Lima Barreto e Machado de Assis

[Zélia Ramona Nolasco dos Santos Freire]

[...] Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá; mas Machado, nunca! Até em Turguênieff, em Tolstói podiam ir buscar os meus modelos; mas, em Machado, não! “Le moi”.Lima Barreto (Correspondências. Tomo II, 1956).

Os escritores, Lima e Machado, tiveram trajetórias de vida e literárias bastante diversas. Machado de Assis era aclamado e respeitado, ainda em vida, e considerado, pela maioria da crítica, um dos maiores no quadro da literatura brasileira; enquanto Lima Barreto, aos olhos da crítica, era visto como o oposto de Machado; era o “desleixado”, o “desajustado” social. Esse antagonismo, entre os dois, estabeleceu-se de forma tão profunda que, até os dias de hoje, ainda é possível perceber sua presença. Machado firmou-se como o escritor oficial; Lima, o maldito. Com isso, a aproximação realizada entre ambos diminuiu e dificultou, também, o reconhecimento do valor literário da obra barretiana, além de ter deixado um legado mais negativo que positivo para Lima.

Para este estudo, os críticos e teóricos literários que se manifestaram sobre Lima Barreto e Machado de Assis apresentar-se-ão em dois grupos distintos. O primeiro está composto por Tristão de Athayde, José Oiticica, Austregésilo de Ataíde, Vítor Viana, Jackson de Figueiredo, os quais se manifestaram em periódicos (PENTEADO MARTHA, 1995). O segundo, composto por Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Bosi e Álvaro Marins, que se manifestaram em trabalhos acadêmicos, demonstrando, assim, o longo período decorrido para uma mudança na avaliação crítica entre Lima Barreto e Machado de Assis, visto que, o estudo de Pereira foi publicado em 1950; o de Bosi, em 1969 e o de Marins, em 2002. Além, dos críticos e estudos citados, recorro, ainda, ao posicionamento e avaliação crítica do próprio Lima Barreto em relação a Machado de Assis, que não deixa dúvidas quanto à avaliação que faz de Machado: “Jamais o imitei e jamais me inspirou” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 256).

De modo geral, os textos críticos que aproximaram Lima Barreto e Machado de Assis constataram a presença da caricatura, da sátira, do humor e da ironia em suas obras. Um dos aspectos, que mais fortemente se arraigou entre a crítica literária inicial, refere-se à oposição de ambos quanto ao estilo. Essa avaliação encontra-se bastante clara no artigo de José Oiticica, de 1916, que escreve, para A Rua, sobre os aspectos linguísticos da obra limana. Ele diz que Lima “[...] é um Machado de Assis sem correção gramatical, porém com vistas amplas, hauridas no socialismo e no anarquismo” (OITICICA, 1916 apud PENTEADO MARTHA, 1995, p. 82). Machado de Assis notabilizou-se por escrever em uma linguagem altamente acadêmica, isto é, dentro do mais alto padrão linguístico vigente. Daí a facilidade com a qual a crítica contou para classificar a escrita de Lima Barreto como totalmente fora do padrão vigente, pois utilizavam padrões linguísticos opostos. Sobre isso, Lima fez uma observação na carta escrita a Austregésilo Ataíde, datada de 19 de janeiro de 1921: “Machado escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 257). E posiciona-se quanto à opção feita: “Não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto” (1956, v. XVII, p. 257).

Ainda no ano de 1916, Jackson de Figueiredo, em A Lusitana, aproxima os dois escritores no que se refere ao recurso da ironia. Porém, em lados opostos. Conforme Jackson, Lima Barreto não possui delicadeza e intenção filosófica; sua ironia forte, chicoteante, assemelha-se à de Swift. Machado de Assis, porém, revela leveza e intenção filosófica, aproximando-se do sombreado pudor de Sterne. A avaliação de Jackson de Figueiredo diferencia-se das anteriores, pois não fica somente nas críticas a Lima Barreto, observando que o criador de Policarpo Quaresma: “[...] supera ao criador de Dom Casmurro, por ser mais humano e mais verdadeiro” (FIGUEIREDO, 1916 apud PENTEADO MARTHA, 1995, p. 83).

