Dílson Lages prefaciou a nova edição de Trechos do Meu Caminho, de Leônidas Mello
Dílson Lages prefaciou a nova edição de Trechos do Meu Caminho, de Leônidas Mello

Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras

A vida, como manifestação da linguagem, surge de narrativas e da relação delas com o tempo. As representações que se originam de sujeitos, inseridos no tempo e no espaço, materializam debates, controvérsias, sonhos e principalmente memórias. Sobre Leônidas de Castro Mello, um dos mais propalados homens públicos do Piauí, muitas narrativas chegaram aos dias correntes, inclusive, a que escreveu de si na autobiografia “Trechos do Meu Caminho”, clássico do memorialismo regional, agora reeditado pela Academia Piauiense de Letras.

Leônidas de Castro Mello, professor, médico, governador do Piauí entre 1935 e 1945, segundo os registros de vários historiadores, legou ao Estado um rol de conquistas de infraestrutura impactantes para a qualidade de vida dos piauienses na primeira metade do século XX. Entraria para a memória coletiva, entre outros registros, “como homem compromissado com seu tempo e de profundo senso humanitário”. Pontuaram historiadores que ele abriu estradas, construiu escolas e casas de saúde; modernizou Teresina; enfim, construiu, a seu tempo, “uma nova visão sobre o lugar do agente público”.

No dizer do historiador Wilson Carvalho Gonçalves, “Dr. Leônidas Mello consagrou à questão da educação e da saúde verdadeiro culto, que se corporificou na construção do Hospital Getúlio Vargas, em postos de saúde e grupos escolares nos principais municípios piauienses”. Consolidou-se com um líder nato, mantendo-se fiel aos princípios de seu pensar e agir.  

Os ares de Modernidade que Leônidas e o Estado Novo trouxeram ao Piauí, de acordo com os registros oficiais, não se limitaram a obras como o novo prédio da Escola de Aprendizes e Artífices (hoje Instituto Federal de Educação) e do Liceu Piauiense; ao Hospital Getúlio Vargas; à ponte metálica sobre o Rio Parnaíba. Germinavam as sementes da cultura, em um de seus sentidos mais amplos, o da preservação do patrimônio imaterial. É nesse período que se constrói o Arquivo Público do Piauí (Casa Anísio Brito), já reunindo documentos do século XVII e XVIII.

Em 1937, conforme relata o romancista e crítico literário João Pinheiro, configura-se, por lei, datada de 9 de julho, o apoio do interventor em forma de subsídio à APL, “para ocorrer às despesas da Academia Piauiense de Letras, especialmente com a publicação da sua Revista e de obras avulsas dos seus membros efetivos e de quaisquer piauienses vivos ou mortos de reconhecido valor nas ciências, artes e letras” (2015:72). Seria, pois, a ação de Leônidas uma das primeiras iniciativas públicas que se tem conhecimento de amparo à edição de livros no Estado.

A inquietação de Leônidas Mello em preservar a memória e versões de sua época se estendeu, também, para a esfera pessoal. Em 1976, a Companhia Editora do Piauí (COMEPI) trazia a lume a edição de Trechos do Meu Caminho, livro de memórias do ex-governador. Embora anunciasse que a obra se trata de uma simples revisitação dos fatos havidos consigo, o autor legou algumas das mais belas páginas do memorialismo na literatura piauiense. Passados 42 anos de sua primeira edição, o livro se apresenta agora às gerações de hoje pela Coleção Centenário (APL), permitindo não apenas a reavaliação de um período significativo da vida política e social, sob o olhar de um de seus principais líderes, mas também a possibilidade de reencontros ou descobertas da vida privada da aristocracia, de costumes e valores de modelo social fortemente marcado pelas tradições, em linguagem vazada de comovente lirismo.

Há em cada ser uma tendência natural de uniformizar o tempo, em processo de causa e consequência o qual deseja as horas lineares, palpáveis, concretas. Entretanto, o tempo pertence à memória e à percepção e, como lembra Benedito Nunes, ao revistar o projeto literário de Proust, “a revivência do passado no presente, retira o presente do fluxo do tempo” (2013:60), para favorecer o sentido da existência e adquirir, o momento, importância psicológica, filosófica e estética. Esse é o estado que alcança Leônidas de Castro Mello em “Trechos do Meu Caminho”: predominam em sua escritura “as intuições do sensível” para a sondagem do eu, do estar no mundo e da autoavaliação do belo, do bem, da virtude; ainda que, em linhas gerais, organize-se toda a narrativa, em sua superfície, pela constituição biológica da idade (infância, adolescência, juventude, maturidade), processo logo subvertido pelo leitor ao se deixar absorver pelo texto.

