Cunha e Silva Filho


                          CONSIDERAÇÕES GERAIS. Não obstante este artigo, a princípio, não tenha por objetivo desenvolver uma discussão mais ampla da fase em que se encontra a produção da literatura brasileira contemporânea, alguns tópicos me instigam a fazer comentários que julgo pertinentes no que respeita aos gêneros ficcionais - romance, novela, conto e, de passagem, à poesia, conforme posso vislumbrar a partir do que tenho lido, notadamente quanto a questões do tema e forma, entendida esta como linguagem e técnicas narrativas.
                         Grande parte das melhores e mais recentes histórias da literatura brasileira de que hoje dispomos, quando publicadas em sucessivas edições, não têm dado conta, com maior amplitude e urgência, da novíssima produção literária, aqui considerando o interregno dos anos noventa até agora.  Estou pensando particularmente nas mais famosas delas - a  obra coletiva, dirigida por Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil, em seis volumes, a História da literatura brasileira, de Massaud Moisés, em três volumes, a História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, A literatura brasileira, de José Aderaldo Castelo, em dois volumes, a também coletiva, dirigida por Sílvio Castro, História da literatura brasileira, em três volumes, Ao que tudo indica, os seus autores, exceção talvez para Sílvio Castro,  parecem que deram por encerrada sua missão. 
                     Sabemos que Bosi, autor talvez da mais lida das mencionadas acima, não deu continuidade, nas mais recentes edições, e foram tantas, da produção literária daquele período, ou seja, final do século 20 e primeira década do século atual. É uma pena que as coisas assim tenham ocorrido. É bem verdade que a contribuição da historiadora italiana, Luciana Stegagno-Picchio, autora de uma valiosa obra sobre nossos autores, a sua História da literatura brasileira, cuja segunda da edição, revista e ampliada, data de 2004, infelizmente, por  havcer falecido, não poderá brindar-nos com uma nova edição ainda mais atualizada.     Há algum tempo, me confidenciaram que Eduardo Portella estava preparando uma história da literatura brasileira, assim como Gilberto Mendonça Telles teria dito que estava escrevendo um estudo abrangente de nossa literatura. O poeta Carlos Nejar, tendo escrito sua recente História da literatura brasileira: da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade, prometeu também dar-lhe continuidade enfocando autores da década de sessenta do século passado até nossos dias. Aguardo, pois, que nosso historiadores literários possam dar sua contribuição necessária de, pelo menos, duas décadas para cá. 
                Convém salientar que, na ficção, felizmente, alguns passos já se deram nesta direção, como é exemplo o pequeno ensaio Ficção brasileira contemporânea (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 174 p.) de Karl Erik Schollhammer, docente da PUC-Rio. Neste livro o ensaísta competentemente aborda as mais recentes produções ficcionais da literatura de nosso dias, analisando  alguns  nossos autores mais novos e  fazendo, além disso, um mapeamento das últimas gerações, cobrindo não somente os autores principais da chamada geração 90 como ainda da chamada “geração 00” (não sei se a expressão foi cunhada pelo autor do ensaio). Autores dessa “geração 00” entre outros, são Daniel Galera, Santiago Nazarian, Michel Laub, Cecília Giannetti , Verônica Stigger, i. e., um grupo de autores com livros editados já no século atual.
             No ensaio, Karl Erik faz sua exposição tendo como premissa a questão do conceito de autor “contemporâneo” e de todas as implicações complexas e por vezes fugidias que o termo evoca provenientes da dificuldade de lidar com aquele conceito, seja do ponto de vista histórico-social, seja do ponto de vista da situação dos autores em elaborar sua produção diante das opções de visão atual ou não da realidade brasileira, sobretudo quando ainda se tem em vista um outro conceito de alcance também movediço, que é o de “pós-moderno”.
            Digno de acentuar no ensaio de Karl Erik é  o seu  sentido de oportunidade e de atualização (veja-se-lhe a fundamental bibliografia de ficção, no final do volume, onde estão relacionados, a par de autores mais velhos e ainda plenamente produzindo, aqueles da “geração de 90” e da ‘geração 00”, bem como de obras teóricas e críticas) , pondo o leitor especializado, estudantes universitários e pesquisadores em sintonia com o que de mais atuante existe agora no panorama heterogêneo da criação literária do país. 
          Seu ensaio é positivo na medida da em que traz para o debate a questão dos relações entre os novos autores e a realidade editorial brasileira, assim como são prestimosos seus juízos acerca do novos meios eletrônicos em que a literatura se faz presente, como os blogs de literatura, abrindo um vasto espaço virtual no campo da ficção e, diria, da poesia. A produção literária hoje em dia não pode descartar a interatividade entre autor, leitor, o crítico e atividade editorial, uns e outros não dispensando na ponta todas as mídias de que dispomos nos conturbados dias que vivemos.
         No tocante ao gênero poético, não conheço ainda uma síntese em livro, semelhante ao trabalho de Karl Erik  que, pelo menos, enfoque, num mapeamento seletivo, os novíssimos poetas da “geração 90 e da geração 00”, para usar as  duas classificações  que aparecem no ensaio. Certo que tal mapeamento de conjuntos de autores mais representativos será um trabalho que exigirá tremendo esforço devido à grande quantidade de poetas novos e novíssimos espalhados pelo país inteiro e muitos certamente de boa qualidade, a se ver pela leitura de alguns que nos chegam ao conhecimento. O livro de Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira, de 2007, já foi um bom passo nesta direção. Só assim dotar-se-á o leitor ou leitor especializado de um lúcida visão em conjunto do que se tem publicado no país nas duas últimas décadas. A própria Coleção Contemporânea, da Civilização Brasileira, na qual foi editado o ensaio de Karl Erik, que tem Evando Nascimento como organizador, bem poderia pensar num empreendimento cultural deste porte.