Em 1919, no “Jornal do Commércio”, Vítor Viana aborda a questão do humorismo na obra dos dois grandes escritores, considerando-os próximos aos ingleses, mas ressalva que, em Machado, o humor reveste-se de doçura e resignação, uma vez que o escritor pretendia melhorar os homens; já, em Lima Barreto, o humor não é resignado, trazendo marcas de revolta, de protesto e mais ardor político. Essa avaliação seria contraposta, em 1920, pela de Austregésilo de Ataíde.

João Ribeiro também chamou a atenção para a questão do humorismo. Segundo ele, em Lima, o humor é menos delicado, menos tímido, mais veemente e mais desenvolto, em comparação ao humor presente na obra de Machado. Nesse mesmo ano, Tristão de Athayde escreve: “Um discípulo de Machado”. O título do texto já explicita a opção de Athayde por Machado e o humor é, novamente, objeto de comparação entre ambos. Para Athayde, Lima é humorista da estirpe intelectual de Machado de Assis, mas, na semelhança, aponta diferenças: afirma que o mestre chegou ao humorismo perfeito, ou seja, ao equilíbrio supremo entre pensamento e estilo; o discípulo, por sua vez, atingiu o humorismo do primeiro impulso, responsável pela impregnação, em sua obra, de incerteza, desleixo, e certa incontinência de pensamento. Ressalta mesmo o caráter de discípulo de Lima: “[...] ainda não alcançou a impassibilidade do ‘humour’. Lá chegará, se vencer o tédio de viver” (ATHAYDE, 1919, p. 13).

Somente em 1920, aparece uma voz dissonante das manifestações críticas destacadas até o momento. É o caso de Austregésilo de Ataíde, que, em carta a Lima Barreto, elogiando-lhe o romance, Histórias e Sonhos (1920), protesta contra a aproximação que alguns críticos haviam feito entre Lima Barreto e Machado de Assis, pois, a seu ver, seriam dois escritores que apresentavam estilos, tendências e temperamentos totalmente diversos. Austregésilo deixa transparecer sua preferência e admiração por Lima Barreto. Vê, Machado de Assis, como “pessimista desapiedado”, que “se embebe do puro fel das suas revoltas íntimas” e, ainda, “onde o sangue mulato animava o gênio dum heleno sem parelha”. Como se vê, as críticas a Machado não são poucas, embora reconheça a qualidade de mestre do escritor: “Donde se vê que o mestre dos mestres, Machado de Assis, era genial e propositadamente perverso, sem olhos para a bondade humana [...]” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 253). O crítico avalia exatamente a questão do determinismo de Lima, em contraposição ao alheamento de Machado, no que concerne às relações das personagens com o meio. Conforme Austregésilo, esse alheamento de Machado denota a falta de sintonia entre os personagens machadianos e a realidade circundante.

Mais uma vez, ressalta-se a linguagem rebuscada usada por Machado, bem como a forma impecável utilizada para retratar seus personagens, o que, segundo Austregésilo, dá a impressão de artificial. Austregésilo não para aí; a comparação que faz entre os dois escritores vai mais além. Outro fato a destacar é a questão da ironia, a qual, embora presente nos dois escritores, apresenta-se de maneira muito distinta. Ataíde analisa a ironia em Machado: “Ele expõe a chaga purulenta, elegante e risonho, sem compadecimentos da dor alheia, tal como um médico, num anfiteatro de lições [...]” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 255). Ainda analisando a ironia, dessa vez referindo-se a Lima: “Você vive e vibra com os seus personagens, porque eles são filhos da sua alma, rebolada, como a deles, nos descalabros da existência, e experiente das misérias que os afligem” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 255).