Assim, autoriza “Trechos do Meu Caminho” a recuperar explicações de kant sobre a relação entre o tempo e estado do sensível: “O tempo não é mais do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição a respeito de nós mesmos e de nosso estado interior”(2000:104).  Acrescenta ele que “o tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos, ele não pertence nem a uma imagem, nem a uma posição etc., pelo contrário, ele determina a relação das representações em estado interno. E, precisamente porque essa intuição interior não apresenta imagem alguma, nós a procuramos suprir essa falha por meio de analogias e representamos o curso do tempo por uma linha que se prolonga ao infinito, e cujas diversas partes constituem uma série que não tem mais que uma dimensão; “ (idem)

(...) E conclui: “(...) A representação do próprio tempo é uma intuição, pois todas as suas relações podem ser expressas por uma intuição exterior” (ibidem).  

Em suas memórias, infância, adolescência, juventude e maturidade, para Leônidas Mello, convertem-se no objetivo de revelar-se sincero, desnudando-se, a si e a seu tempo, da maneira mais natural possível, ora pela evocação da ingenuidade de ser criança, ora pelo atendimento das convicções pessoais. Isso se revela, inclusive, na materialidade da escrita, feita conscientemente em forma de diálogo, o que consuma tanto o anseio de expressar as verdades pessoais quanto de ser o mais claro e próximo possível dos eventuais interlocutores: “Recorro geralmente, à forma de diálogo para a narração dos episódios e ocorrências aqui revividos. Com isso, viso a tornar a exposição mais agradável; a leitura, menos pesada. Tais diálogos não reproduzem, é claro, as mesmas palavras ao tempo proferidas pelas pessoas mencionadas: correspondem, entretanto, a absoluta exatidão e fidelidade aos fatos” (2019, 34).

Toda a narrativa desenvolve-se em dois planos centrais: a evocação do amor à cidade natal, Barras do Marathaoan, e a história pessoal de superações, culminando na vitoriosa carreira no magistério, na medicina e, sobretudo, na política. Ao reconstruir a infância e a adolescência, minunciosamente, recupera pedaço precioso do cotidiano do chão de nascimento na primeira metade do século XX. Lê-se a geografia, as relações sociais e familiares, os costumes e o modo de fazer política em Barras, com destaque especial para a família, ponto de partida e de chegada da narrativa. Assim, inicia o texto com a devoção aos pais, principalmente, à dedicação e o rigor do pai Regino Mello ao trabalho: “Seu dia começava cedo, ainda escuro. Invariavelmente levantava-se entre quatro e cinco horas (...) No trato com a família, fazia questão de ser obedecido, de ser realmente o chefe. Nisso era exagerado. Nada se resolvia, nada se fazia sem a sua audiência, o seu consentimento. Fomos pois criados e educados em regime um tanto patriarcal, de austeridade e disciplina. (...) Era pai extremoso” (2019:41).  

Na descrição da infância e da adolescência, ganha relevo o modo como eram “criados” e formados os filhos da aristocracia da pequena cidade, ao mesmo tempo em que se percebe um panorama da educação no lugarejo. A educação formal iniciava-se ali, nas primeiras décadas do século XX, em casa, estendia-se pela escola do mestre Freitas e, posteriormente, pela escola fundada pelo barrense Arimathéa Tito; então formado em Direito, estabelecera-se por lá. A formação religiosa era tida como vital. Recorda-se Leônidas como ocorreu:  

“Aprendi as primeiras orações e primeiras noções de catecismo com minha madrinha Maroca Pires – moça da família Pires Ferreira, criada desde pequena por minha tia Cinó que a estimava como filha. (...) Todas as tardes, mais ou menos às quatro horas, minha mãe me lembrava:

-- É hora de ir pra “reza”. Lave seu rosto, as mãos e os pés bem lavadinhos, mude a roupa e vá.

(...)

