a história da literatura de autores piauienses é tarefa contínua e inacabada. Entre os que se empenharam nessa tarefa, é evidente o destaque de João Pinheiro, Herculano Moraes e Francisco Miguel de Moura, cujas contribuições têm servido de parâmetro para novos estudos. Enfatize-se que , ao longo das últimas décadas, a pesquisa de historiografia literária reforçou-se com  estudos empreendidos por nomes empenhados em escrever crítica acadêmica com seriedade e rigor científico; entre os quais, sobressaem Francisco da Cunha e Silva Filho, Carlos Evandro Martins Eulálio, Socorro Rios Magalhães, Teresinha Queiroz (em seus estudos culturais sobre nomes e autores emblemáticos do cânone literário regional), Daniel Ciarlini Castello Branco, Raimunda Celestina Mendes, Feliciano Bezerra, Halan Silva, entre outros.

Em 2015, Francisco Miguel de Moura, da Academia Piauiense de Letras, republicou, por meio de convênio entre a Editora da UFPI e a APL, a nova edição de “Literatura do Piauí” (de Ovídio Saraiva aos nossos dias), com várias mudanças em relação à primeira edição de 2001. Entretextos conversou com o crítico literário Francisco Miguel de Moura, em busca de divulgar a essência de seu pensamento sobre a organização da literatura piauiense. 

 

1.Dilson Lages - Ao buscar o princípio de formação de nossa literatura, o senhor examina, sobretudo, o contexto sócio-cultural que justificasse a existência de um sistema literário. Quase todos os autores do século XIX catalogados pelo senhor constituem sua formação fora do Piauí. Em que sentido a compreensão do Piauí do século XIX, em sua dimensão econômica, cultural e social, pode contribuir para a literatura daquele momento, já que os autores se formaram fora de suas raízes?

l. Francisco Miguel de Moura – Ao pensar a história de uma “Literatura do Piauí”, a partir da primeira edição, minha meta não era classificar autores e obras por datas pétreas como século, por exemplo, como você pergunta. O importante para mim era que as obras fossem escritas por piauiense (natos ou não) e sobre matéria (assunto) e linguagem do Piauí, como está explicito na primeira parte do livro, quando classifico como autor piauiense (logo no início da página, da 2ª edição, que repete a 1ª).  No meu entendimento, completo que os contextos sociais e culturais começam onde nascem e/ou terminam onde vive o autor, pois que a formação cultural não se situa obrigatoriamente na região ou estado onde foi aprimorar sua educação. Se assim fosse, eu teria dado o nome de “Geração da Academia”, como se fosse geração da “Escola de Recife”, onde estudaram quase todos eles. E assim fugiria à minha preferência classificatória de “geração”.

 

2. DL- Fiz a provocação evidente na pergunta inicial de nosso diálogo por uma razão simples: o senhor optou por trabalhar a noção de gerações para catalogar autores e obras com suas respectivas características. A classificação por escolas é praticamente abandonada. Por que essa concepção seria capaz de conceber a dimensão estética da literatura?

2. FMM – Penso que a minha resposta, em parte, já está contida na resposta à sua primeira pergunta. Para completar, a minha ideia de “geração” é a seguinte: Substituiria muito bem o meu intento, sem necessariamente usar o nome de “escola”, classificação que sempre achei antipática e também de certa forma ilusória, como, de fato, qualquer classificação. Mas lembro que minha leitura do grande crítico Wilson Martins influenciou em tal escolha, pois que ele me disse mais o menos o seguinte: “Depois do “Modernismo”, tudo é modernismo, não há mais escolas” (não tenho à mão o texto, por isto o cito de cor). Foi então que, partindo do “modernismo”, transformei todas as outras chamadas “escolas” em “gerações”. Alias separar diferentes formas e períodos literários em “gerações”, depois do “Modernismo”, é moda: Nely Novaes Coelho criou as gerações em décadas:  a de 30, a de 40, a dos anos 60 (nesta me incluiu). Outros autores esticaram as gerações para 15 anos entre uma e outra. Da Europa, veio-nos a ideia de que as gerações mudam de 14 em 14 anos, sejam se referindo à história geral, social ou psicológica. Como é sabido, na história tudo se liga para poder compreender-se o todo, segui o mestre.

 

3.DL - O que, com exatidão, representa no plano do conteúdo e no da forma a literatura escrita por piauienses no século XIX?

3.FMM – Não posso dizer-lhe apenas por séculos, muito menos do século XIX, pois que não lhe daria uma resposta acertada ou pelo menos satisfatória, pois que aí eu teria de escrever uma nova história da “Literatura do Piauí”. A que escrevi casa suficientemente com o estabelecido no Estatuto da Academia Piauiense de Letras, que você bem conhece. Por minha parte, a Minha “Literatura do Piauí”, escrita por piauienses (natos ou não) é igual à literatura brasileira, com suas caraterísticas de conteúdo e linguagem, haja vista que até então ninguém contestou o “Dicionário Piauês” como outros dicionários – e cito aqui os livros do grande escritor Fontes Ibiapina. Em outras partes do Brasil, houve e ainda há muitas dessas diferenças formais no uso de palavras e expressões, incluindo a sabedoria do povo, a qual só enriquece as letras, de modo geral. E isto não acontece apenas no Brasil e com a língua portuguesa. Neste ponto é bom comparar Fontes Ibiapina e Alvina Gameiro, com autores considerados nacionais como Guimarães Rosa. Este último estaria bem situado numa Literatura Mineira, que não se já foi escrita.