       O que se nos apresenta no momento atual é a constatação de que o historiador literário, o crítico e o ensaísta têm pela frente uma tarefa hercúlea dado que a copiosidade de autores de poesia, mais do que na prosa, ou tanto quanto esta, não para de crescer, segundo o próprio Erik Karl declara em seu estudo.
     UM TEMA E UMA FORMA. Após essas considerações gerais, quero, agora, me deter  em dois aspectos importantes na construção das obras ficcionais de nossos dias: 1) um certo excesso  de personagens desempenhando na narrativa o papel da figura de escritor ou de um professor universitário de letras e escritor;  2) um excessivo uso do recurso metaficcional em romances, decorrente, muitas vezes, daqueles papéis  de personagem narrador às voltas com as vicissitudes de quem lida com a criação literária. Uma das consequências disso seria um problema conectado com a função do leitor, reduzindo este a um seleto e elitista grupo de especialistas e teóricos da literatura, e afastando, por outro lado, o leitor comum ou médio que não alcançaria, em geral, os complexos e intrincados mecanismos ou estratégias metaficcionais. Seria isso uma espécie de crise de assunto ou tema no âmbito da narratividade?
     Posto sejam recursos explicitamente contemporâneos, segundo aparecem em autores como Ítalo Calvino, Milan Kundera, Doris Lessing em The golden notebook (1962), John Fowles, em The French lieutenant’s woman (1969) Guimarães Rosa, num bom exemplo que é o conto “Corpo fechado” da obra Sagarana ou mesmo de remota data, como, entre outros, podem-se ver em Lawrence Sterne, Machado de Assis, ou implicitamente já possamos encontrá-los em Miguel  de Cervantes, em Don Quixote de la Mancha.

       Esses recursos, predominantemente focados no metatexto, de resto, notáveis como elementos novos acrescidos às técnicas narrativas, na realidade, aprofundam o conhecimento epistemológico do que sejam os fundamentos da criação literária. No entanto, se empregado abusivamente, podem ter efeito negativo na recepção do leitor médio, tendo-se em vista o pressuposto de que a nenhum escritor interessas só o leitor ideal que esteja teoricamente sintonizado com o escritor. Afastam por isso o interesse do leitor comum, que frui e aprecia narrativas mais focadas em tramas da vida humana e na perspectiva existencial como representação de mundos possíveis.
     Veja bem, a minha ressalva não se assenta absolutamente na recusa desse tipo - o que seria de minha parte um reducionismo de natureza conservadora -, de narrativa pela narrativa. O que me preocupa é o emprego indiscriminado que alguns escritores de hoje têm feito desses recursos internos tanto no país quanto no exterior, de tal sorte que chega ao cansaço e este se afigura um meio caminho para a exaustão que a ninguém positivamente interessa.
      Até me parece, em algumas vezes, que o ficcionista, para ser bem visto pela comunidade literária, o esprit de corp do meio acadêmico-universitário, para dar prova de atualização, de modernidade, deva por obrigação testar sua experiência de docente de literatura (em geral, tais autores são professores de letras) a fim de mostrar-se, reafirmo, em sintonia, ademais, com alguns autores do exterior. Lembro a este escritor no entanto, que uma ficção bem articulada e sem fazer concessões anacrônicas ao Romantismo, Realismo e Naturalismo ou a outros estilos literários, muito bem pode explorar, em linguagem renovada e com originalidade de composição, os velhos (eternos) e novos temas da humanidade, sem que, com isso, possam ser rotulados de passadistas. Recorde-se que o antigo e o atual – haja vista o sucesso atual que têm tido bons autores de romances históricos - podem ser temas do escritor de hoje, desde que a habilidade do artista transforme o antigo em formas novas e até transgressoras, e mais, sem prejuízo de legibilidade do leitor em contato com a obra.
     Se a literatura, em qualquer parte hoje, persiste na imitação da imitação, no modismo pelo modismo, creio que chegará a impasses que nenhum crítico ou leitor desejarão para o futuro da narrativa. Quanto mais persistir na estratégia de expressar-se literariamente por hermetismos, a condição literária vai seguramente perder leitores, os quais irão procurar sem dúvida as leituras mais excitantes, como a ficção policial e os apelos e facilidades dos bestsellers estrangeiros.
    Ao girar em demasia sobre um mesmo eixo temático do próprio ato de narrar e seus inúmeros percalços, o escritor de ficção tenderá a perder contato com a realidade dos leitores, os quais dele fugirão, uma vez pressentindo tratar-se de obras que para eles não passam de quebra-cabeças ou charadas metaficcionais. O autocentramento, no campo da literatura, não irá resolver todos os impasses epistemológicos sobre as aporias de Sísifo, incapazes de responder plenamente e de vez aos enigmas da criação literária, tal como os surrados problemas da origem da vida ou da existência , ou não, de um Criador do Universo.