As comparações entre um escritor, tido por genial e outro que, apesar do talento, encontrava dificuldades para ser aceito, são pertinentes. Nota-se que, ao serem aproximados, Machado permanece incólume diante da crítica – mesmo essa sendo negativa – tal é o poder e o prestígio conquistado. Enquanto que, para Lima, cada palavra que venha enaltecer a obra e o escritor é de extrema relevância, tal é o contexto ao qual a crítica o relegou. Cada qual fez o caminho que lhe foi possível traçar dentro do contexto e da época na qual viveram e escreveram suas obras. Não obstante, algumas características e a descendência africana são compartilhadas pelos dois escritores. Quanto à descendência, constata-se um fato curioso: essa só é explícita quando os críticos se referem a Lima Barreto, pois, quando aludem a Machado de Assis, jamais o designam como mulato explicitamente, quando muito, citam sua condição de mestiço. Esse fato, intencional ou não, denota o posicionamento preconceituoso da crítica. O pior é perceber que Lima era conhecido como “mulato desleixado”, com toda a carga negativa que o vocábulo mulato pode sugerir como termo oriundo das teorias naturalistas sobre a degeneração de animais, derivado de mulo, animal que não se reproduz. Por analogia, as teorias racistas denominaram mulato ao mestiço de branco e negro, apregoando, inclusive, sua esterilidade após algumas gerações. Por essa razão, no início do século, o termo mulato vinha sempre carregado de um sentimento muito forte de discriminação racial e social: desleixado, sujo, estéril, bêbado e vingativo (PENTEADO MARTHA, 1995, p. 195).

Ainda quanto às aproximações, ambos fizeram parte do funcionalismo público. A diferença primordial entre eles está na forma como cada um desenvolveu seu trabalho literário e, principalmente, a forma como se posicionaram diante dos fatos. A postura de Machado de Assis diante da literatura e do social – o que o tornou, na época, modelo literário – fez com que Lima Barreto jamais gostasse de ser comparado ao escritor: “[...] sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 256). Embora Lima reconhecesse os méritos de escritor, em Machado, não aprovava a atitude dele frente à miséria humana: “Machado é um falso em tudo. Não tem naturalidade. Inventa tipos sem nenhuma vida” (ATAÍDE, O Cruzeiro, 1949).

A postura de Machado de Assis é vista, por esse ângulo, não somente por Lima Barreto, como, também, por uma parte da crítica. Um forte argumento da crítica de oposição a Machado é o de que ele escrevia de forma reticente, como quem prefere escrever nas entrelinhas. Para não se confrontar com a elite, recorria a muitos subterfúgios. Tal procedimento está implícito na maneira como Machado encara o fato de ser negro; apesar de mulato, não colocou sua pena em favor da causa. Enquanto Lima assume essa condição abertamente, lutando, sofrendo e reivindicando maior espaço para si mesmo e para seus semelhantes, o outro, porém, age de forma totalmente oposta. Dessa forma, Machado não critica diretamente a sociedade burguesa – pela qual foi aceito – e, se o faz, é de forma sutil, camuflada. Exige, portanto, para sua apreensão e compreensão, um leitor perspicaz que seja capaz de ler as entrelinhas; daí a avaliação equivocada do suposto “alheamento” de Machado por uma parcela da crítica, na virada do século XIX.

Como é sabido, no Brasil, o processo de formação de leitores foi um tanto quanto demorado e, ainda hoje, ocorre certa relutância quanto a essa atividade. Se fosse possível medir, diria até que o grau de dificuldade para ler Machado aumentou consideravelmente em relação ao início do século XIX. Em função disso, destaca-se o trabalho da pesquisadora Azevedo (2008) que, em muito, contribui para a divulgação e compreensão do escritor; ministrando palestras, organizando seminários, principalmente no ano de 2008, época que se comemorou o centenário da morte do “velho bruxo”.