 

4. DL - As recentes edições realizadas pela Academia Piauiense de Letras, as quais valorizam também autores do século XIX, entre eles Leonardo Castello Branco, criou um cenário positivo para a revisitação, pela crítica literária, das lacunas sobre o que se escreveu literariamente até 1950, no Piauí ou por piauienses. Quais lacunas, em sua ótica, precisam ser preenchidas pelos estudiosos sobre a literatura piauiense escrita no século XIX?

4. FMM – Creio que são muitas as lacunas. Os novos historiadores é que têm de descobrir e completar. Quando escrevi minha “Literatura do Piauí”, ainda não conhecia “A Criação Universal”, obra principal de Leonardo das Dores Castelo. Naturalmente que hoje os historiados podem ter outra visão que não a minha naquela ocasião. No que escrevi sobre ele, fui orientado pelos autores da “Geração Acadêmica”, especialmente por Clodoaldo Freitas e João Pinheiro. Se se pensar que cada geração tem o seu modo de sentir, ver, ouvir e contar, eu acredito que cada geração escreverá a sua história, literária ou política.  Foi tentando suprir muitas lacunas que pensei escrever “Literatura do Piauí”, deixando o campo aberto para as novas gerações. A ideia de “gerações”, estabelecidas por mim, foi pretendendo preencher muitas lacunas da história do João Pinheiro e também da do meu colega Herculano Moraes. Aí vi como estabelecer a “Geração do Cenáculo”, ajudado pelas anotações de Cléa Rezende Neve de Melo em seu livro “Recordando o Cenáculo Piauiense de Letras” de 1997, e também anotações de pesquisa feita por Áurea Queiroz, com a busca nos principais jornais da época, cujo material primário ainda guardo. 

 

5.DL - O estabelecimento de gerações literárias, apresentadas basicamente em número de 6 pelo senhor, não excluiria autores que não participaram de grupos ou que se anteciparam a seu tempo ou retardaram-se a ele quanto às escolhas estilísticas de sua produção?

5.FMM – Talvez, sim. Mas qualquer classificação é passível de esquecimentos. Mas, na pg.27, quando escrevo sobre “Pré-história da Literatura do Piauí”, tive o cuidado fazer uma relação dos escritores (quase todos eles foram políticos, cientistas, oradores), feita por João Pinheiro, para que sempre sejam lembrados e estudados pelos que desejarem aprofundar e apresentar suas biografias, visto que todos eles são do século XIX, período em que a abrangência do meu trabalho foi menor.

 

6.DL - Veja-se o caso do “Modernismo”. Há uma lacuna em nossa história literária quanto a estudos consistentes do modernismo na prosa de ficção, como se a prosa de matiz moderno só existisse a partir de Renato Pires Castello Branco, e principalmente com escritores que produziram entre 1950 e 1970. Para o senhor, esse vazio se explica por qual razão?

6.FMM - O Piauí era um estado isolado, sem comunicação rápida com o resto do país. Assim, o “Modernismo” nos chegou com grande atraso, quando a “Geração Meridiano” já estava em andamento. Tem também um escritor valenciano, Permínio Asfora, que escreveu romances, por exemplo “Sapé”, que é de 1940 e Berilo Neves, parnaibano que escreveu “A Costela de Adão”, 1929. Mas o que acontece é que os escritores lançavam seus livros sempre onde moravam, por isto não são conhecidos nem lidos no seu tempo no Piauí. O romance verdadeiramente moderno só nos chegou com Renato Castelo Branco, Fontes Ibiapina e O. G. Rego de Carvalho. É muito difícil marcar por “escola” ou por “geração”. Eu escolhi pela última, onde encontrei meios de mostrar, no tempo e no espaço, prosadores e poetas.

 

7.DL- Nossos mais valorosos escritores, pelo menos os consagrados pelo cânone nacional, construíram-se fora do Piauí. Aliaram o exercício da crítica literária na grande imprensa do Sudeste à intensa vivência de linguagem.  Qual sua opinião a respeito?

7. FMM – Certamente isto aconteceu, por causa do atraso do Estado do Piauí, histórica e economicamente, em cujos contextos a literatura vai buscando sua presença. A crítica, seja na província, seja nos pequenos jornais do estado, sempre existe, às vezes nem sempre confiável. Portanto, a base primeira para escolha  é texto, que se tornava de difícil leitura dessas obras que apareciam no Sudeste: É ocaso do romance “Ataliba, o Vaqueiro” (1878), ainda no século XIX, a que você se refere, que precisa ser estudado: um romance que é romântico, mas já adianta como se antecipador dos da “Geração Modernista’, do romance regional de 1930.

 

8.DL Na nova edição de “Literatura do Piauí” (de Ovídio Saraiva aos nossos dias), o senhor busca, por meio de textos, fornecer amplo painel da literatura piauiense. Qual critério o senhor usou para a seleção dos textos?

8.FMM – Não é fácil, mas, como todos os críticos e historiadores, busquei na palavra dos críticos nos textos, tanto quanto pude. Os mais antigos, tive que me contentar com os trechos citados por João e Pinheiro e outros historiadores.

 

9. DL- Quais, o senhor espera, sejam as maiores contribuições de seu livro “Literatura do Piauí”?

9. FMM – Quem leu meu livro com cuidado verá que, em determinadas gerações, busquei atualizar tudo o que pude – assim algumas vezes usei o recurso das minhas “Digressões”, para ligar gerações passadas com as do presente. É o caso da “Geração do CLIP”, e o fiz para que os historiadores que vierem depois de mim tenham um retrato fiel. Não fiz por vaidade, fi-lo mais por precaução, embora antes o Herculano Moraes já o tenha feito por mim.