Ensinava a duas turmas e considerava a aprendizagem realizada quando sabíamos cinco orações: Padre Nosso, Ave Maria, Creio em Deus Pai, Eu pecador e Salve Rainha. No dia de despachar-nos, chamava de uma por um e despedia-se com abraço e um beijo na testa. Recomendava:

-- Rezem por mim, rezem sempre pra eu ser feliz. É o pagamento que eu quero de vocês” (2019:62).  

Ao concentrar-se em examinar a juventude e a adolescência, procura Leônidas Mello enfatizar cada passo decisivo de superação o qual projetou as vitórias. Infere-se que a dedicação aos estudos, a persistência, a honestidade e alguns momentos de sorte (leia-se oportunidade) formavam o contexto para que, por mérito, esforço e trabalho, construísse a história pessoal de sucesso. “Trechos do Meu Caminho” representa também oportunidade de (re)leitura da política piauiense na primeira metade do século XX, com o rico painel de partidos políticos, alianças e desdobramentos da história política do Estado e os reflexos na vida social piauiense.

O livro é todo ternura. Todo feito desse sentimento de quem procura na natureza, no convívio com afetos e pessoas que dão identidade e pertencimento à fisionomia humana, o profundo sentimento de carinho. A ternura é visivelmente recorrente todas as vezes que alude, por exemplo, ao Marataoã, poucas vezes tão bem descrito, em lirismo cativante, como o faz Leônidas em trechos como este:

“O rio do lado oeste passa tão perto da cidade que, nalgumas casas, as cercas dos quintais vão até alcançar as águas que penetram alguns metros a dentro. O rio fecha assim, servindo de cerca, o fundo dos quintais. Essa margem, na parte que corresponde à cidade, é inteiramente destituída  de vegetação e, por isso, de várias ruas, pode-se avistar o grande espelho de superfície d’água, sempre tranquilo, encrespado pelo vento que sopra manso a qualquer hora. Há pontos destinados a banho, outros à lavagem de roupas, outros à apanha d’água para usos domésticos” (2019:70).  

Com esta edição, a Academia Piauiense de Letras devolve à sociedade piauiense uma obra basilar para se entender como pensava o Piauí nas cinco primeiras décadas do século XX. Obra significativa, porque escrita por uma testemunha ocular da história, já despida do poder, mas obstinada a entendê-lo em sua inteireza, a partir do lugar que é o distanciamento da esfera das decisões, de onde é possível autoavaliar-se sem receios ou limitações.  Escritas com o toque da emoção (e, portanto, mais próximas das verdades do autor), as palavras de Leônidas de Castro Mello, enraizadas no mundo real, configuram-se úteis ao leitor comum e aos especializados, reafirmando concepção de Robert Darton: “(...) não se pode calcular a média dos significados nem reduzir os símbolos a seu mínimo denominador comum. (...) a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura”. (2017:17)

Vasculhando a natureza do tempo em conferência realizada em Paris, em 2012, Étiene Klein, entre as mais diversas especulações sobre o tema, escreve que “quando vivemos momentos felizes e mágicos, queremos que eles durem muito tempo, até que as coisas permaneçam como estão eternamente” (2019:22-23). Parafraseando a si mesma, diz a conferencista: “Gostaríamos que o tempo parasse de voar e de nos roubar os momentos de felicidade, apesar de isso não ser possível”(Ibidem). Lendo “Trechos do Meu Caminho”, de Leônidas Mello, contrariando o pensamento da conferencista, o leitor será tragado pela sensação de que os desejos são mais fortes que o tempo;  os sonhos, mais poderosos que a sucessão dos instantes. Os desejos e os sonhos de Leônidas de Castro Mello permanecem vivos entre nós.  

Referências:

BOUTANG, Pierre. O tempo (ensaio sobre a origem). Rio de Janeiro: Difel, 2000.

DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

GONÇALVES, Wílson. Terra dos Governadores: fatos da história de Barras. Teresina-PI. Edição do autor, 1987.

KLEIN, Étienne. O tempo que passa (?). São Paulo: Editora 34, 2019.

MELLO, Leônidas de Castro. Trechos do Meu Caminho. Teresina: APL, 2019.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

PINHEIRO, João. Solar dos sonhos e outros escritos. Teresina-PI: APL, 2018.