Diante da concepção de literatura militante da qual Lima Barreto era adepto, Machado de Assis teria sido útil à sociedade se tivesse posto todo seu potencial a serviço do povo, de forma que fosse inteligível e atingisse os que realmente necessitavam de orientação. Ou seja, a população que se encontrava totalmente desamparada e relegada pelo poder público. Lima, ao tomar conhecimento do discurso, feito por Pedro Lessa, sobre Machado, no qual ressaltava o “extraordinário poder de abstração” (BARRETO, 1956, v. X, p. 35), do autor de D. Casmurro, reagiu de acordo com os princípios estéticos que sempre defendeu: “Um escritor, cuja grandeza consistisse em abstrair fortemente das circunstâncias da realidade ambiente, não poderia ser – creio eu – um grande autor. Fabricaria fantoches e não almas, personagens vivos” (1956, p. 38). Vê-se que Lima encara a arte em função do meio em que vive, e assim se manifesta sobre as críticas que João Ribeiro faz sobre o romance Numa e a Ninfa (1915) e em defesa de sua personagem Edgarda: “Nós, dado a fraqueza do nosso caráter, não podemos ter uma heroína de Ibsen e, se eu a fizesse assim, teria fugido daquilo que o senhor tanto gabou em mim: o senso da vida e da realidade circundante” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 246). Com isso, torna-se transparente um traço distintivo entre os dois escritores: o tratamento dado às personagens sob uma visão determinista. Para Lima, o “extraordinário poder de abstração”, tido por Pedro Lessa como característica singular e elogio para um bom escritor, antes, é um defeito. Ao contrário do alheamento de Machado de Assis, no que concerne às relações das personagens com o meio, apontado por Austregésilo, Lima Barreto coloca-se biograficamente em suas obras. E essa postura nelas se reflete de forma ambígua, ora de forma positiva, ora negativa, dependendo da crítica. Mas o que transpassa boa parte da fortuna crítica de Lima Barreto é que ele deveria ter sido mais impessoal, característica que, segundo seus críticos, engrandeceria a obra barretiana.

De modo geral, a recepção crítica inicial da obra de Lima Barreto, apresentada em periódicos, foi bastante contrária ao projeto literário do escritor, pois se via apenas o descuido com a linguagem, o aspecto panfletário e o abuso do traço caricatural nas avaliações feitas. Percebe-se, nelas, uma crítica presa à ideia de uma literariedade ligada a um alto grau de elaboração ficcional.

Como constatada, a mudança na avaliação crítica da obra barretiana ocorreu de forma lenta e gradual. Somente a partir de 1970, o interesse por essa obra aparece com alguma constância. Isso porque a obra de Lima Barreto passa a ser objeto de pesquisa para a elaboração de teses e dissertações. Nesse período, foram comemoradas duas datas significativas: o cinquentenário da morte do escritor (1972) e o centenário de seu nascimento (1981), o que propiciou o interesse por Lima Barreto, tanto na Academia quanto na Imprensa. São dessa época os ensaios de Carlos Nelson Coutinho (1974), Sônia Brayner, (1973), Antonio Candido (1976) e, também, as teses de Osman Lins (1976), de Antônio Arnoni Prado (1976) e de Carlos E. Fantinati (1978).

Dando sequência à abordagem comparativa entre os escritores Lima Barreto e Machado de Assis, fundamentada em pesquisas acadêmicas, pretende-se demonstrar se ocorreu de fato uma mudança na avaliação crítica da obra barretiana, quando contraposta à de Machado de Assis. Essa mudança parece ter início com o ensaio de Alfredo Bosi: “Ficção: Lima Barreto e Graça Aranha” (1969), no qual Bosi aponta para uma relação determinista entre vida e obra: “A biografia de Afonso Henriques de Lima Barreto explica o húmus ideológico de sua obra: a origem humilde, a cor, a vida penosa de jornalista pobre e de pobre amanuense, [...]” (BOSI, 1969, p. 93).

Ao se aprofundar na avaliação sobre o estilo de Lima Barreto, Bosi o considera, ao mesmo tempo, “realista e intencional” (BOSI, 1969, p. 95), observando que não é apenas no campo ideológico que coexistem espírito crítico e representação, essa coexistência se verifica também no campo estilístico. Ou seja, o que aparenta ser apenas simplicidade, naturalidade e instinto, no estilo limano, deve ser, também, uma forma de combate: “[...] as cenas de rua ou os encontros e desencontros domésticos acham-se narrados com uma animação tão simples [...] e deixam transparecer naturalmente a paisagem, os objetos e as figuras humanas” (BOSI, 1969, p. 95). Para Bosi, expressão e representação no texto barretiano estão em sintonia, uma vez que o autor procurava o meio de expressão que melhor pudesse representar o Rio de Janeiro, em sua produção.

