Oton Lustosa: Literatura, alguma utilidade?

Oton Lustosa

A publicação de um livro representa o ato último de um trabalho longo e cansativo. Em se tratando de obra literária, esse esforço é redobrado. Refiro-me à prosa ficcional, em que o autor se propõe criar, reinventar a vida, com intenções artísticas; valendo-se das muitas leituras que fez, das pesquisas que empreendeu, das observações do mundo, das reflexões sobre a condição humana e da imaginação sem limites. Mentalize-se alguém diante da tela do computador... Falo de tempos atuais. Pior era à luz do candeeiro, a folha de papel almaço sobre a mesa, na mão a caneta-tinteiro – para escrever e para riscar; do lado o mata-borrão, para recolher os excessos de tinta sobre o texto. Mas voltemos ao computador – o olhar fixo na tela brilhante; na mente do escritor ideias em efervescência, pensamentos em turbilhão... E a primeira frase não sai. Se sai, logo a seguir é deletada; e se outra é posta no lugar, também esta será apagada; e assim sucessivamente, até que vingue uma, e mais outra, e mais outra, e o texto possa, enfim, evoluir. Depois virão as leituras e as releituras; e em consequência delas, os cortes, as substituições de palavras e as reconstruções de frases, até a hora em que o autor terá de autorizar o gráfico a prensar o livro, para que venha ele à luz; e finalmente, numa ocasião como esta, em dia de lançamento, possa enfim o pobre autor gozar algum sossego, receber abraços e cumprimentos efusivos, que lhe darão ânimo a tomar a peito outros projetos literários.  

Mas tudo isso para quê? Ah! é o fazer literário – dirão! Terá alguma utilidade a literatura?  O filósofo búlgaro, Tzvetan Todorov, em sua obra A literatura em perigo (pág. 76), nos diz: “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro.”[1]

Eis aí uma ligeira amostragem – há tantos depoimentos de pensadores sobre o que seja e a que se presta a literatura –, a demonstrar que o fazer literário não é em vão. Eu diria, por experiência, que escrever ficção literária me faz bem. Requer grande esforço mental e pode provocar algum desgaste físico – é verdade –, mas vale a pena. Quão gratificante é ler o próprio texto, impresso na página, e ter a consciência de que há algo muito seu ali – sua invenção, sua arte, sua vida, que pode de alguma maneira ser útil a alguém. Viver é ter experiências, é colocar-se no lugar do seu semelhante, é dar conta de si e de suas circunstâncias, é observar o mundo, é entregar-se a exercícios de imaginação – verdadeiros sonhos em estado de vigília. 

Escrevo prosa realista, neorrealista, ou seja lá o que for (em alguns momentos talvez incursione pelo fantástico). Cabe aos teóricos classificá-la. Detenho-me na observação da realidade mundana, e com a minha modesta arte procuro mostrar algo que seja interessante, que chame a atenção, mesmo que extraído da trivialidade do cotidiano.

O escritor norte-americano, Jerome Bruner, em seu livro Fabricando histórias (direito, literatura, vida), diz que “A narrativa literária ‘subjuntiviza’ a realidade, como sugeri anteriormente – diz ele –, abrindo espaço não apenas para o que é, mas para o que poderia ser ou poderia ter sido.”[2] (pág. 61). Esse mesmo autor, que era psicólogo (faleceu em 2016, com 100 anos), numa outra passagem do seu livro (pág. 30), afirma: “A grande narrativa é um convite para descobrir problemas, não uma aula para resolvê-los. Ela diz respeito aos dilemas, às estradas por onde se caminha – mais aos nossos passos do que ao lugar onde se chega.”[3]

É isso aí, amigos! Tudo o que escrevi, e que vocês me darão a honra de ler, se enquadra nesse contexto. Expus situações fáticas que poderiam ter acontecido ou, quem sabe, poderão vir a acontecer; ou estejam acontecendo. Não há aí, nessas minhas narrativas, fatos reais. Tudo é invenção; não reivindico originalidade, porém. Alguns leitores menos avisados serão tentados a crer que os fatos narrados nos contos, realmente, aconteceram e que o autor dá apenas o seu testemunho do que viu, ouviu ou soube por ouvir dizer. Ora, aí está a essência da prosa ficcional – ser verossimilhante, convincente, ainda que em algumas passagens mostre-se impactante e estranha, mas sempre com aquele não sei quê capaz de prender a atenção do leitor, e fazê-lo refletir, duvidar, questionar, concordar, encontrar, sorrir, chorar, sofrer... E chegar a uma conclusão derradeira, falando de si para si: É a vida!  

Na manhã de hoje, dou publicidade a essa coleção de contos. São narrativas que foram escritas há um bom tempo e aperfeiçoadas nos últimos três anos. As ocupações funcionais não me permitem maior entrega ao labor literário. Por outro lado, não sou apressado em matéria de escrever para logo publicar. Aquela cena a que me referi ainda há pouco, do sujeito na frente da tela do computador, em busca da frase ideal, bem pode calhar na minha figura, admito.

Com a determinação de produzir algo de bom, do ponto de vista literário, escrevi o que se lê nos contos que ora entrego a vocês.  Neles talvez esteja o meu limite... Até o dia em que dei a obra por encerrada, é claro, que de lá para cá muitos sóis já se levantaram – o livro ficou pronto há mais de um ano. Novas chances de aprendizado se nos apresentam a cada novo dia. E assim a vida vai seguindo o seu curso. Urge vivê-la, que é o mais importante; mas, a quem se disponha a tanto, “com engenho e arte”, convém interpretá-la em páginas ficcionais. A Literatura agradece.  

[Oração proferida pelo acadêmico Oton Lustosa, em 14.5.2022, por ocasião do lançamento do seu livro, Em busca de uma rede na varanda – contos, no auditório da Academia Piauiense de Letras.]

 

 


[1] TODOROV, Tzevetan. A Literatura em perigo. Difel, Rio de Janeiro, 2007, p. 76.

[2] BRUNER, Jerome. Fabricando histórias – direito, literatura, vida. Letra e Voz, 2002, p. 61.

[3] Id., p. 30.