Bosi observa que uma leitura mais detalhada da obra barretiana revela semelhança estilística com Machado de Assis, em relação à dubiedade e à contradição, considerando, porém, a superioridade de Machado:

Um encontro mais íntimo com o estilo de Lima Barreto sugere algumas semelhanças notáveis com o “andamento” da frase machadiana cuja velada ironia se entremostra nas restrições, nas dúvidas, nas ambíguas concessões à mentalidade que deseja agredir: é a linguagem do “mas”, do “talvez”, do “embora”, sistemática nos romances do Machado de Assis, dispersa e isolada na urgência polêmica e emocional desta Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. (BOSI, 1969, p. 101).

Como se percebe, ocorre uma inversão na avaliação crítica: antes, o desleixo e a imperícia no uso da língua desqualificavam o escritor Lima Barreto; agora, passam a representar indícios de modernidade na obra barretiana, uma vez que apresentam “semelhanças notáveis” à frase machadiana.

Lúcia M. Pereira, em História da Literatura Brasileira: Prosa de Ficção (de 1870 a 1920), adota, em sua abordagem, o ponto de vista histórico, apregoando que “[...] numa literatura incipiente se deve atribuir importância às circunstâncias do tempo e do meio” (PEREIRA, 1950, p. 13). No capítulo “Prenúncios Modernistas”, expõe sua avaliação sobre a obra de Lima Barreto; aqui também Machado de Assis serve de contraponto a Lima Barreto. A crítica faz um paralelo entre a vida e a obra de ambos, ressalta algumas semelhanças, prevalecendo as diferenças. A balança continua a pender favoravelmente para Machado de Assis, embora Lúcia M. Pereira demonstre um avanço para a equivalência crítica entre os dois escritores. Refere-se, a Lima Barreto, como “a voz áspera e amarga”, “um atormentado reclamava o direito de se fazer ouvir”, e marca as diferenças: enquanto a “vida de Machado de Assis descreveu uma harmoniosa curva ascendente, a de Lima Barreto se desenvolveu em ritmo catastrófico” (PEREIRA, 1950, p. 277). Não deixa, porém, de ver a obra de Lima Barreto como “prenúncios modernistas”, isto é, um elo entre o romance machadiano e as tendências da ficção modernista depois de 1930.

Observa-se que a autora, ao afirmar que ambos se aproximam por terem se utilizado exclusivamente da ficção, e, por intermédio de seus personagens, interrogarem a existência, aponta a diferença, ao afirmar que Machado usou da literatura “como uma interrogação, uma decifração de enigmas”, enquanto Lima Barreto encarava-a sob o mesmo ângulo, porém era mais positivo, “só chegava a tais questões através da realidade próxima”; portanto, a seu ver, de forma menos apurada. Continua a avaliação da obra barretiana pelo viés vida e obra, principalmente ao avaliar o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá: “O homem bom e sensível, o burocrata azedo e o boêmio insubmisso, que coexistiam no autor sem se fundirem, tiveram parte na feitura do livro” (PEREIRA, 1950, p. 282). Outro ponto, já ressaltado pela crítica e que Lúcia M. Pereira reafirma, refere-se ao descuido com o qual, a seu ver, Lima Barreto escrevia. Para depois, ver, na “[...] natural limpeza de seu estilo, a sua permeabilidade às solicitações da natureza, a sua vibração íntima, as suas precisas anotações psicológicas, de sabor muitas vezes machadiano” (PEREIRA, 1950, p. 283).

Para Lúcia M. Pereira, das obras de Lima Barreto, o Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá é a mais literariamente composta. No entanto, Lima Barreto optou por estrear nas letras com o Isaías Caminha, enquanto o Gonzaga de Sá permaneceu na gaveta, só vindo a público em 1919. É possível que isso tenha ocorrido, talvez, em função de esse ser mais “machadiano”, nas palavras do próprio Lima: “Era um tanto cerebrino o Gonzaga de Sá, muito calmo e solene. Pouco acessível, portanto” (BARRETO, 1956, v. VXI, p. 13). Tanto é possível, que alguns estudiosos veem, na personagem Augusto Machado, pseudo-autor e narrador do livro, uma homenagem velada ao “bruxo do Cosme Velho” (FIGUEIREDO, 1995, p. 69). Pereira, porém, depois de destacar trechos nos quais “[...] o processo psicológico é o mesmo, o mesmo o método dos dois romancistas” (PEREIRA, 1950, p. 283), julga como vagas essas semelhanças e diz não ser possível falar em influência, mas, sim, em coincidências, nas atitudes literárias de dois escritores, noutros pontos tão diferentes. Aproxima-os, definitivamente, no entanto, ao pensar em uma possível evolução do romance: “O autor de Policarpo Quaresma será um continuador da linha de Dom Casmurro, representando a ligação entre a sua obra e as correntes modernas” (PEREIRA, 1950, p. 284).

O estudo de Álvaro Marins de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira (2002), da UFRJ, aproxima os dois escritores no que se refere à elaboração artística de uma postura crítica diante da realidade histórica. Conforme Almeida, tanto um quanto o outro foram autores meticulosos na criação artística, o que significa idas e vindas na difícil construção de uma obra orgânica. De forma simplista, Machado de Assis apareceria como um escritor do final do Império e Lima Barreto surgiria como um escritor da Primeira República, ou República Velha. Para Almeida, se os contextos históricos parecem distanciá-los, a complexidade do processo de evolução política que o País viveu durante o período fez – e faz – parte de um continuum, possibilitando, pelo menos em tese, estabelecer a aproximação.

Assim como a crítica de hoje entende que Machado foi um intérprete crítico do Império – mas não só do Império –, conforme Robert Schwarz, e em grande medida corroborada por outros pesquisadores, como John Gledson, Raimundo Faro e Kátia Murici, para citar apenas alguns, da mesma forma, Lima Barreto foi um crítico da República velha – cujos fundamentos insistem em se manter até os nossos dias –, tomando-se por base, aqui, o estudo de Sevcenko, vertente de análise à qual podem se agrupar também, grosso modo, Antonio Arnoni Prado, Carmem Lúcia Negreiros e Beatriz Resende.

Outro ponto, em que Almeida aproxima os dois escritores, refere-se ao tratamento do humor na criação das respectivas obras, pois esse funciona como o elemento-chave da construção formal. Machado de Assis estaria mais para a ironia e Lima Barreto mais para a sátira. Almeida aborda os dois aspectos constituintes da criação literária em ambos, a ironia e a sátira, com o objetivo de indicar de que forma o humor atua como elemento de crítica ideológica na obra dos dois escritores; as obras analisadas foram: “A mão e a luva”, de Machado de Assis, e “Numa e a Ninfa”, de Lima Barreto. Almeida refuta algumas questões críticas sobre o antagonismo entre Lima e Machado. Questiona a classificação romântica atribuída ao Machado da primeira fase; é contrário ao fato de esse autor não se envolver com a sociedade e renegar a própria raça, isto é, sendo mulato e vivendo em pleno período abolicionista, não ter engajado sua literatura nessa campanha, assim como uma suposta ausência de negritude em Machado. Enfim, apresenta uma análise de forma bastante elucidativa, com saldo positivo para ambos os escritores. Constata-se que Almeida, através de sua análise, consegue estabelecer uma justa equivalência entre o autor de “Policarpo Quaresma” e o fundador da ABL, embora deixe explícita sua preferência por Machado. Esse é o papel que se espera de uma nova postura crítica: avaliar sem, contudo, desprivilegiar, desmerecer a obra ou o autor."

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Fonte:

ZÉLIA RAMONA NOLASCO DOS SANTOS FREIRE: "A CONCEPÇÃO DE ARTE EM LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS". (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientadora: Profa. Dra. Sílvia Maria Azevedo). Assis, 2009.